O “lavajatismo” e o ordenamento jurídico do país

Mais uma operação desfeita pelo STF (no caso, decisão monocrática de Gilmar Mendes) em razão de “graves irregularidades na coleta de provas”.

Não vou entrar no mérito da decisão, pois não conheço detalhes do processo (e, mesmo que conhecesse, tenho contra mim o fato de ser leigo no assunto). Gostaria de chamar a atenção para o termo usado pelo advogado de um dos acusados: trata-se de ”um dos capítulos mais nefastos do lavajatismo”.

O termo “lavajatismo” denomina toda a operação contra autoridades públicas ou pessoas de influência na sociedade que, supostamente, extrapola a própria competência para produzir provas. Seria uma espécie de “justiceiro universal”, que atropela o ordenamento jurídico do país para fazer a sua justiça. Note que, em nenhum momento, existe a contestação das provas em si (contas no exterior, movimentações muito acima do razoável etc), mas sobre a “competência do juízo”.

O problema está justamente no “ordenamento jurídico” do país. Da forma como esse ordenamento está montado, é virtualmente impossível que alguém de posses ou em posição de poder seja condenado por corrupção. A operação Lava-Jato desafiou esse ordenamento, e hoje o termo “lavajatismo” é usado justamente para denominar esse desafio.

Quando uma operação consegue furar o bloqueio da blindagem montada para proteger criminosos de colarinho branco, sempre existe o STF para colocar as coisas em seus devidos lugares e proteger o “ordenamento jurídico” do país.

Em sua obra “Why Nations Fail”, o economista Daron Acemoglu atribui a pobreza das nações a instituições políticas extrativistas, que protegem as elites contra os interesses da maioria da população. Um “ordenamento jurídico” que torna virtualmente impossível a punição de crimes de corrupção por parte daqueles que sabem como explorar os labirintos desse mesmo “ordenamento jurídico” é um exemplo de instituição extrativista. Enquanto alguns forem mais iguais perante a lei do que outros, permaneceremos em nosso eterno ciclo de pobreza.

Perguntas que não querem calar

Reportagem de hoje no Valor destaca levantamento feito pela LCA Consultores com base na PNAD, e que indica que apenas um terço dos trabalhadores brasileiros recebe mais de 2 salários mínimos. Portanto, saiba que, se você ganha mais de R$ 2.500 por mês, você pertence ao terço mais bem remunerado do Brasil.

O diagnóstico unânime dos especialistas entrevistados é de que a produtividade da mão de obra brasileira não permite remuneração maior. Ou seja, o valor agregado pelo trabalhador brasileiro, em média, é baixo, não permitindo uma remuneração melhor. Lembrando que, para pagar um salário, o empresário precisa vender um produto ou serviço. E as pessoas estarão dispostas a comprar esse produto ou serviço se virem nele algum valor que compense o preço. Se o valor agregado é baixo, o preço será mais baixo e os salários serão mais baixos.

Para aumentar a produtividade do trabalhador brasileiro só há dois caminhos, complementares entre si: investimento em automação e processos e na qualificação da mão de obra. A reportagem aborda esse segundo ponto, que é uma especie de unanimidade nacional.

No entanto, gostaria de chamar a atenção para o caso do garçom destacado no final da matéria. Ganhando pouco mais de um salário mínimo, o garçom decidiu matricular o seu filho em uma escola particular. O exemplo de dedicação e visão de futuro é louvável, mas é outro ponto que me chamou a atenção: por que raios esse pai sentiu necessidade de pagar uma escola para o seu filho, se tem à disposição uma escola pública “de graça”?

A resposta é óbvia: a qualidade percebida. Certo ou errado, esse pai viu na escola particular mais qualidade do que na escola pública, a ponto de abrir mão de um benefício que o Estado lhe confere. Assim como as pessoas, quando podem, pagam um plano de saúde para não dependerem do SUS, na educação, pagam uma escola particular para não dependerem do ensino público.

O que é pior: muito provavelmente, a qualidade de uma escola barata de bairro não é substancialmente maior do que a de uma escola pública, se é que é maior. A diferença é que os professores não faltam, não tem greve e, principalmente, o pai é um cliente e tem com quem reclamar.

Mas, da forma como está a estrutura dos vestibulares das universidades públicas hoje, esse garoto estará em último lugar na fila se não conseguir entrar através de alguma cota racial. Isso porque as cotas sociais exigem que o candidato tenha cursado ensino fundamental e médio na escola pública. Portanto, o filho do garçom disputará vaga com jovens que cursaram escolas muitas vezes mais caras. Qual a chance? O mais provável é que este garoto tenha que pagar uma faculdade particular barata também de baixa qualidade, o mesmo que seu par da escola pública que não conseguiu entrar pelas cotas raciais/sociais. A sua produtividade continuará baixa.

Falei acima que educação é uma espécie de unanimidade nacional. Dilma Rousseff chegou a escolher como lema de seu governo “Brasil, Pátria Educadora”. Por que, então, com todo o investimento feito no setor (que não é pouco), não saímos do lugar? Por que é tão difícil elevar a qualidade do nosso ensino básico público? Com a palavra, os especialistas.

Taxa de juros, onde a verdadeira guerra é travada

Para avaliar o estresse dos mercados, o leigo (políticos incluídos) normalmente presta atenção para o comportamento do dólar e da bolsa. Ao fazer isso, perde o que está acontecendo no palco onde se desenrola a verdadeira guerra: a curva de juros.

Não temos a cultura de acompanhar o que acontece com as taxas de juros. No máximo, de 45 em 45 dias, temos notícia a respeito da decisão do Copom sobre a taxa Selic. Procure saber, via os principais jornais ou telejornais do país, quanto os títulos do Tesouro com vencimento em 5 anos estão pagando. Boa sorte.

Desde o início do mês, as taxas dos títulos mais longos subiram, em média, 2 pontos percentuais (mais ou menos de 11,50% para 13,50% ao ano). Não parece muito excitante comparado com a bolsa e o dólar, não é mesmo? Pois bem. Com essa variação, um título prefixado de 5 anos de prazo perdeu cerca de 10% do seu valor nesse período. Para comparar, a bolsa, com todo o estresse, caiu 6% até o momento nesse mês. Ou seja, o feliz proprietário de um título do governo de 5 anos de prazo perdeu mais dinheiro do que se estivesse na bolsa.

Mas não é só isso. Um aumento de 2 pontos percentuais na taxa de juros sobre uma dívida de quase R$ 6 trilhões significa quase R$ 120 bilhões a mais de juros por ano. Quantas demandas sociais poderiam ser pagas com esse dinheiro?

Na realidade não é tudo isso, porque cerca de 40% da dívida está indexada à taxa Selic, que permaneceu constante nesse mês. Ocorre que essa indexação é uma gambiarra usada pelo Tesouro brasileiro por causa da nossa falta de credibilidade. Em países sérios, a dívida pública é toda prefixada, pois assim o BC pode mexer na taxa de juros (fazer política monetária) sem afetar o custo da dívida pública. Quando a Selic saiu de 2% para 13,75%, os juros pagos sobre os 40% da dívida indexada à Selic explodiram.

Então, temos perdas gigantescas dos detentores de títulos públicos prefixados e aumento brutal do custo da dívida pública. Faria bem a mídia em começar a dar maior destaque para o comportamento das taxas de juros.

A história se repete somente como farça

Apesar do bombardeamento de última hora do PT, Ilan Goldfjan foi eleito para a presidência do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. Trata-se de uma história com duas lições.

A primeira, óbvia, é que, para surpresa de alguns, o PT continua sendo o PT. Todos os sinais estão nessa direção, esse foi apenas mais um deles. O PT queria colocar um “dos nossos” no comando na instituição. Afinal, Ilan é um sujeito técnico, e que vai analisar os pedidos de financiamento de um ponto de vista, digamos, técnico. Nada de ter ”sensibilidade para governos amigos”, ou analisar “externalidades positivas” que só o pessoal da Unicamp vê.

E aqui vem a segunda lição, que é o outro lado da moeda da primeira. Certamente o conselho do BID (o que inclui seu maior financiador, os EUA) viu como o BNDES foi usado durante os governos petistas. Lula pode ser um pop star das relações internacionais, mas na hora do dinheiro de verdade, os investidores querem ver resultados. Não à toa, mantiveram a eleição e Ilan foi eleito por larga margem.

Essa é uma sinalização interessante. O passado do PT o condena, e cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. O “chilique” do mercado nos últimos dias demonstra isso, assim como esse olé do BID no PT. Desse modo, é provável que o PT enfrente grande dificuldade na implementação de sua agenda. A resistência do mercado e do corpo político será formidável. Ninguém quer viver novamente o show de horror que foi o fim do governo PT. Claro, o PT insistirá de várias formas e teremos muita dor de cabeça. Mas não será o passeio no parque que foi no primeiro governo. A história se repete somente como farsa.

Lorotas críveis

Luis Eduardo Assis descreve com rara precisão a dinâmica do mercado financeiro. Já escrevi muito aqui sobre a natureza do mercado e seus atores, mas não sobre como os seus operadores tomam decisões. Assis compara o mercado com uma ”sala de espelhos”, em que cada operador procura antecipar a decisão de seus pares. Trata-se, eu acrescento, de uma competição, em que os operadores tentam vencer seus adversários, atraindo, assim, mais recursos do dono do jogo, o investidor. É este, em última instância, o responsável pelos incentivos que comandam os movimentos do mercado.

Assis afirma, cinicamente, que o mercado está disposto a acreditar em qualquer “lorota crível”, o que é a mais pura verdade. Para entender o que ele quis dizer, será útil recordar a dinâmica da crise do subprime, em 2008, brilhantemente retratado por Michael Lewis no livro The Big Short, e que se transformou no filme A Grande Aposta.

Lewis conta como um punhado de operadores do mercado notou que havia algo de podre no mercado imobiliário norte-americano, e começou a apostar contra. Especificamente Michael Burry, gestor de um hedge fund chamado Scion Capital, começou a fazê-lo já em 2005! Ele estava correto em seu diagnóstico, mas as suas apostas só começaram a dar frutos quase 3 anos depois. Resultado: ele quase quebrou antes de poder mostrar que estava correto. Os donos do jogo (os investidores) não entendiam aquela aposta e pressionavam o gestor para ter o seu dinheiro de volta. O final da história foi feliz (para ele), mas, na maior parte das vezes, não é assim.

De modo geral, os investidores não têm paciência ou estômago para ir contra a tendência geral do mercado, e é esse incentivo que é dado para os operadores. São poucos os operadores que têm o poder que tinha Michael Burry, de fechar o seu fundo para resgates. Assim, o operador pode até estar correto em sua visão, mas de nada adianta se não tiver mais patrimônio para gerir, porque foi tudo resgatado.

Um jornalista da Globo News chamou o mercado de bolsonarista. Ele certamente esqueceu que a bolsa subiu durante 5 anos seguidos, entre 2003 e 2007, quando Lula era bom em contar “lorotas críveis”. E, mesmo quando os sinais de que a vaca da economia já apontava para o brejo que seria o governo Dilma, Lula emplacou a maior capitalização da história até então. O mercado, mesmerizado pelo pré-sal, entrou de cabeça na capitalização da Petrobras, fechando os olhos para os truques contábeis e o uso declarado da Petrobras para fazer a política industrial do governo petista. Quem apostasse contra estava arriscado a ficar “de fora da festa”, em mais uma demonstração da sala de espelhos mencionada por Assis.

Ocorre que a realidade, no final, sempre se impõe. Quando começa a ficar claro que o desastre se avizinha, um a um dos operadores vão tirando seu time de campo, cautelosamente no início, atabalhoadamente no fim, gerando o efeito manada. Todos sempre balanceando o risco de ficar fora da festa com o risco de ser o último a ficar para pagar a banda e apagar as luzes. Os investidores, claro, não gostam de nenhuma das duas hipóteses.

“Lorotas críveis” fazem o papel do DJ que anima a festa. No final, a realidade é incontornável, mas, até que chegue, investidores e operadores dançam conforme a música. Não, o mercado não é bolsonarista. O mercado só gosta de uma história bem contada.

O discurso faz a diferença

Quando a regra do teto de gastos foi aprovada, em 2016, já se sabia que a dinâmica de crescimento dos gastos constitucionalmente obrigatórios forçaria a revisão da regra em algum momento no futuro. Isso porque, com os gastos totais limitados pela inflação e os gastos obrigatórios (principalmente Previdência e funcionalismo) crescendo acima da inflação, os gastos discricionários (não constitucionalmente obrigatórios) seriam espremidos com o passar dos anos. Por isso, se previu uma revisão da regra para 2025. A ideia (ou esperança) era de que houvesse um amplo debate no país sobre os gastos obrigatórios, de modo a abrir espaço para os não obrigatórios.

Ocorre que o único debate que ocorreu foi o da reforma da Previdência, que ajudou, mas ficou muito longe do suficiente para estabilizar o crescimento dos gastos. Além disso, para juntar o insulto à injúria, veio a pandemia, que fez com que gastássemos, em dois anos, toda a poupança gerada pela reforma da Previdência em 10 anos. Além disso, cristalizou o valor de R$600 para o Bolsa Família / Auxílio Brasil, fazendo com que este programa saltasse dos anteriores R$ 35 bilhões/ano para os propostos R$ 175 bilhões/ano para 2023.

(Alias, só um parêntesis. Ainda vou entender como R$ 35 bilhões foram capazes de “acabar com a fome no Brasil”, e, com R$ 175 bilhões, “a fome nunca foi tão grande e intensa no país”. – essa frase contém várias ironias)

Assim, pressionado, por um lado, pelos gastos obrigatórios e, pelo outro, por um programa gigantesco de transferência de renda, não é à toa que o espaço para os gastos não obrigatórios tenha desaparecido. E o que são esses gastos não obrigatórios?

A notícia a seguir destaca um deles.

Os salários dos policiais da PF são gastos obrigatórios, mas o papel para confeccionar o passaporte, não. A mesma coisa, por exemplo, nas universidades federais: os salários dos professores e funcionários são gastos obrigatórios, mas o dinheiro para comprar o papel higiênico, não. Os funcionários do IBGE têm o seu salário garantido, mas a estrutura para fazer o censo, não. Programas como Farmácia Popular e incentivos à cultura são não obrigatórios. E por aí vai.

Por isso, o PT propôs tirar R$ 105 bilhões adicionais da regra do teto por 4 anos. A máquina do Estado corre o sério risco de parar se isso não for feito. Bolsonaro teria exatamente o mesmo problema se tivesse sido eleito. Pode-se discutir esse montante, mas alguma coisa teria que ser feita.

Os mercados entendem todo esse racional. O problema é a falta de perspectiva de que esse problema será resolvido algum dia. O mercado financeiro vive de trazer o futuro a valor presente. Quando Lula dá a entender que não está nem aí para o equilíbrio fiscal e o PT pede waiver para 4 anos, a leitura é de que Lula e o PT não têm apetite para resolver a questão de maneira mais estrutural e, portanto, teremos uma dívida explosiva no futuro. E isso é precificado pelos mercados hoje.

Alguns me perguntam, com sinceridade de coração, o que eu faria no lugar, dadas as condições postas. A resposta é relativamente simples: a mesma coisa, só que cuidando a mensagem. “Vamos pedir um waiver de R$ 175 bilhões este ano para acomodar as promessas de campanha. Entendemos que se trata de algo totalmente excepcional. Ao mesmo tempo, vamos trabalhar pelas reformas administrativa e tributária e por uma nova regra fiscal já no primeiro ano do governo, de modo a estabilizar a trajetória da dívida pública”. Obviamente, o mercado não compraria a promessa a valor de face a zero de jogo, e esse montante certamente faria (fará!) com que o BC tenha dificuldade de cortar juros no ano que vem. Mas, pelo menos, se evitaria todo esse estresse dos mercados que vivenciamos nos últimos dias, e o novo governo poderia começar em um ambiente melhor.

Lula tem se comportado como presidente de grêmio estudantil. Quando voltar a vestir o figurino de presidente (se um dia voltar), os mercados responderão positivamente.

O quarto economista

Quatro economistas ortodoxos anunciaram apoio a Lula na eleição.

Três economistas ortodoxos publicaram carta criticando as últimas declarações de Lula.

Vamos tentar imaginar o que pode ter acontecido com o 4o economista ausente.

A primeira hipótese é de que o 4o economista seja ortodoxo apenas na superfície. Por dentro, pode bater um coraçãozinho desenvolvimentista.

A segunda hipótese é de que, sendo parte da equipe de transição, o 4o economista não quer se indispor com Alckmin, criticando o parça do seu padrinho.

A terceira hipótese é de que o 4o economista esteja muito ocupado procurando o texto da PEC do waiver e não teve tempo para ouvir os discursos de Lula.

Qualquer que seja o motivo, o silêncio do 4o economista vale mais do que mil palavras.

Testando os limites

O ser humano não lida bem com restrições. Estamos sempre querendo mais, independentemente do que já temos.

A discussão sobre o orçamento público é, no final do dia, uma discussão sobre restrições. Não aceitamos que não haja espaço no orçamento para todas as demandas legítimas de todos os cidadãos afetados, de uma forma ou de outra, pelos gastos governamentais.

O fato, no entanto, é que a atual carga tributária não é suficiente para atender a todas as demandas justas da sociedade. E, provavelmente, nunca será. Volte ao primeiro parágrafo para entender porquê.

Como o governo não cria o dinheiro que usa para atender às sempre crescentes demandas sociais, há somente uma forma de cumprir a responsabilidade social: tributando crescentemente os cidadãos.

Essa tributação pode se dar de três maneiras:

1) Aumentando a carga tributária atual

2) Aumentando a dívida atual, que vai se transformar em carga tributária no futuro (gastamos hoje e deixamos a conta para os nossos descendentes)

3) Imprimindo dinheiro, o que significa uma tributação dissimulada, ao diminuir o poder de compra do dinheiro (inflação)

As alternativas 1 e 3 são dolorosas politicamente. A alternativa 2, por outro lado, traz consigo a ilusão de que é possível realizar todos os sonhos sem dor. Isso acontece porque estamos empurrando a conta para frente. As dificuldades que enfrentamos hoje são o fruto de decisões de governos anteriores de empurrar o problema com a barriga, via aumento de dívida.

O problema da alternativa 2, no entanto, é que há um ponto de descontinuidade. Ao longo do tempo, os credores vão perdendo, um a um, a confiança na capacidade de pagamento do governo. O efeito disso é o aumento paulatino das taxas de juros. Os juros mais altos vão piorando a situação do devedor, pois a dívida vai aumentando de maneira mais rápida. Em um determinado momento, impossível de antecipar, há uma corrida contra a moeda, pois fica claro que o governo não terá capacidade de honrar seus compromissos. É o chamado “ataque especulativo”, que nada mais é do que os credores tentando se proteger do calote, formal ou informal.

Das 3 alternativas acima, nenhuma é benéfica aos mais pobres. Todas elas, de uma maneira ou de outra, minam a capacidade de crescimento da economia. Podemos enfiar a cabeça na terra e fazer de conta que austeridade fiscal é coisa de “banqueiros”. O ponto é que há um limite para o que o governo pode fazer pelos mais necessitados. Estamos testando esse limite.

Banqueiros, um inimigo conveniente

Quer ganhar alguém para a sua causa? Coloque “os banqueiros” como inimigos. É batata! Não há coisa mais demoníaca do que banqueiro.

Talvez seja uma herança dos tempos em que cobrar juros era considerado pecado. Ganhar dinheiro assim, sem fazer nada, aproveitando-se da necessidade do próximo, só podia ser coisa do demônio. Essa ideia medieval ainda sobrevive entre nós.

Lula não perde oportunidade de aproveitar-se da ojeriza natural do latino-americano médio aos banqueiros para defender suas ideias. Hoje não foi diferente. Ele diz que não vai tirar a comida da mesa do pobre pra pagar juro para banqueiro. Sim, Lula tem bom coração.

Essa fala de Lula tem dois erros assombrosos.

O primeiro é que os detentores da dívida pública (para quem o governo brasileiro precisa pagar juros) não se resumem aos bancos. Estes representam apenas 22% do total dos credores. Os restantes 78% da dívida estão nas mãos de fundos de investimento (25%), Fundos de Previdência (25%), Investidores Estrangeiros (13%), Seguradoras (5%) e Outros – incluindo Tesouro Direto (10%). Ou seja, pessoas físicas e jurídicas que depositam suas poupanças nas mãos do governo. Então, ao dizer que não vai “pagar juros para banqueiro”, Lula, na verdade, está dizendo que não vai pagar juros para mim, para você e para todos os que investem, direta ou indiretamente, em títulos públicos.

E aqui vem o segundo erro: o que Lula quer dizer com “não vou pagar juros?” Estará pensando em alguma forma de calote? Obviamente não é isso, mas esse tipo de fala, no limite, pode ser interpretado como uma espécie de ameaça. Se tem bicho mais covarde é investidor. Diante de qualquer ameaça, mesmo tênue, foge para um abrigo. Esse tipo de fala não contribui em nada com a tarefa hercúlea de rolar uma dívida pública de quase R$ 6 trilhões.

A demonização do credor da dívida (“o banqueiro”) é uma forma idiota de lidar com o problema criado pelo próprio governo. Afinal, ninguém obrigou os diversos governos brasileiros a tomarem dívida. Endividaram-se porque sempre há “necessidades sociais urgentes” a serem financiadas. O resultado é que pagamos de juros algo como R$ 800 bilhões por ano, 4 vezes mais do que o waiver pedido para gastar neste ano. E, cada vez que o voluntarismo populista se propõe a “resolver o problema dos pobres”, essa conta aumenta.

Não quer pagar juros? É simples: não se endivide. Claro, para isso é preciso que o governo gaste somente o que arrecada. Mas isso é pedir demais para governantes populistas. Mais fácil demonizar “os banqueiros”.

Dissecando as teorias de fraude nas eleições brasileiras de 2022

Neste artigo, procuramos analisar, de maneira o mais imparcial possível, as principais denúncias de fraude referentes ao segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que, mesmo a fraude sendo tecnicamente possível, ela requer uma tal cooptação de funcionários do TSE que se torna bastante arriscada: em primeiro lugar, seria preciso identificar as pessoas chaves, incluindo as que cobrem todas as etapas da fraude; em seguida, seria preciso comprá-las uma a uma. Qualquer falha pode ser fatal, ou para a pessoa que desnuda o esquema ou para todo o processo de fraude, se for a público. Aliás, este é um ambiente perfeito para chantagens polpudas… E não nos esqueçamos que Brasília deu uma vitória folgada a Bolsonaro. Ou seja, não devem faltar bolsonaristas no TSE dispostos a denunciar um esquema desse tipo, caso existisse.

Além disso, a votação paralela (processo de auditoria que simula uma votação real com urnas sorteadas, no mesmo horário da votação real) confere bem o processo da votação verdadeira, conforme explicamos neste artigo, exceto por uma “pequena” grande falha: não é possível simular a biometria, pois não se consegue voltar dos dados codificados para o dono da digital, ou seja, fica impossível simular um eleitor chegando com as suas digitais para o sistema eleitoral. Portanto, bastaria o processo fraudado se limitar a adulterar urnas em que aparece pelo menos um voto com biometria.

A boa notícia, é que esse ano, pela primeira vez, foi realizado um teste paralelo com biometria, em pequena escala, envolvendo eleitores reais, tornando a fraude bem mais difícil de se implementar, pois envolve complexos algoritmos de inteligência artificial, virtualmente impossíveis de serem feitos ou, no limite, o vazamento da identidade de todos esses eleitores.

A despeito de que a fraude seja difícil de acontecer na prática, parece claro que algum processo de transparência no sistema de urnas eletrônicas seria desejável, para transformar a segurança real, mas invisível, em uma segurança efetiva, com uma camada adicional que proporcione uma sensação de segurança para o cidadão leigo.

✱✱✱

Dentre as teorias disseminadas nos últimos dias, é possível destacar 5 vertentes, sendo as duas primeiras mais prevalentes (e assim, objetos de uma análise mais detalhada). Para tal, baixamos o resultado de todas as 472.027 urnas, incluindo o modelo de cada uma.

1 – Há mais de 100 urnas em que Bolsonaro não tem votos

De fato, houve 143 urnas sem votos para Bolsonaro e 4 urnas sem votos para Lula (duas delas em Caracas!).

Contexto da suposta fraude

A princípio, isto parece altamente intrigante. No entanto, só a princípio. Ao se examinar com mais detalhes, a razão fica cristalinamente clara.

Antes de refutarmos a fraude, vamos procurar nos colocar no lugar do fraudador, que desenha um algoritmo para simular votos em uma urna. O que você faria? Se o interesse é manipular e, ao mesmo tempo, passar despercebido, zerar votos de uma urna é, obviamente, a forma menos esperta de fazer isso. Primeiro, porque uma urna zerada chama a atenção de todos (aliás, não estaríamos escrevendo sobre isso se não houvesse urnas zeradas). E, em segundo lugar, porque uma urna zerada é o ambiente perfeito para uma auditoria informal: basta encontrar alguém com nome e CPF que tivesse votado naquela seção no candidato com zero votos, e que estivesse disposto a denunciar a fraude. Por incrível que pareça, até o momento, nas 143 urnas, que somam 11.858 votos para Lula, não se encontrou nenhuma boa alma que viesse a público para denunciar a fraude.

Convenhamos que este é um risco que um fraudador minimamente esperto não precisaria correr. Seria muito mais inteligente fazer uma redução percentual dos votos de Bolsonaro (na casa de uns 5%) e transferi-los para Lula, poupando as urnas onde Bolsonaro aparece com poucos votos. Isso tornaria o processo de detecção da fraude, apenas olhando para os boletins de urna, uma tarefa praticamente impossível. Só esse processo aumentaria a diferença a favor de Lula em torno de 10 pontos percentuais, o que seria mais do que suficiente para garantir a vitória em uma eleição apertada.

Refutação da fraude

         Mesmo assim, vamos analisar em maior profundidade essa “denúncia”:

Em primeiro lugar, separamos estas urnas sem votos para Bolsonaro em duas categorias:

  1. Urnas com 100 votos válidos ou mais: 66
  2. Urnas com menos de 100 votos válidos: 77

Fizemos esta divisão porque é menos provável que uma urna com mais votos seja unânime do que uma urna com menos votos. Por isso, o grupo 1, de 66 urnas, foi examinado em grande detalhe, observando e pesquisando os locais de votação: 42 destas urnas estão em locais indígenas, 19 em locais quilombolas e uma em um assentamento do MST, em município com altíssima votação pró-Lula. Das 4 urnas restantes, todas estão em ambiente rural de cidades bem pequenas do sertão nordestino, no Maranhão, Ceará e Piauí, e com mais de 85% de votos para Lula.

Apenas para ilustrar, uma dessas urnas do grupo 1 está em Charrua – RS, onde, em uma seção com 302 votos válidos, Lula obteve a unanimidade. Este caso chama a atenção, porque a votação no município ficou praticamente dividida, com Bolsonaro recebendo 51,5% dos votos e Lula, 48,5%. No entanto, o caso deixa de ser estranho quando se examina de perto o perfil étnico do município. Segundo o site infosanbas (uma das fontes que usamos para esta pesquisa), o município de Charrua está praticamente dividido ao meio em termos de perfil étnico, como podemos ver no gráfico abaixo, retirado do site:

Esta divisão entre “brancos” e “indígenas” provavelmente explica a votação dividida entre Bolsonaro e Lula no município, e é provável que os indígenas tenham votado, todos, no Ginásio Municipal da cidade, onde estão as três seções em que Lula obteve a esmagadora maioria dos votos.

O grupo 2 foi examinado com menos detalhe, procurando deduzir pelo nome do local de votação e mirando municípios com quilombolas oficialmente estabelecidos. Isto resultou em 7 urnas em locais indígenas, 39 em locais quilombolas, 11 em presídios, 18 em ambiente rural e 2 no exterior (Havana, em Cuba e Puerto Iguazú, na Argentina).

Das 18 seções em ambiente rural, 15 estão no Nordeste (com alta votação em Lula), uma está em uma comunidade remota e rural de Teresina e duas estão em comunidades remotas de cidades pequenas: Novo Cruzeiro, MG (77% votaram em Lula em uma seção com 71 votos) e Juruti, PA (59% votaram em Lula, em uma seção com 30 votos).

Com relação à votação em zonas indígenas e quilombolas, a baixa votação em Bolsonaro é compreensível. Bolsonaro referiu-se mais de uma vez de forma depreciativa aos quilombolas e territórios indígenas, referindo-se às demarcações e outras questões. Então é uma seara onde Bolsonaro deve ter tido mesmo muito pouco voto, ainda mais se levando em conta as lideranças fortes neste tipo de comunidade. No entanto, mesmo assim, há várias seções em quilombolas e aldeias indígenas onde Bolsonaro teve votos!

Com relação às zonas rurais, vamos fazer uma análise probabilística. Considere uma seção que tenha recebido 95% dos votos válidos para Lula. Qual a chance de uma urna com 99 votos válidos não ter nenhum voto em Bolsonaro? Cerca de 1 para 160 (0,9599). Fizemos um exercício em que levantamos todos os municípios em zonas rurais em que Lula recebeu mais de 50% dos votos e, nesses municípios, as seções com menos de 100 votos. Encontramos 3.687 seções com essas características. Para cada uma destas seções, usamos a fórmula acima para calcular a probabilidade de que Bolsonaro tenha recebido zero votos em cada uma das seções consideradas. Somando todas essas probabilidades, chegamos a aproximadamente 16 urnas em 3.687 seções. Portanto, o número de 18 urnas em zonas rurais com zero votos em Bolsonaro parece compatível com uma análise básica de probabilidades.

No grupo 1, temos 4 urnas em zonas rurais, sendo 3 com até 119 votos, o que diminui a chance para 1 em 448. Apenas uma urna, no sítio Ponta da Serra, que é uma comunidade agrícola, teve mais de 119 votos (159, para ser mais exato). Não se pode descartar, neste caso, compra de votos e/ou uma liderança forte.

2 – Urnas antigas “não-auditadas” foram fraudadas

Contexto da Suposta Fraude

Essa tese, segundo a qual Lula teve desproporcionalmente mais votos em urnas antigas, o que não condiz com uma distribuição aleatória dos votos, começou a ser difundida pelas redes sociais a partir do texto do argentino Fernando Cerimedo, publicado no canal do YouTube via o periódico “La Direcha Diario”. Esta não pode ser considerada uma fonte imparcial, porque o autor é assumidamente bolsonarista, tendo, inclusive, se encontrado com Eduardo Bolsonaro pouco antes do 2º turno.

O TSE desmentiu a tese do argentino, reforçando que os modelos antigos de urnas passaram por rigorosos testes antes de 2020, e em 2020 testou-se apenas o hardware novo, porque os modelos anteriores já haviam sido escrutinados. O modelo novo conta com um processador bem mais rápido, tela colorida, bateria mais possante, melhorias no teclado e na biometria e software embarcado do sistema operacional mais seguro. Reparem que não se trata do software eleitoral, mas do ambiente operacional, sobre o qual o software eleitoral roda. É como o Windows, que serve de base para todos os softwares que rodamos em nossos computadores. Uma versão nova do Windows não faz com que o Excel, por exemplo, seja diferente.

O ponto é que, obviamente, o software eleitoral é rigorosamente igual para todos os tipos de urna. Se o software fosse fraudado, ambas os tipos de urnas seriam alvos de fraude e não apenas as urnas mais antigas. Afinal, a urna, independentemente do modelo, não detectaria se o software foi fraudado ou não.

Cerimedo declarou que diferenças em um determinado log (registro em arquivo de todas as operações feitas em um determinado computador, e os resultados e mensagens exibidos) provaria que o software é diferente entre o modelo novo e os modelos antigos.  Isto não faz o menor sentido, porque estas diferenças podem ser devidas simplesmente à própria diferença entre as urnas (hardwares diferentes causam logs diferentes em sua inicialização), o que não tem nada a ver com o software das urnas em si.

Desenvolver dois softwares diferentes e manter isso incógnito seria uma conspiração rocambolesca e virtualmente impossível, é muito mais fácil fraudar um software único, com uma lógica só.

Refutação da Suposta Fraude

Já publicamos um artigo refutando essa tese do ponto de vista da localização dos municípios que receberam urnas novas e antigas (veja aqui). Em resumo, as urnas não foram distribuídas aleatoriamente, o que é condição inicial para qualquer análise probabilística. Em geral, foram as capitais e alguns municípios limítrofes que receberam urnas novas, enquanto os municípios do interior do país receberam as urnas antigas.

Então, quando se separa os resultados das urnas novas e antigas, na verdade está se separando os resultados das capitais e do interior. No Nordeste, onde Bolsonaro recebeu proporcionalmente mais votos nas capitais do que no interior, fica a impressão de que isso é devido à “idade” da urna, quando, na verdade, a diferença de votos se explica pelo perfil do eleitor. Esse é o efeito de uma distribuição não aleatória das urnas.

Além disso, há alguns outros problemas conceituais com a análise realizada:

  • Considerar apenas o tamanho do município como critério para apontar as ditas diferenças a favor de Lula, nas urnas antigas;
  • O nível socioeconômico do eleitor é muito mais relevante que o tamanho do município onde ele mora;
  • Comparações de municípios de mesmo tamanho entre estados diferentes, geralmente, são completamente espúrias. No mapa abaixo, observa-se que, mesmo dentro do mesmo estado, existem diferenças regionais muito relevantes, ainda que os municípios tenham tamanho similar.