Gosto do Felipe Salto. Acho que é um dos quadros mais bem preparados do país na área econômica, e pode vir a ocupar qualquer cargo nessa área no futuro. Mas, às vezes, acho que lhe falta a experiência de sentar-se em uma mesa de operações de uma tesouraria de banco ou de um fundo de investimento para entender a cabeça do credor da dívida pública. Tenho certeza que, em tendo essa experiência, ele pensaria duas vez antes de publicar a sua proposta de controle da dívida no Estadão de hoje.
O artigo começa com uma tese correta, mas inócua: a de que a Constituição de 1988 já traz os mecanismos de controle de dívida, não é preciso inventar mais nada.
Está correto. Mas no Brasil, sabemos que há dois tipos de lei: as que pegam e as que não pegam. No caso, a lei sobre limite de dívida foi dessas que não pegaram. E, neste caso, nem é por culpa do famoso “jeitinho brasileiro”. A exemplo do limite para a taxa de juros de 12%, também inscrito na Constituição Cidadã, o limite para a dívida pública é inexequível sem a quebra de algum contrato ou a intervenção no mercado de dívida. Limitar a dívida, por si só, poderia levar ao calote, pois os juros a aumentam.
Nos EUA há um limite de dívida. De vez em quando, vemos a ameaça de um shutdown nos serviços públicos porque a dívida está se aproximando do teto, até que o Senado aprova um “waiver” para a dívida subir até um novo patamar. Por que eles podem fazer isso lá e nós não podemos fazer isso aqui? Parece injusto. Só porque eles têm quase 250 anos de estabilidade democrática, sem nunca ter dado calote na sua dívida e poderem imprimir a moeda de reserva global, os credores não exigem deles a mesma disciplina que exigem do Brasil?
Voltemos ao nosso caso. Para que o limite da dívida não levasse a uma situação de calote ou a seguidos “waivers” que desmoralizariam a regra, Salto repete a proposta de um outro artigo seu: o limite da dívida levaria ao cálculo de um teto para os gastos. Voltaríamos, então, à situação atual, em que o teto da dívida substitui o teto de gastos como fator de tensão entre necessidade de gastos e disciplina fiscal. É neste ponto que Salto propõe uma inovação: as ”bandas” para o teto da dívida. O problema é que essa é uma “solução” que só empurra o problema com a barriga e, portanto, não é capaz de ancorar as expectativas do mercado. Vejamos.
Salto usa como exemplo as bandas de inflação que guiam a atuação do BC. Se a projeção da inflação futura está acima da meta, o BC eleva a taxa de juros, se está abaixo, diminui. Este sistema, chamado de “metas de inflação”, e introduzido no Brasil em 1999, tem sólida comprovação acadêmica e é usado com sucesso por inúmeros países. A sua premissa básica é que a inflação é fruto, em grande medida, das expectativas dos agentes econômicos. Se o BC, o guardião da moeda, tem credibilidade, os agentes econômicos sabem que, mais cedo ou mais tarde, a inflação vai cair, porque o BC vai agir para tanto. Não por outro motivo, a inflação projetada pelo relatório FOCUS, que reúne o palpite de bancos, fundos de investimento e consultorias, está por volta de 3% para 2024 em diante. E são esses agentes que formam os preços dos títulos públicos. Assim, o sistema de metas para a inflação, com o seu mecanismo de bandas, funciona com sucesso para ancorar as expectativas com relação à inflação futura e as taxas de juros de prazos mais longos.
Já para um sistema de “bandas de endividamento”, a questão é saber se é suficiente para ancorar as expectativas dos agentes econômicos com relação à trajetória da dívida. Não conheço literatura a respeito, mas desconfio que lhe falte ao menos um elemento para que funcione: a credibilidade. O BC, como emissor da moeda, conquistou sua credibilidade ao longo das últimas décadas e, recentemente, mais um pilar foi assentado, com a aprovação da sua independência formal. À União, como emissora da dívida, lhe falta essa credibilidade, que é a verdadeira âncora das expectativas.
A União leva uma vantagem sobre o BC: ao contrário da autoridade monetária, que tem apenas um instrumento indireto para lidar com a inflação, a taxa de juros, a União tem o poder de afetar diretamente o tamanho da dívida, através do controle dos gastos. Por isso, o teto de gastos é o sistema mais crível para controlar a dívida, dado que é matemático: se o governo controlar seus gastos, a dívida estará automaticamente sob controle. Ocorre que o teto se mostrou inviável politicamente. Então, se inventam maneiras de calcular o teto que pareçam “suficientemente flexíveis” para os políticos e “suficientemente inflexíveis” para os credores da dívida. Um pouco como aquelas dietas “sem sacrifício”, em que a pessoa continua tendo o prazer de comer mas o corpo entende que o número de calorias milagrosamente caiu.
É neste ponto que me parece faltar um pouco de experiência de “mesa de operações” para Felipe Salto. Um sistema como o proposto, cheio de “buracos” por onde podem passar as despesas necessárias para atender às necessidades do povo brasileiro, não tem a mínima chance de ancorar as expectativas dos agentes econômicos. Se esta é a solução política possível, a verdade é que teremos taxas de juros que correspondem a essa solução política possível. Isso, no cenário benigno, em que o BC continua no controle da situação. No maligno, teremos um descontrole inflacionário.