O gambito do Copom

Em sua primeira reunião do ano, em 01/02, o Copom fez aquilo que todo BC sério faria se estivesse na mesma situação: manteve a polítia monetária apertada porque as expectativas de inflação estão muito longe da meta. Seguiu-se um barulho ensurdecedor do presidente e de toda a claque que o segue. Haddad fez biquinho, afirmando que o BC havia ignorado o “grande pacote fiscal” anunciado duas semanas antes com pompa e circunstância.

Roberto Campos Neto, apesar de ser um voto em nove no Comitê, assumiu a tarefa institucional de aparar arestas. Em primeiro lugar, fez introduzir uma frase na ata do Comitê, publicada uma semana depois, em que faz menção ao “grande pacote fiscal” de Haddad. Em seguida, fez uma jogada de risco, e decidiu se expor em um programa como o Roda Viva. Na minha visão, saiu-se bem na transmissão de uma mensagem de paz institucional. Alguns, inclusive, apostaram que o Copom, dali em diante, seria um pouco mais “amigável” às demandas do governo.

De nada adiantaram esses movimentos. O Copom e seu presidente não mereceram o benefício da dúvida por parte de Lula e de seu governo. A pressão acalmou durante alguns dias, para voltar com força em seguida, e tornar-se insuportável às vésperas da reunião, com direito a seminário do BNDES com a presença de prêmio Nobel e tudo o mais.

O Copom encontrava-se em uma encruzilhada: ou bem cumpria o seu papel institucional de ponderar o melhor nível para a taxa de juros consideranto a meta que lhe foi dada pelo CMN, ou cedia às pressões. O comunicado de hoje não deixa margem a qualquer dúvida: o Comitê decidiu seguir pelo primeiro caminho, fazendo valer a sua independência. A manutenção da frase “[o Comitê] não hesitará em retomar o ciclo de ajuste caso o processo de desinflação não transcorra como esperado” tem a força de um grito de guerra. Imagine o que aconteceria se o BC, não satisfeito em manter a taxa no atual patamar, a tivesse elevado…

Com o BC pintado para a guerra, resta ao governo quatro alternativas:

1) Procurar, de alguma forma, destituir cinco diretores do BC agora (em um colegiado de nove). Note que não basta remover Campos Neto. Ele é apenas um voto no Copom, e as decisões têm sido unânimes. A única vez em que não houve unanimidade com essa diretoria foi em setembro, quando o Comitê decidiu manter a taxa em 13,75%, encerrando o ciclo de alta. Na ocasião, houve dois votos por um aumento adicional de 0,25%… Ou seja, RCN é o menor dos problemas do governo.

2) Mudar a meta para a inflação de 2024 em diante. Com isso, teoricamente, o Copom teria espaço para reduzir a taxa de juros. O problema com esse movimento é que a formação das expectativas já considera a meta. Quando o Focus indica uma inflação de 4,1% para 2024, não significa que os economistas que respondem à pesquisa disponham de uma bola de cristal e calculem, com tanta antecedência, qual será a inflação do ano que vem. Lembre-se, estamos somente em março, 2024 está muito distante. O que os economistas fazem? Partindo da meta (que é 3%), avaliam que, com uma certa taxa Selic, a inflação ficará acima da meta em 1,1%. Se a meta for elevada para, por exemplo, 4%, e tudo o mais ficar constante, é só questão de tempo para que as expectativas migrem para 5,1% em 2024 (1,1% acima da nova meta). O problema não é o nível da meta, mas a capacidade/credibilidade do Banco Central de trazer a inflação para a meta, qualquer que ela seja. Esse é o princípio fundamental do sistema de metas de inflação, que trabalha, basicamente, com expectativas. Mudar a meta só bagunça o coreto, sem realmente dar maior espaço para cortes de juros. Aliás, pelo contrário, aumenta a incerteza, que é inimiga do juros baixos.

3) Continuar esperneando, com o objetivo de ter um bode expiatório para o crescimento pífio da economia.

4) Fazer um ajuste fiscal de verdade, que faça com que os agentes econômicos retomem a confiança no governo, permita a reancoragem das expectativas de inflação e, por fim, abra espaço para o início de um ciclo de cortes bastante expressivo da taxa Selic, como tivemos a partir de 2017.

O Copom fez o seu gambito. Vejamos o próximo movimento do governo.

Joaquim Barbosa não serve

O sociólogo Jessé Souza defende, em artigo de hoje, a indicação de um jurista negro para a vaga a ser aberta pela aposentadoria de Ricardo Levwndowski. Mas, ele deixa claro, não pode ser qualquer negro. Precisa ser um legítimo defensor das “causas populares”, e não exercer o cargo para replicar o racismo, travestido de “luta contra a corrupção”. Uma clara alusão a Joaquim Barbosa, primeiro negro a alcançar a suprema corte e estrela máxima do processo do Mensalão.

Alguém como Joaquim Barbosa, apesar de seu exemplo de superação e de suas ideias à esquerda (como ficou claro em suas tentativas de candidatar-se à presidência) não serve. Barbosa cometeu a heresia das heresias, que foi condenar a cúpula do PT por corrupção. E isso seria “reproduzir o falso moralismo das elites brancas”. Foi o suficiente para ser merecedor do fatwa do movimento negro politicamente engajado.

Assim como Bolsonaro tinha o seu “negro de estimação” (assim como o seu índio e o seu gay), Lula também conta com um movimento que, acima de tudo, está ali para defender o “partido das causas populares”, mesmo que isso signifique compactuar com o crime, revestindo-o de belas teorias. No fundo, os negros e outras minorias se deixam usar na pura e simples política partidária.

Pode-se argumentar que a luta contra o racismo é, antes de mais nada, uma luta política. Portanto, para combatê-lo, é preciso engajar-se. Justo. O problema está em confundir o engajamento político com o apoio a determinado partido, como se partido e “causas populares” se confundissem. Joaquim Barbosa, ao condenar a cúpula do PT, não estava sendo racista. Estava cumprindo a lei. Se isso o descredencia para o cargo que ocupou aos olhos de certo movimento negro, fica clara a natureza desse movimento.

Carteirada

Existe uma certa (e natural) reverência pelo “curriculum” das pessoas. Afinal, se a pessoa conquistou um título, é porque deve ser muito merecido. A partir daí, o que a pessoa fala transforma-se em uma espécie de “lei”. O píncaro da glória ocorre quando a pessoa é tratada como “especialista” pela imprensa. Neste ponto, não há o que se discutir, falou, tá falado.

Esta breve introdução vem a respeito de dois personagens que participaram anteontem do seminário do BNDES, que era sobre política fiscal, mas acabou sendo sobre política monetária: Joseph Stiglitz e André Lara Resende. Stiglitz é Prêmio Nobel, enquanto Lara Resende é um dos “pais do Real”. Os perfis de esquerda estão que nem pinto no lixo, repercutindo o “pensamento” dos dois como se fossem as tábuas trazidas por Moisés do Monte Sinai. E ai de você se tentar argumentar com “um Prêmio Nobel” ou com “um dos pais” do plano que simplesmente debelou a hiperinflação no Brasil? Não tem nem por onde começar.

Trata-se de uma falácia, claro. Joseph Stiglitz ganhou o seu Nobel por um trabalho de assimetria informacional, nada a ver com macroeconomia. Além disso, para cada Nobel que defende o que Stiglitz defende, há 10 que defendem o oposto. “Pensamento econômico mainstream” recebe este nome não é à toa.

O mesmo para Lara Resende. Os outros pais do Plano Real (Persio Arida, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan) certamente não concordam com as sandices que Lara Resende vem defendendo. E são igualmente “pais do Plano Real”. Aliás, estão em maioria, como sempre.

A autoridade concedida por um título muitas vezes serve de manto para preferências meramente ideológicas. Economistas (aliás, como qualquer cientista) têm suas próprias preferências, e você encontrará opinião para todos os gostos, sempre com um “carimbo de credibilidade”, dado por um título pomposo.

Como distinguir o certo do errado? Ou, pelo menos, aquilo que mais se aproxima da realidade? O chamado “mainstream”, que é o conjunto das hipóteses mais amplamente aceitas, dão uma boa pista. Nunca se trata de preto no branco, ainda mais quando se trata de uma ciência humana, como a economia. Mas indica mais ou menos a fonte de onde é mais seguro beber.

Além disso, faz sentido observar onde foi aplicado o receituário do “iluminado” que está pontificando, e quais foram os resultados. Depois do que aconteceu aqui mesmo no Brasil entre os anos de 2013-2016, não deveria haver muita dúvida a respeito.

Títulos, sem dúvida, são importantes e indicam que a pessoa, ao menos, tem preparo. Mas está longe de garantir que esteja certa 100% do tempo a respeito de tudo. O argumento de autoridade, desacompanhado de um racional minimamente embasado na realidade, não passa de uma carteirada.

A inflação é só um detalhe

Há exato um ano, escrevi um post intitulado A Argentina, o FMI e o sonho do financiador perpétuo. Naquele post, comento um artigo de autoria de Joseph Stiglitz no Valor Econômico, em que o Prêmio Nobel saúda o recém-assinado acordo entre a Argentina e o FMI como sendo um “divisor de águas”. Segundo Stiglitz, ao não estabelecer metas muito exigentes para los hermanos, o FMI estaria, finalmente, deixando espaço para o crescimento de países em dificuldades, o que, no final, permitiria cumprir o acordo com muito menos sofrimento.

Naquele artigo, Stiglitz faz uma única menção ao risco inflacionário, afirmando que “pode ser um problema” para economias de mercado. E só. Bem, há um ano, quando Stiglitz escreveu o artigo, a inflação da Argentina estava em 50% ao ano. Hoje está em 100%.

Mas quem está preocupado com a inflação, se o que realmente importa é fomentar o crescimento? E como a Argentina está se saindo nesse quesito? Segundo o último report da OCDE, de novembro do ano passado, a Argentina deve crescer 0,5% em 2023 e 1,8% em 2024. Não parece algo lá muito brilhante.

O Prêmio Nobel também afirmou que as altas taxas de juros estão “exacerbando” a inflação. O presidente da Turquia achava a mesma coisa, e reduziu as taxas de juros na marra em meados de 2019. Na época, a inflação rodava a 10% ao ano. Hoje está em 55%. Not a good experience.

Joseph Stiglitz foi o convidado de honra de um seminário patrocinado pelo BNDES de Aloísio Mercadante e pela FIESP. Não parece terem sido convidados economistas do mainstream. O objetivo era, claro, produzir manchetes como a que abre este post, de modo a aumentar a pressão sobre o BC.

Sinceramente, acho mais que o BC tinha que baixar a Selic para uns 6 ou 7%. Quem sabe Lula esteja certo, e devamos deixar de lado esses ultrapassados livros de economia? Se a inflação subir, paciência. Afinal, tenho como me proteger. E sempre haverá um inimigo externo em quem colocar a culpa.

Hoje aprendemos que…

Tem coisa melhor do que seguir perfil de economista petista? Não, não tem. São muitas coisas que aprendemos todos os dias. Neste tuíte do Marcio Pochmann, por exemplo, aprendemos que:

1) Bancos públicos, mesmo sob a direção de presidentes indicados pelo governo do PT, formam um oligopólio com os bancos privados.

2) Para os bancos, basta ter uma remuneração do seu capital acima da inflação.

3) O instituto que cuida da aposentadoria dos brasileiros chama-se INPS.

4) “A” antes de substantivo masculino leva crase.

Viu só quanta coisa aprendemos em menos de 140 caracteres?

Popularidade de Lula em queda

O Globo repercute pesquisa IPEC de popularidade de Lula. A manchete compara com o início do mandato de Bolsonaro e com o início dos mandatos anteriores do próprio Lula. A única coisa que não faz é comparar com o número anterior do próprio Lula, de janeiro. E essa é a única comparação que importa.

Em janeiro, o próprio IPEC divulgou pesquisa em que dava 55% de ótimo/bom e 21% de ruim/péssimo para Lula. Aprovação líquida: +34 pontos percentuais. Hoje, o mesmo instituto dá 41% de ótimo/bom e 24% de ruim/péssimo. Aprovação líquida: +17 pontos percentuais, queda de 17 pontos percentuais em dois meses.

É normal que haja queda de aprovação no início do governo. Uma coisa são as expectativas, outra bem diferente é o dia a dia do governo. No início do governo Bolsonaro, pesquisa da XP/Ipespe indicou queda de +20 para +13 pontos percentuais entre janeiro e março de 2019. No entanto, queda de 17 pontos percentuais, como é o caso agora, parece ser acima do normal.

Vamos aguardar as próximas pesquisas de popularidade. Se indicarem quedas adicionais, vamos conhecer o que é populismo de verdade.

O destino das nações

Vou colar, a seguir, um trecho do livro “Por que as nações fracassam”, de Daron Acemoglu. Volto em seguida.

“Antes de 1928, a maioria dos russos vivia no campo. A tecnologia usada pelos camponeses era primitiva, e havia poucos incentivos para aumentar a produtividade. […] Sendo assim, havia um imenso potencial econômico não aproveitado para a realocação dessa força de trabalho da agricultura para a indústria.

A industrialização stalinista fez um aproveitamento brutal desse potencial. Por decreto, Stálin fez com que esses recursos muito mal utilizados fossem realocados para a indústria, onde podiam ser empregados de maneira mais produtiva, ainda que a indústria em si fosse organizada de maneira pouco eficiente em relação ao que podia ser realizado. Na verdade, entre 1928 e 1960, a renda nacional cresceu 6% ao ano, provavelmente o surto de crescimento mais rápido na história até então. Esse crescimento econômico acelerado não foi propiciado por mudanças tecnológicas, e sim pela realocação de força de trabalho e pelo acúmulo de capital por meio da criação de novas ferramentas e fábricas.

O crescimento foi tão rápido que enganou gerações de ocidentais, não apenas Lincoln Steffens. Enganou a CIA, nos Estados Unidos. Enganou os próprios líderes soviéticos, como Nikita Kruschev, que numa célebre frase, num discurso para diplomatas ocidentais em 1956, se gabou de que “nós vamos enterrar vocês [o Ocidente]”. Ainda em 1977, um livro didático acadêmico importante, escrito por um economista inglês, afirmava que as economias de estilo soviético eram superiores às capitalistas em termos de crescimento econômico, oferecendo pleno emprego e estabilidade de preços e até mesmo produzindo pessoas com motivações altruístas. O pobre e velho capitalismo ocidental só era melhor quando se tratava de oferecer liberdade política. Na verdade, o livro didático mais utilizado para ensinar economia nas universidades, escrito por Paul Samuelson, vencedor do Nobel, trazia múltiplas previsões sobre o domínio econômico iminente da União Soviética. Na edição de 1961, Samuelson previu que a renda nacional soviética poderia já ultrapassar a dos Estados Unidos em 1984, mas que havia grandes chances de isso ocorrer até no máximo 1997. Na edição de 1980, houve pouca mudança na análise, embora as duas datas tenham sido adiadas para 2002 e 2012.”

Lincoln Steffens, citado por Acemoglu, era um jornalista crítico ao capitalismo, que participou de uma missão diplomática norte-americana à recém criada União Soviética. De volta de seu encontro com Lênin, criou a frase que o marcaria: “eu vi o futuro, e ele funciona”.

Muitos, hoje, apontam a China como modelo de crescimento econômico, sério candidato a potência hegemônica. Não consigo deixar de lembrar do trecho acima. Ainda mais quando leio notícias como essa de hoje, em que o governo chinês vai usar “inteligência artificial” para melhor planejar a economia. Claro, os dados virão compulsoriamente de seus cidadãos. Algoritmos tomarão o lugar de milhões de seres humanos nas decisões econômicas. Qual o risco de dar certo?

Quando Deng Xiao Ping iniciou a revolução capitalista chinesa, no final da década de 70, cunhou a célebre frase: “não me importa a cor do gato, desde que cace o rato”. Com isso, deu certa liberdade de empreendimento, o que, ao lado da migração de milhões do campo para as indústrias, alavancou a economia chinesa. Há já algum tempo, Xi Jiping vem dando meia-volta nessa política, ao centralizar cada vez mais o processo decisório. Pode levar alguns anos, ou algumas décadas ainda, mas a China terá o mesmo destino da União Soviética. Quem viver, verá.

Uma luta ultrapassada

A manchete explora o sensacionalismo, mas a entrevista de Xico Graziano, ex-presidente do INCRA na gestão FHC, ele mesmo agricultor, vai muito além. Segue um resumo em quatro pontos:

– Reforma agrária é uma pauta do século XX. Hoje não faz mais sentido, pois não há mais latifúndio improdutivo no Brasil.

– Reforma agrária também não faz sentido do ponto de vista social, pois é muito caro comprar terras para distribui-las. Sem contar que 70% a 80% dessas terras são vendidas pelos sem-terra em dois anos após a posse.

– Na falta de terras improdutivas, o MST se transmutou de uma organização para a reforma agrária em uma organização com o objetivo de mudar o regime agrário capitalista em um cooperativismo camponês.

– O principal fator de produção no campo, hoje, não é a terra, mas a tecnologia. Um grande programa educacional para o homem do campo faria muito mais diferença do que a distribuição de terras.

O PT, formado pela combinação de sindicalismo de porta de fábrica da década de 70 com intelectuais formados nas discussões econômicas da década de 60, como sempre está lutando uma luta ultrapassada.

Risco sistêmico e intervenção governamental: o capitalismo em cheque

Em toda crise bancária, é o mesmo lenga-lenga: quando a coisa pega, o sistema financeiro não sobrevive sem o socorro do governo. Neste momento, todo liberal-selvagem precisa ajoelhar no milho keynesiano, e admitir que, no final do dia, o capitalismo não sobrevive sem uma mãozinha do governo.

Mas será isso mesmo?

Para entender por quê essa imagem é falsa, precisamos entender o que é um banco.

Esqueça o banco que vende fundos de investimento e seguros. Isso aí qualquer um pode fazer. Vamos nos concentrar na essência da atividade bancária, que consiste em tomar dinheiro de um lado e emprestar do outro.

Antes de avançar, vamos distinguir o banco do mercado de capitais. No mercado de capitais, não existe a intermediação dos bancos. Quando você compra um título público, uma debênture, um CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários) ou um Fiagro (Fundo de Investimento no Agronegócio), você está emprestando dinheiro diretamente para uma empresa, conforme a figura 1. O banco pode até atuar como um intermediário, mas ele recebe uma comissão pelo serviço, nada mais. O seu risco é a empresa não conseguir pagar esse empréstimo. No mercado de capitais, a relação é direta entre o investidor e o tomador de empréstimo. Essa relação é representada por um título de dívida.

No sistema bancário, por outro lado, os bancos são os responsáveis por tomar os empréstimos e emprestarem para as empresas e para os indivíduos. É o que podemos observar na figura 2: você investe no banco, comprando CDBs, Letras Financeiras, Caderneta de Poupança, ou simplesmente deposita seu dinheiro na conta corrente. O banco, por sua vez, pega esse dinheiro e empresta para as empresas, assinando um contrato de empréstimo.

Qual a diferença do primeiro para o segundo esquema? Simples: no primeiro, o seu risco de crédito (de não receber seu dinheiro de volta) é o governo ou a empresa. No segundo, o seu risco de crédito é o banco. Pouco importa o que o banco vai fazer com o seu dinheiro, desde que ele seja devolvido quando devido. Vamos, então, examinar mais de perto como o banco funciona. Para tanto, veja a figura 3.

O banco recebe um capital inicial (no exemplo, são R$ 8. Com esse capital, o banco tem a permissão de tomar emprestado e emprestar R$ 100, segundo a regulação brasileira (isso é uma simplificação grosseira, só para entender o processo). Esse índice de 8% é o chamado Índice de Basiléia. Trata-se de uma regra prudencial, para limitar a alavancagem dos bancos. Porque, em tese, não haveria limite para o montante que os bancos poderiam tomar emprestado e emprestar. Só que, quanto maior for o montante, maior o risco. O capital mínimo serve justamente para cobrir o risco de inadimplência.

Imagine, por exemplo, que dos R$ 100 que o banco emprestou, receba de volta somente R$ 95. Os R$ 8 do capital seriam suficientes para cobrir esse prejuízo de R$ 5. Os acionistas precisariam capitalizar o banco em R$ 5 para retomar o capital mínimo prudencial, mas o pagamento dos credores (o pessoal que depositou dinheiro no banco) não dependeria dessa capitalização.

Agora, vamos ao exemplo concreto do Silicon Valley Bank, que quebrou nessa semana. Veja a figura 4 (os números são fictícios, somente para entender a natureza do problema).

O SVB recebeu depósitos dos seus clientes (na maioria, start ups de tecnologia) no valor de $ 100. Com esse dinheiro, comprou títulos, também no valo de $ 100. Até aí, tudo certo. No entanto, como sabemos, as taxas de juros subiram de quase zero para quase 5% no último ano. Quando isso acontece, esses títulos (todos com taxas prefixadas), se desvalorizam. No exemplo, se desvalorizaram 30%, o que não deve estar muito distante da realidade. Assim, ocorreu um descasamento entre ativos (os títulos que o banco comprou) e passivos (os credores do banco). Quando o banco anunciou que estava chamando uma nova capitalização (os $ 8 não seriam suficientes para cobrir o rombo), uma onda de desconfiança tomou conta dos depositantes (a maioria não coberta pelo FDIC, o FGC deles), o que causou uma corrida de saques, inclusive facilitados pela própria tecnologia embarcada nos celulares. Obviamente, não haveria dinheiro para todos, por causa do descasamento (havia $ 100 depositados, mas somente $ 70 em ativos), o que fez o Fed decretar o fechamento do banco, cobrir todos os depósitos com o seguro do FDIC e estender uma linha de crédito emergencial para todos os bancos que enfrentassem a mesma dificuldade.

É neste último ponto que se apegam os que acusam o capitalismo de funcionar apenas até a página 2. Quando o bicho pega, todo mundo corre para o colo do governo.

Ocorre que bancos não são um negócio como outro qualquer. Quando a Americanas apresentou um rombo de bilhões (ninguém sabe ainda o real tamanho, pois a empresa ainda não publicou balanço), o governo não saiu correndo para socorrer a empresa. O lugar da empresa de varejo que se vai é ocupado pelos seus concorrentes, e vida que segue. Os fornecedores terão perdas, os funcionários perderão seus empregos, mas é questão de tempo para que fornecedores e funcionários encontrem lugar na concorrência. E, mesmo que não encontrem, isso não coloca a economia como um todo em risco.

Banco, por outro lado, é um negócio diferente. Vejamos a figura 5.

Podemos observar que há uma espécie de teia ligando bancos, tomadores de empréstimos e depositantes. Um desses nós que porventura falhe pode causar um efeito dominó, em que outros pontos do sistema falham porque o nó anterior também falhou. Além disso, o sistema todo funciona na base da confiança: mesmo que não haja realmente um problema, se a desconfiança cresce, pode ocorrer uma corrida de saques que tem o potencial de desestabilizar todo o sistema. Foi basicamente o que ocorreu com o SVB. O Fed entrou para tranquilizar os depositantes, ao garantir que outros bancos do sistema não iriam seguir pelo mesmo caminho.

O sistema financeiro funciona como a corrente sanguínea no corpo humano. Qualquer interrupção em uma artéria importante pode levar a consequências sistêmicas, que podem terminar na morte de toda a economia. O crédito, que é o encontro entre tomadores e doadores de dinheiro, é a base de todo o sistema econômico capitalista. E esse sistema está baseado em uma teia sensível, alavancada, que só funciona na base da confiança.

Por isso, é necessário que, quando algum ponto desse sistema se mostre instável, a autoridade monetária do país intervenha, sob pena de retrocedermos séculos, para uma economia sem crédito. E porque precisa ser a autoridade monetária (governo) a intervir? Por que o sistema não consegue atingir estabilidade por si próprio? Simples: a emissão do dinheiro de um país é monopólio do governo. Portanto, é o governo que, em última instância, precisa garantir a confiabilidade do sistema monetário. Nenhum agente privado possui este poder. A moeda fiduciária é baseada na confiança dos agentes no governo. E este precisa agir quando o sistema se torna instável por qualquer motivo.

Isso não significa, obviamente, que, então, o governo deveria intervir em toda e qualquer âmbito da atividade econômica. Pelo contrário. A iniciativa privada, via de regra, produz melhor bens e serviços. E no caso dos bancos, empresta dinheiro melhor também. Mas, quando se trata de proteger o sistema financeiro e, em última instância, a economia, o governo é insubstituível por sua própria natureza de emissor e garantidor último da moeda. Daí a extrapolar para o conjunto da atividade econômica, vai uma distância estelar.

A Lei de Newton aplicada à economia

Esse caso do novo limite de juros para o crédito consignado é um dos raros exemplos, raríssimos mesmo, em que uma ação governamental tem efeito imediato sobre as decisões dos agentes econômicos. No caso, a relação de causa e efeito foi óbvia e à vista de todos: a oferta cessou imediatamente após o estabelecimento do preço em patamar artificial.

Nem sempre é assim. Aliás, quase nunca é assim. Decisões governamentais no âmbito econômico costumam levar meses, ou mesmo anos, para mostrar todas as suas consequências. Isso acontece porque a economia segue a lei de Newton (a toda ação segue uma reação de igual força na direção contrária), mas com defasagens temporais. Os agentes econômicos não são bolinhas rígidas em uma mesa de bilhar. Antes, são seres humanos que tomam decisões em ambientes de incerteza e com informação incompleta. Alguns são mais rápidos, outros são mais lentos, outros ainda simplesmente tomam a decisão errada. Mas isso não impede que, ao fim e ao cabo, as decisões governamentais tenham o seu efeito (benéfico ou deletério) sobre o ambiente macroeconômico.

Essa defasagem entre ação e reação dá margem às narrativas. Como não é óbvia a ligação entre uma decisão e seus efeitos, cada um conta a história que quer. Por exemplo, a grande recessão de 2015-2016 teria sido fruto da Lava-Jato e da queda dos preços das commodities. Nada a ver com as seguidas intervenções do governo Dilma no funcionamento dos mercados e com a verdadeira usina de cremação de dinheiro representada pelos empréstimos do BNDES e pelos projetos da Petrobras.

Como distinguir entre narrativa e a verdadeira lei de Newton? Pelos resultados de longo prazo. É famosa a foto tirada do espaço, mostrando o contraste entre Coreia do Norte e Coreia do Sul à noite. É a demonstração visual da superioridade do capitalismo sobre o comunismo como gerador de riqueza. Claro, hoje ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende o comunismo da forma como a Coreia do Norte o adota. E, complemento, ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende uma total ausência do governo no sistema econômico. O debate se dá a respeito do nível de intervenção que o governo deveria adotar no sistema capitalista, e de que modo essa intervenção deveria ocorrer.

A resposta é observar como os países capitalistas mais bem sucedidos alcançaram seu sucesso no longo prazo. Uma organização como a OCDE, por exemplo, reúne esse tipo de experiência, colocada à disposição para aqueles países dispostos politicamente a seguir por esse caminho. Lula e o PT desdenham esse tipo de experiência, justamente porque a OCDE propõe uma governança que limitaria a ação do governo. Preferem seguir o roteiro que já não vem funcionando há décadas, aproveitando-se das defasagens temporais entre causa e efeito para achar bodes expiatórios quando a coisa, novamente, não funciona.

A redução dos juros do consignado não foi só uma “trapalhada”. Foi um modus operandi. A natureza do governo do PT foi fielmente representada por essa decisão. A “trapalhada” foi somente escolher uma ação que teve uma reação imediata, não dando tempo para se criar uma narrativa (ainda que alguns balbuciaram algo como “ganância dos bancos”). Lula exigirá, das próximas vezes, mais cuidado em não deixar tão evidente as consequências nefastas das decisões de seu governo.