“Ruídos”

O economista Nilson Teixeira passou a campanha inteira defendendo o voto em Lula. Seus argumentos não eram diferentes dos apresentados em sua coluna de ontem no Valor, procurando justificar o discurso do presidente eleito no último dia 10, e que provocou uma comoção nos mercados.

Apenas para lembrar, Lula afirmou, entre outras coisas, que não se pode sacrificar os pobres em nome da “tal responsabilidade fiscal”. Para bom entendedor pingo é letra. Mas vejamos os argumentos do economista.

Nilson começa dizendo que o discurso se justifica tendo em consideração o “público presente”.

Lula estaria fazendo um discurso interno, sob medida para agradar os seus. Bem, esse argumento tem duas falhas: 1) Lula não está mais em campanha. Estaria na hora de, já eleito, mostrar a que veio. E, provavelmente, foi isso o que aconteceu; 2) E, mesmo que estivesse em campanha, Lula é Lula, não precisa fazer muito para segurar os seus consigo.

Em seguida, Nilson lança mão da carta “experiência” (chamada de “vivência política”) para acreditar, a priori, que a dupla Lula-Alckmin não faria loucuras no campo fiscal. Seria um bom ponto se o diagnóstico da dupla coincidisse com o diagnóstico do mercado financeiro, Nilson incluído. O grande erro é achar que, por todos concordarem que a inflação é um mal e o crescimento econômico é um bem, todos concordam também a respeito do diagnóstico sobre o que causa a inflação e o crescimento econômico.

Por exemplo, ontem, ao apresentar a PEC do waiver (R$ 200 bi além do teto!), Alckmin justificou os gastos adicionais, entre outras coisas, “para o investimento para a retomada do crescimento”.

Está aí um exemplo claro de dissonância entre o mercado e a dupla Lula-Alckmin sobre o conceito de responsabilidade fiscal. Para o mercado, responsabilidade fiscal significa manter a dívida sob controle, o que permitiria inflação e juros mais baixos, fomentando, assim, os investimentos privados e o crescimento econômico. Para a dupla Lula-Alckmin, responsabilidade fiscal significa dotar o Estado de instrumentos para fomentar o crescimento econômico, por meio de investimentos produtivos (oferta) e distribuição de renda (demanda), o que, por si só, geraria um equilíbrio macroeconômico benigno. Os governos Lula 2 e Dilma 1 tinham exatamente o mesmo entendimento, com os resultados conhecidos.

Essa dissonância fica ainda mais clara quando Nilson afirma que “não houve, durante a campanha eleitoral, nenhuma indicação de que a inflação seria tolerada”. Chega a ser pueril. Que político, no Brasil, vai afirmar que “não está nem aí para a inflação”? O economista assume que, por “não tolerar inflação”, a dupla Lula-Alckmin vai adotar o modelito Faria Lima de estabilização da moeda. E, com base nesse entendimento, deveríamos simplesmente ignorar todos os sinais na direção contrária. Haja fé!

O fato nu e cru é que a PEC dos R$ 200 bi sequer passou pela equipe de transição, que, à exceção de Persio Arida, não são exemplo de ortodoxia. O que demonstra que a dupla Lula-Alckmin está pouco se lixando para qualquer consideração técnica. Para desgosto dos faria limers que apostaram no “bom senso” da experiente e sensata dupla que vai comandar os destinos do país nos próximos 4 anos.

Enganação populista

Essa dicotomia “disciplina fiscal” vs. “justiça social” é falsa.

Vou usar aqui números aproximados, mas não tem problema, foque apenas no conceito. Temos hoje, grosso modo, um orçamento federal de R$ 1,6 trilhões. Ou seja, o governo gasta R$ 1,6 trilhões por ano para manter a máquina e todos os seus investimentos e programas sociais.

Toda a discussão se dá porque dizem que esse montante não é suficiente para resgatar a nossa “dívida social”, como enfatizou o nosso futuro presidente em seu discurso.

Digamos então, por hipótese, que fosse necessário gastar R$ 400 bilhões a mais por ano, ad aeternum, para resgatar a dívida social. Isto significaria um aumento de aproximadamente 5% do PIB em nossa já alta carga tributária. Mas ok, tudo pelo social!

O que aconteceria? Isso mesmo que você pensou: esse dinheiro adicional seria gasto sem que nada mudasse de maneira substancial. Os pobres continuariam pobres, a saúde continuaria essa lástima que conhecemos, a educação com as prioridades erradas etc. E, dentro de alguns (poucos) anos, mais dinheiro seria solicitado para “resgatar a nossa dívida social”.

A grande questão é que somos um país pobre (baixa renda per capita), e, enquanto continuarmos a ser um país pobre, as mazelas sociais continuarão aí, intactas. Não será aumentando a carga tributária, ou aumentando o endividamento do governo que nos tornaremos um país rico. Só enriqueceremos e, assim, mitigaremos os nossos problemas sociais, quando conseguirmos produzir mais com menos recursos. O resto é enganação populista.

O falso ortodoxo

Já tive oportunidade de escrever aqui a respeito das “ideias” de André Lara Resende, apresentado ao distinto público leigo como um dos “pais do Plano Real”, epíteto na medida certa para provocar uma sensação de conforto. Afinal, se o cara pariu o Plano Real, que salvou o país da hiperinflação, não deve pertencer àquela trupe que nos jogou na maior recessão da história brasileira.

Ocorre que Lara Resende é o principal defensor no país de um troço chamado MMT – Modern Monetary Theory, que propõe, em resumo, a capacidade de endividamento infinito do governo em sua própria moeda, pois, neste caso, o calote seria impossível. Em linguagem mais elegante, um governo que consegue se endividar na própria moeda não teria restrição fiscal. Claro. Mesmo porque, a dívida desaparece pelo efeito da inflação, não é necessário um calote formal.

A jornalista Claudia Safatle faz um resumo das “ideias” de Lara Resende em sua coluna de hoje. Destaquei apenas um trecho, em que o “pai do Plano Real” propõe um novo Copom que determinasse tanto a taxa de juros quanto o nível de investimento do governo.

Claro que a determinação da taxa de juros estaria subordinada a outras considerações além do controle da inflação. Sabe aquela ideia de independência do BC, pedra angular da estabilidade da moeda? Pois é. Gustavo Franco, em sua obra A Moeda e a Lei, descreve o longo e tortuoso caminho que seguimos durante várias décadas até finalmente conseguirmos criar uma agência independente que fosse a guardiã da moeda, blindada contra as pressões para a impressão de moeda sem lastro, sempre com nobres fins. Lara Resende propõe voltar várias casas nesse jogo.

Hoje, Lara Resende tem muito mais a ver com nomes como Guilherme Melo, Nelson Barbosa, Guido Mantega e Antônio Corrêa Lacerda, todos convocados a fazer parte da “equipe de transição”, do que com Pérsio Arida. O outro “pai do Real” não demorará a perceber que é um corpo estranho nesse organismo, da mesma forma que Joaquim Levy no segundo governo Dilma, devidamente rejeitado após um transplante impossível de dar certo. Em artigo no Estadão de hoje, Elena Landau, que foi coordenadora do programa econômico da candidata Simone Tebet, já caiu na real a respeito do novo governo. Em suas palavras, “Lula não aceita limites”, e “mostra que não aprendeu que, sem responsabilidade fiscal, as pessoas mais necessitadas são as que mais sofrem”. Pérsio, que é do mesmo time de Elena, já deve ter percebido isso.

Lula gosta de dizer que seu governo foi responsável fiscalmente, pois produziu superávits primários por 8 anos seguidos. O que ele não conta é que desperdiçou uma oportunidade de ouro para nos levar a outro patamar, quando os ventos externos nos eram favoráveis, ao optar pelo modelo Dilma-Mantega a partir de 2006, abandonando o modelo Palocci. A semente do desastre Dilma foi plantada por Lula. E os nomes que fazem parte da equipe de transição, além de seu discurso, mostram que o modelo Dilma-Mantega voltará a ser implementado.

Lula é pragmático, dizem. Quando o dólar bater R$ 7,00, ele vai fazer a coisa certa. Estou mais tranquilo.

“Esse tal de mercado”

O que é esse tal “mercado”, que fica “nervoso” por nada? Se pudéssemos identificar o “mercado”, talvez pudéssemos levá-lo para algumas sessões de psicoterapia que o ajudasse a manter a calma e não surtasse por qualquer bobagenzinha. Isso só “atrapalha o Brasil”, como já disse o nosso quase ex-presidente, com o qual certamente o nosso futuro presidente concordaria em gênero, número e grau.

Ontem, um tarimbado comentarista da Globo News afirmou que o mercado é “bolsonarista” e, por isso, teria ficado “nervoso” com as falas de Lula. Essa é nova.

Mas o que é, afinal, esse tal “mercado”? O mercado, muitas vezes, é confundido com os seus operadores. A “Faria Lima”, sede de muitos bancos de investimentos e gestores de recursos, seria a encarnação do mercado. A questão é que os operadores cuidam do dinheiro alheio, e precisam prestar contas do bom retorno desse dinheiro. Desde o poupador em caderneta de poupança até o mega investidor em startups de tecnologia, todos querem o seu dinheiro de volta algum dia com algum retorno. E, do outro lado da mesa, desde o tomador de um pequeno empréstimo consignado até a grande empresa que emite uma debênture para financiar empréstimos de longo prazo, querem ter disponíveis linhas de crédito a taxas módicas. No meio, os operadores do mercado financeiro tentam juntar as duas pontas. Esse é o tal do “mercado”.

Ocorre que o governo, com sua dívida de quase R$ 6 trilhões, com 25% disso vencendo em menos de um ano, é, de longe, o maior player do “mercado”. Para se ter uma ideia, as operações de crédito dos bancos somavam, em setembro, R$4,7 trilhões. Ou seja, o montante de dinheiro que os bancos emprestam para empresas e pessoas físicas no país é menor do que o montante emprestado para o governo.

Como se não bastasse, o Estado é o monopolista da emissão do dinheiro. Então, além de ser o maior tomador de empréstimos do país, o governo, no limite, pode rodar a maquininha para “pagar” as suas dívidas, gerando inflação. Claro, há regras institucionais que impedem esse tipo de coisa, mas o que são “regras institucionais” em um país onde a lei não vale a tinta em que é escrita?

Portanto, o “mercado” fica ”nervoso” não porque tenha algum desvio psicológico ou porque seja bolsonarista, mas porque a metade do mercado que não é o governo não fica muito confortável com os movimentos e intenções do dono do jogo. Os operadores do mercado, confundidos com o próprio, apenas executam aquilo que seus patrões, os investidores, querem. No final do dia, tudo se resume a se proteger do governo e sua maior arma de destruição em massa: a inflação.

Para terminar, não posso deixar de registrar um curioso fenômeno sociológico: bolsonaristas que atribuíram o movimento de ontem às falas desastrosas de Lula, foram os mesmos que execraram o mercado quando os preços reagiram ao furo no teto de gastos ou às intervenções na Petrobras; e vice-versa, os mesmos petistas que atribuíam o nervosismo do mercado à irresponsabilidade do governo Bolsonaro, agora chamam o mercado de “bolsonarista” por ter tido a mesma reação diante das falas de Lula. Em ambos os casos, o “mercado” foi visto como “sabotador” ou como “arauto do desastre”, a depender do lado.

A coisa é muito mais simples: se o governo faz a coisa certa, o mercado compra; se o governo faz a coisa errada, o mercado vende. O resto é narrativa.

A OCDE subiu no telhado

Quando anunciei meu voto em Bolsonaro por conta da agenda econômica do PT, era a isso que me referia. Posso queimar a língua, mas provavelmente nossa entrada na OCDE ficará congelada pelos próximos quatro anos.

O interessante dessa matéria, que, de resto, não deveria ser surpresa para ninguém, é a honesta justificativa que integrantes do PT, em off, dão para as suas reservas em relação à OCDE: entrar na organização significaria não ter liberdade para adotar as políticas econômicas desenvolvimentistas que nos jogaram na maior recessão da história, nos obrigando a adotar políticas que têm feito o sucesso de economias mais desenvolvidas.

Claro, esse é a leitura de um faria limer liberaloide, os petistas diriam que as políticas da OCDE servem para manter os países subdesenvolvidos colonizados e subjugados aos interesses do “grande capital”. A dura realidade, no entanto, é que já provamos o gosto amargo das políticas econômicas petistas, e nenhuma delas nos levou ao Nirvana da tal “soberania econômica”. Pelo contrário, se algo aconteceu nos anos petistas, foi o aumento da dependência do capital.

Vamos ver o que o “Lula pragmático” tem a nos dizer a respeito.

A denúncia de fraude é uma fraude

Essa eleição está me fazendo lembrar do filme Carrie, a Estranha. Depois do banho de sangue que é o filme, o final parece calmo, até idílico, quando, de repente, a personagem central ressurge, dando um dos sustos mais assustadores do cinema. Por aqui, as eleições acabaram, Bolsonaro autorizou a transição, tudo parecia correr dentro dos conformes, quando, de repente, teorias de fraudes ressurgem para assombrar o cenário político.

A teoria da fraude foi levantada por um estudo de um argentino amigo dos Bolsonaros, que elaborou um extenso material para provar que os resultados das urnas anteriores a 2020 têm resultados consistentemente a favor de Lula se comparadas com as urnas de 2020. O estudo, na superfície, tem uma aparência bastante técnica, inclusive com o cálculo do p-value de uma regressão dos resultados das urnas contra o seu modelo (2020 ou anterior), concluindo ser virtualmente impossível que as diferenças encontradas sejam aleatórias. Ou seja, as urnas anteriores a 2020, supostamente não auditadas, teriam sido manipuladas para dar a vitória ao candidato 13.

O problema é que o argentino calcula médias e faz regressões considerando que as urnas foram distribuídas de maneira aleatória pelo país. O problema é que não foram! Por algum motivo logístico, as urnas de modelo mais recente foram distribuídas para a capital e adjacências. E, no Nordeste (foco principal do trabalho), as capitais votaram mais em Bolsonaro do que em Lula em relação ao interior, levando a uma correlação espúria entre modelo de urna e resultado da votação.

Vejamos o caso de Alagoas, por exemplo. Nesse estado, apenas 15 cidades, de 165, receberam urnas 2020. Já por este número pequeno de cidades já dá para perceber que qualquer estudo estatístico tem sérias limitações. Mas, sigamos. As cidades que receberam essas urnas foram a capital, Maceió, e outras 14 que estão em um raio de, no máximo, 60 km da capital: Jequiá da Praia, Atalaia, Barra de São Miguel, Capela, Coqueiro Seco, Marechal Deodoro, Pilar, Roteiro, Santa Luzia do Norte, São Miguel dos Campos, Satuba e Rio Largo. Dessas 15 cidades, Bolsonaro ganhou em 5 e teve votação acima da média alagoana em outras 5. A inclusão de Maceió na regressão, onde Bolsonaro teve 57,18% dos votos, e que representa 40% das seções eleitorais do estado, por si só já distorce a estatística, dado que a cidade contou com 100% de urnas 2020.

Mas o autor do estudo, supostamente, quis tirar o efeito “capital”, computando os votos somente das cidades com menos de 50.000 eleitores. No caso, somente Maceió e Rio Largo ficaram de fora. O problema é que esse corte não resolve nada, dado que ainda temos o problema geográfico. Ou seja, a região deu mais votos a Bolsonaro, na média, em relação ao restante do estado, e isso acontece também, em média, nos outros municípios limítrofes a Maceió, que são pequenos. Ao fazer o cálculo para “cidades com menos de 50.000 eleitores”, o autor quer passar a impressão de que isso vale para TODO o estado, o que não é verdade, pois somente os municípios listados acima receberam as urnas 2020.

Uma outra forma de ver o problema é comparar a votação nesses municípios em 2022 e 2018. Na tabela abaixo, podemos observar que, grosso modo, o padrão de votação por município se repete nas duas eleições, o que parece de monstrar uma coerência geográfica intertemporal independentemente do modelo de urna utilizado.

Cidades 2022 2018

Jequiá da Praia 50.19% 45.28%

Atalaia 36.12% 31.73%

Barra de São Miguel 51.54% 50.57%

Capela 40.26% 38.29%

Coqueiro Seco 38.91% 38.56%

Marechal Deodoro 55.52% 56.66%

Pilar 44.34% 46.77%

Roteiro 39.39% 33.55%

Santa Luzia do Norte 38.01% 38.73%

São Miguel dos Campos 49.14% 51.13%

Satuba 51.70% 51.04%

Rio Largo 47.98% 49.72%

Maceió 57.18% 61.63%

ALAGOAS 41.32% 40.08%

Não tive tempo de repetir o mesmo estudo acima para os outros estados do Nordeste, onde a diferença entre urnas se repete, mas creio que o resultado deve ser semelhante, uma vez que as capitais tendem a votar mais em Bolsonaro do que o interior nesses estados.

Enfim, dá a impressão de que o argentino foi contratado para torturar os números e encontrar algum padrão que pudesse demonstrar algum tipo de viés. O problema é que como as urnas não foram distribuídas de maneira aleatória, qualquer estudo precisa considerar o padrão de distribuição das urnas, o que não foi feito.

Na tabela abaixo, mostro as diferenças entre os votos recebidos por Bolsonaro em “urnas 2020” e nas outras. Podemos observar que o “problema” concentra-se na região Nordeste e no Amazonas, onde somente a capital, Manaus, recebeu “urnas 2020”. E, como sabemos, Bolsonaro ganhou em Manaus e perdeu nas outras cidades. Podemos inferir que esta questão geográfica se repete em todos os estados da região Nordeste. Aliás, há vários estados onde ocorre o inverso, ou seja, há mais votos para Bolsonaro em urnas anteriores a 2020. Fica a questão: por que a manipulação se daria somente em alguns estados, principalmente no Nordeste?

Enfiando a cabeça na terra

O presidente do Chile teve uma excelente ideia: além dos trabalhadores contribuírem para a sua própria aposentadoria, as empresas também serão chamadas a aportar uma contribuição para os seus empregados.

Boric certamente não conversou com Dilma Rousseff, ex-presidente do mesmo espectro político, que introduziu a desoneração da folha de pagamento de setores escolhidos, justamente porque a carga tributária sobre a folha de pagamento estava minando a capacidade de geração de empregos formais. Essa desoneração vem sendo renovada desde então e, provavelmente, continuará sendo pelos séculos sem fim.

As aposentadorias no Chile são muito baixas, dizem. Eu diria que as aposentadorias no Chile são proporcionais à contribuição dos trabalhadores. Não tem mágica: para aumentar o valor das aposentadorias precisa aumentar as contribuições. Boric teve uma brilhante ideia para atingir esse objetivo, ideia esta que já foi abandonada pelo governo brasileiro.

Como o Estado brasileiro “resolveu” o problema das aposentadorias? Simples: enfiamos a cabeça na terra e fazemos de conta que o INSS é sustentável ao longo do tempo. Ano após ano, cobrimos os déficits com receitas vindas de outros fatos geradores. Ou seja, subsidiamos as aposentadorias com outros tributos e com o aumento da dívida pública. No final do processo, quando essas duas fontes de recursos secarem, sempre teremos a inflação para queimar o valor das aposentadorias. Vivemos em um mundo de faz-de-conta, em que os trabalhadores têm a ilusão de que podem se aposentar com pequenas contribuições.

Os protestos no Chile em 2019 tiveram como origem, em grande parte, a insatisfação com o valor das aposentadorias. Boric foi eleito com a promessa de “resolver” o problema. Na aparência, o problema estará resolvido. Na realidade, o Chile resolveu enfiar a cabeça na terra, como nós fazemos por aqui.

Desculpa de perdedor

O presidente deu o ar da graça ontem, finalmente, após quase 48 horas do anúncio do resultado da eleição. Não admitiu explicitamente a derrota, mas autorizou, segundo o seu ministro da Casa Civil, o início da transição de governo.

Em sua curtíssima manifestação, Bolsonaro levantou apenas um ponto: a injustiça do resultado eleitoral e o direito de manifestação de seus apoiadores, ainda que tenha condenado seus métodos.

Já escrevi ontem sobre os “métodos” de manifestação usados pelos bolsonaristas, e não precisa o presidente vir dizer que eles têm “direito” a se manifestar. O direito de manifestação é garantido pela Constituição. Vou me ater, portanto, ao ponto da “injustiça”.

O presidente não especificou porque considerou “injusto” o resultado eleitoral. Podemos apenas, portanto, elocubrar sobre as suas razões. Consigo pensar em três: 1) O STF ter permitido que Lula concorresse ao levantar as suas condenações, 2) O TSE ter agido de maneira parcial durante a campanha, apoiando implicitamente o seu adversário e 3) Ter havido fraude na apuração dos votos.

Começando pelo terceiro ponto, é de se notar que a palavra “fraude” sumiu do discurso de Bolsonaro e das redes bolsonaristas. O ministério da defesa (órgão do Poder Executivo) foi destacado para fazer uma “auditoria paralela”, e até agora não se manifestou. Ou seja, para aqueles que, como eu, achava que a carta da fraude seria usada, foi uma surpresa positiva. Ao menos essa questão mais, digamos, técnica, foi descartada. Sobraram as duas hipóteses iniciais, que são políticas.

Antes de comentá-las, vou trazer aqui de volta o gráfico que, para mim, mostra tudo e não esconde nada: a popularidade líquida dos governos (ótimo/bom menos ruim/péssimo).

Nos pontos em vermelho, temos a popularidade líquida de cada governo no mês da eleição. Observem que, em todos os casos em que houve a reeleição do incumbente (1998, 2006 e 2014) ou a eleição do sucessor do mesmo partido (1994 e 2010), a popularidade líquida estava positiva. Se Bolsonaro fosse eleito, seria a primeira vez que um incumbente seria reeleito com popularidade líquida negativa. Ele quase chegou lá, porque sua popularidade melhorou com a campanha eleitoral e com as “bondades eleitorais”, mas não foi o suficiente para ultrapassar essa barreira.

Qualquer outra explicação para a derrota eleitoral do presidente precisaria justificar porque a maioria dos eleitores deveria reconduzir ao cargo um presidente impopular. Eu mesmo, que acabei votando em Bolsonaro, acho seu governo, no máximo, com muito boa vontade, regular. Na área econômica, conquistas como a Reforma da Previdência, a independência do BC e o marco do saneamento são ofuscadas pela depredação do teto de gastos e pela sabotagem da Reforma Tributária ampla que estava sendo discutida no Congresso. Sem contar a sabotagem da privatização do Ceagesp, coisa atravessada na garganta dos paulistanos. E olha que estou deixando de fora questões não econômicas, como a vacinação contra a Covid, em que Bolsonaro fez de tudo para desacreditar a campanha, inclusive fazendo questão de não se vacinar.

Acima estão percepções que construí ao longo dos últimos 4 anos. Cada um terá as suas próprias, e o resultado final estará no gráfico acima. Bolsonaro colheu o que plantou, e isso não tem nada a ver com o STF ou com o TSE.

O STF devolveu os direitos políticos a Lula, e isso pode ou não ter sido justo. O ponto é saber o quanto isso influenciou nas eleições. Pode ser, inclusive, que um outro candidato que não Lula tivesse um resultado ainda melhor. Quem sabe? Em 2018, no auge do antipetismo, com Lula na prisão e Bolsonaro ainda uma promessa, Haddad obteve 45% dos votos válidos. O fato é que, por mais que tenha sido injusta a ação do STF (e “injustiça”, neste caso, é um termo relativo, porque, para muitos, a prisão de Lula é que tinha sido injusta), é realmente difícil relacionar este evento com o resultado das eleições.

Com relação ao segundo ponto, penso que um teórico “apoio” do TSE ao candidato Lula teria efeito muito limitado sobre a votação. O caso das inserções transferidas para Lula como direito de resposta, por exemplo, ignora todo o resto, inclusive a campanha nas redes sociais, que foram o motor da vitória de Bolsonaro em 2018. O problema de Bolsonaro não foi não ter o tempo de TV, foi não ter o que mostrar no tempo de TV, a não ser denegrir o seu adversário. Portanto, mesmo que o TSE tenha implicitamente apoiado Lula, avalio que este “apoio” teria um efeito muito limitado sobre o resultado final da campanha.

Como todo time que perde campeonato, são muitas as teorias levantadas para justificar o mau resultado, inclusive o pênalti não dado pelo juiz. O fato nu e cru, no entanto, está no gráfico acima: Bolsonaro não tinha popularidade suficiente para se eleger. O resto é desculpa de perdedor.

Fim de governo melancólico

O MTST bloqueava avenidas para chamar a atenção da sociedade para os “problemas sociais”. Eram, com razão, chamados de barderneiros, impedindo o direito de ir e vir de cidadãos que não tinham nada a ver com aquilo.

Obviamente, os bloqueios de estradas por parte de caminhoneiros devem ser igualmente condenados. Afinal, os fins não justificam os meios, ou a causa não justifica a baderna. Os cidadãos presos nas estradas não têm nada a ver com aquilo.

É só óbvio que o silêncio constrangedor de Bolsonaro, fechado em copas no Palácio, dá margem a esse tipo de manifestação. Fim de governo melancólico.