Bastaram três dias para uma parcela da opinião pública “descobrir” que o PT talvez não seja a tábua de salvação da democracia brasileira contra os “arreganhos autoritários” de Bolsonaro. Sejamos justos: a tal “vocação para o arbítrio” do ex-presidente se limitou à devoção ao coronel Ulstra e às invectivas contra Alexandre de Morais sobre um caminhão de som. O governo Bolsonaro não mudou uma vírgula da estrutura de governo a fim de lhe facilitar a perseguição de adversários políticos, que é a essência das ditaduras. No fim, como dolorosamente descobriram os bolsonaristas acampados na frente dos quartéis, Bolsonaro não passava de um ditador em potencial fake.
Segundo a definição da AGU, a nova Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia vai combater a desinformação em dois campos: políticas públicas e agentes públicos. A definição do primeiro certamente tem em mente a campanha de desinformação que ocorreu durante a vacinação contra a Covid. A segunda, deve ter como alvo a campanha de desinformação a respeito das urnas eletrônicas e os ataques a membros do STF. Ambas até podem ter o seu mérito, não é objetivo deste post discutir este ponto. A questão, como sempre, é quem define o que é “desinformação”. Ou, de maneira mais direta, quem define o que é mentira.
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres”. Este era o versículo predileto de Bolsonaro, o que, por suposto, o colocava ao lado daqueles que defendem a “verdade”. Se, por outro lado, os petistas se arvoram no direito de definir oficialmente o que é “verdade”, temos, então, um problema. Com Pilatos, perguntamos: “o que é a verdade?”
Seria muito reconfortante conhecermos “a verdade”. Não haveria disputas nem guerras. Todos concordaríamos sobre como resolver os problemas. Este é o conforto que as religiões nos dão, o de “conhecer a verdade”. Ocorre que a tal “verdade” encontra-se soterrada sob os escombros de nossas paixões. Soberba, ódio, amor, preferências inatas, experiências traumáticas levam cada ser humano a ter e defender a sua própria “verdade”.
A “ciência” é, frequentemente, chamada a testemunhar em favor da “verdade”. Sim, a ciência busca a verdade. O problema não é a ciência, mas os cientistas. Como seres humanos, os cientistas também são vítimas de suas paixões. A construção da verdade científica depende da interação dos cientistas entre si, cada um defendendo o seu feudo. Se os políticos que enchem a boca para falar que estão ao lado da “ciência” soubessem do que a salsicha é feita, talvez tomassem mais cuidado. Os cientistas também amam.
De tudo isso, resta uma convicção: a “verdade”, qualquer que seja, não pode ser determinada de cima para baixo em uma sociedade democrática. Um Ministério da Verdade só cabe em sociedades guiadas por um espírito autoritário. Uma “verdade revelada” por uma autoridade só faz sentido quando se reconhece naquela autoridade um cunho divino, não submetido às paixões humanas. Fora isso, a cacofonia de várias verdades disputando o primado de ser “a verdade” é a característica do reino dos homens. À perplexidade de Pilatos, a única resposta possível é o debate democrático, que passa longe de termos uma “verdade” determinada por um órgão do governo.