A realidade sempre bate à porta

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, apela à “consciência” da comunidade internacional para fechar um acordo com o FMI. Seria cômico se não fosse trágico. Afinal, governos de esquerda costumam demonizar a instituição financeira multilateral, representante, segundo essa visão, dos interesses imperialistas. Mas sabe como é, na hora que falta pão, o pacto com o diabo parece barato.

Qual a dificuldade de um país como a Argentina fechar um acordo com o FMI? Apesar das histórias que se contam por aí, de que até o próprio FMI teria abandonado a tara pela austeridade fiscal, a realidade nua e crua é que, para soltar o dinheiro, o FMI exige do governo argentino um plano de… austeridade fiscal. Difícil, não é mesmo?

Lula se gaba de ter sido em seu governo que pagamos a dívida com o FMI e termos dispensado a sua ajuda de uma vez por todas. É verdade. Mas um pouco de história nos permitirá entender o que, de fato, aconteceu.

Em primeiro lugar, nos será útil entender para que serve o FMI. Não é difícil. Para tanto, basta entender que esse papel pintado que nós, brasileiros e argentinos, chamamos orgulhosamente de real e peso, nossas moedas nacionais, não passam de dinheiro de banco imobiliário para transações internacionais. Não são aceitos em lugar algum (quer dizer, o real é aceito na Argentina, o que é um indicativo do buraco em que los hermanos se meteram). Então, para pagar pela importação de produtos, é necessário ter um papel pintado aceito globalmente. Isso no oficial. No paralelo, os próprios cidadãos do país não confiam mais na própria moeda, e buscam abrigo em um dinheiro garantido por um governo sério. Então, o FMI serve para emprestar dólares, para que o país continue funcionando com alguma inserção internacional.

Agora que entendemos para que serve o FMI, vamos voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para a década de 90. No Brasil tivemos a eleição de FHC e, na Argentina, de Carlos Menem. Em comum, ambos foram políticos de esquerda que implementaram programas de governo “neoliberais”, incluindo privatizações e ajuste fiscal. Ambos os governos também usaram o mesmo instrumento para estabilizar a inflação: o controle do câmbio. Os argentinos, sempre mais sanguíneos, optaram por um sistema radical, o currency board, em que a paridade do austral (a então moeda argentina) com o dólar era garantida em lei pelo próprio governo. Aqui no Brasil optamos por algo mais flexível, mais de acordo com a nossa malemolência: o Banco Central mantinha uma certa paridade do real com o dólar, mas permitia uma desvalorização de cerca de 8% ao ano. Funcionava como uma espécie de currency board, mas sem regra escrita.

No início, as experiências argentina e brasileira funcionaram bem: a inflação caiu a níveis civilizados e a classe média estava contente, podendo viajar para a Disney todo ano com o dólar barato. Mas como não há artificialidade que sempre dure, distorções começaram a se acumular nas duas economias. Como ambos os governos não fizeram a lição de casa fiscal, a inflação acumulada começou a pressionar o esquema do câmbio fixo. Bastava uma fagulha para fazer explodir o barril de pólvora. Essa fagulha veio com as grandes desvalorizações cambiais dos países asiáticos em 1997 e a quebra da Rússia em 1998. Nesse dominó, Brasil e Argentina eram as próximas pedras a cair.

E é exatamente nesse ponto da história que os destinos de Brasil e Argentina se separam. No Brasil, FHC, já no início de seu segundo mandato, decide deixar o câmbio flutuar e implementa o que se convencionou chamar de “tripé macroeconômico”: câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários. Com isso, as distorções causadas pelo câmbio fixo desaparecem, e a inflação passa a ser combatida de maneira ortodoxa, com política fiscal (superávit primário) e política monetária (taxa de juros). Lula pega esse esquema já pronto e dá continuidade por alguns anos. Isso nos deu a oportunidade de cavalgar a ascensão da China com um câmbio competitivo, o que nos permitiu acumular as reservas cambiais que temos até hoje. Esse foi o contexto do “adeus ao FMI” de que tanto Lula se orgulha.

Já na Argentina, tanto Carlos Menem, como seu sucessor, Fernando de la Rua, insistem na continuidade do currency board, apesar das já evidentes distorções causadas pelo sistema. O resto da historia é conhecida: a saída do currency board é caótica, não menos do que a saída de De La Rua pelo teto da Casa Rosada. Dois presidentes caem em seguida, até que Nestor Kirchner é eleito em 2003. À diferença de Lula, Kirchner não tem uma “herança bendita” para administrar, o que lhe deixa livre para implementar a sua agenda “desenvolvimentista” desde o início, coisa que Lula só começará a fazer no segundo mandato e em bases muito mais sólidas, construídas em vários anos de ortodoxia. A Argentina, portanto, não teve condições de surfar a onda da China, e seus problemas em conseguir moeda forte se sucedem desde então.

Essa é a história. Alberto Fernández, legítimo sucessor de Menem, De La Rua, Kirchners e Macri, é mais um presidente argentino de joelhos diante do FMI porque se recusa a (ou não tem as condições políticas para) fazer a lição de casa ortodoxa. E antes que um sorriso superior se desenhe em sua boca, saiba que o Brasil caminha, a passos lentos mas seguros, para o mesmo destino, se continuarmos a fazer de conta que controlamos as contas públicas. A realidade sempre bate à porta. Sempre.

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