A natureza da autonomia do BC

A autonomia legal do BC tem sido atacada por Lula e pelo PT. Segundo Lula, a autonomia legal seria uma “bobagem”, pois, mesmo sem esssa formalidade, o BC teria sido completamente autônomo durante a sua gestão anterior. A contradição é óbvia: se é para manter a autonomia, que diferença faz se for legal ou não? Por que esse cavalo de batalha em torno da autonomia legal?

O jornalista João Borges, em seu recém lançado livro Eles Não São Loucos, explica porque: Lula efetivamente tentou influenciar a política monetária, e quase demitiu Meirelles mais de uma vez. Recentemente, Lula afirmou que não se metia no trabalho de Meirelles, “mas a gente conversava”. Borges mostra que tipo de conversa o presidente da República mantinha com o presidente do BC.

A autonomia do BC é praticada em todo lugar sério do mundo, mas pouco compreendida por aqui. Afinal, porque uma área de um governo democraticamente eleito teria autonomia em relação a esse mesmo governo? A política econômica do governo eleito não deveria incluir também a política monetária? Além disso, por que manter a autonomia do BC em relação ao governo para jogá-lo no colo do sistema financeiro? Autônomo em relação a quem mesmo?

Há aqui um falso paralelismo entre governo e mercado financeiro. A autonomia deve se dar em relação a quem tem o monopólio de criação da moeda. No Estado moderno, a moeda é lastreada na credibilidade do Estado, que é o único ente que tem o monopólio da força e, portanto, é quem tem o poder de forçar a aceitação universal da moeda em sua jurisdição. No Brasil, a aceitação do real para todas as transações é obrigatória por força de lei. Portanto, é preciso muito cuidado para que não haja abuso desse poder.

Um pouco de história. O governo militar consagrou em lei o chamado “orçamento monetário”, definido pelo CMN. No princípio apenas um instrumento de controle do tamanho da base monetária, com vistas a controlar a inflação, o orçamento monetário passou a ser um instrumento paralelo ao orçamento aprovado pelo Congresso. Seu canal de atuação na economia real era a chamada “conta movimento” entre o Banco do Brasil e o Banco Central. Ou seja, políticas públicas financiadas pelo Banco do Brasil eram automaticamente financiadas pelo Banco Central, que tinha a obrigação de imprimir dinheiro suficiente para cobrir o déficit do BB, de acordo com o orçamento monetário aprovado pelo CMN. Não precisa ser muito esperto para sacar que a coisa se tornou um buraco sem fundo, e se perdeu o controle da emissão de moeda, sendo este um dos motores da hiperinflação que nos afligiu à época.

Portanto, a governança do BC exige que sua autonomia se dê em relação ao seu único “controlador”, aquele que tem o poder de nomear diretores e demiti-los, e quem tem o potencial interesse de imprimir moeda para financiar políticas públicas. É aí que se encontra o real e único conflito de interesses.

O sistema financeiro tem também seus interesses, óbvio, mas não possui os instrumentos de poder que lhe permitam influenciar o BC. O fato de diretores do BC serem, em parte, oriundos do mercado, se deve ao seu conhecimento e experiência, e não configura conflito de interesses. Afinal, quem nomeia é o governo, não o mercado.

Um canal muitas vezes citado de conflito de interesses é o relatório Focus, que seria um instrumento usado pelo mercado para forçar decisões do BC. Segundo esta linha, os bancos chutariam a inflação para cima, de modo a levar o BC a praticar taxas de juros mais altas. Bem, isso seria verdade se fosse verdade. No gráfico abaixo, podemos ver que, de 23 anos de vigência do sistema de metas, o Focus errou a inflação para cima em apenas 7 anos. E quando errou a inflação para baixo, foi muito para baixo, como nos anos de 2002, 2015 e 2020. A julgar por esse histórico, o mercado parece chutar a inflação para baixo, não para cima. Fica difícil defender que o Focus seja um instrumento de “domínio” do mercado financeiro sobre o BC.

Enfim, toda essa discussão é sintoma de um arcabouço monetário ainda muito frágil, que precisa evoluir muito para ganhar a confiança dos agentes e econômicos e, assim, permitir taxas de juros reais mais baixas.

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