“Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la.” (Edmund Burke)
Em 27/10/2002, 22 anos, 8 meses e 17 dias depois de sua fundação, o PT chegava ao posto máximo da República. O ex-torneiro mecânico e ex-sindicalista Luís Inácio Lula da Silva conseguia finalmente realizar o sonho da esquerda brasileira. O PT governou o país durante exatos 4.880 dias. Ou 13 anos, 4 meses e 11 dias. Foi o período mais longevo em que um único partido dirigiu os destinos do país desde o fim do Estado Novo, em 29/10/1945, quando Getúlio Vargas deixou o comando do país depois de 5.474 dias no poder.
Vamos acompanhar, ao longo de 8 episódios, o governo do PT do ponto de vista da economia. Veremos que se trata de um todo, e não uma sucessão de períodos sem conexão entre si. Na campanha eleitoral desse ano, alguns esperarão que Lula, em um terceiro mandato, seja o mesmo de seus primeiros anos. Outros esperam que faça o mesmo governo de seu segundo mandato. E todos, que não repita os erros cometidos pela sua sucessora, Dilma Rousseff. No entanto, veremos ao longo destes episódios, que cada fase já estava contida, em germe, na anterior. Não existe uma solução de continuidade, mas apenas o desabrochar de uma flor, cuja semente foi plantada no período anterior.
Grosso modo, podemos dividir o governo do PT, do ponto de vista da economia, em 3 partes:
1) O período que vai de 2003 até a Grande Crise Financeira, em 2008, que chamo de “Anos da Grande Ilusão”. Recebe este nome porque todos se iludiram neste primeiro momento, em que o governo Lula adota políticas macroeconômicas em linha com seu antecessor, fazendo-nos crer que o Brasil havia, finalmente, chegado a um grau de maturidade institucional que nos permitiria dar o grande salto para frente.
2) O período que vai da Grande Crise Financeira até as manifestações de 2013, que chamo de “Anos da Húbris”. O termo “húbris” vem do grego, e serve para designar o excesso de soberba e autoconfiança. Na tradição do teatro grego, significa o desafio aos deuses levado pelo excesso de arrogância e presunção. Daí vem o aforismo: “Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco”. Naquela reportagem daquela famosa capa da Economist, de novembro de 2009, a revista detecta justamente este risco:
3) O período que vai das manifestações de junho de 2013 até o impeachment, que chamo de “Anos da Economia em Vertigem”. O título desse período é autoexplicativo. O país cai vítima justamente dos excessos cometidos no período anterior. A húbris cobra a sua fatura. A mesma Economist detecta essa queda em mais uma capa famosa, de setembro de 2013.
A datação dessas três fases pode variar um pouco, a depender do aspecto da política econômica que estaremos analisando. Mas, de qualquer modo, nos será útil para entender o mindset que determinou o curso das ações tomadas.
Neste primeiro episódio, vamos abordar a pré-história do governo PT, através da análise da Carta ao Povo Brasileiro. Em seguida, veremos a montagem da equipe econômica que tocaria os 3 primeiros anos do governo PT, que fariam possíveis os Anos da Grande Ilusão.
A pré-história: Carta ao Povo Brasileiro
A chamada “Carta ao Povo Brasileiro” é geralmente considerada o ponto de partida do 1º governo Lula do ponto de vista econômico, a prova de que estávamos tratando com um político pragmático, que obedeceria aos cânones ortodoxos da economia. Publicada em 22/06/2002, quando Lula já abria uma vantagem considerável sobre o seu adversário José Serra nas pesquisas (40% contra 21%, segundo pesquisa Datafolha), tinha como intenção acalmar os mercados. Não foi à toa: o dólar atingiu o recorde de R$ 2,85 naquele mês, o que, ajustado pela inflação, corresponderia a R$ 6,00 nos dias de hoje.
A íntegra da carta está aqui. A ideia era mostrar que Lula havia deixado para trás o seu discurso mais raivoso, e iria governar com prudência e sabedoria. Os seguintes parágrafos ilustram o ponto (os grifos são meus):
“O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção […] Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista…”
“Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. […] Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.
“Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.”
“Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.”
“A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.”
Estas palavras deveriam soar como música aos ouvidos do mercado. No entanto, ninguém estava disposto a pagar antes de receber a mercadoria. O dólar ainda bateria R$ 3,95 (mais de R$ 8,00 em dinheiro de hoje) em outubro, para somente a partir daí engatar um lento caminho de desvalorização, que se encerraria somente em 2011.
Antes de continuarmos, gostaria de chamar a atenção para dois pequenos trechos da Carta aos Brasileiros, que acabaram por se perder no meio das juras de amor à estabilidade. Em ambas, vemos as concessões de Lula ao pensamento de sempre do PT: o crescimento econômico como remédio para a dívida pública, crescimento este alcançado com câmbio depreciado e política industrial.
“A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.”
“Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.”
Não são, de maneira nenhuma, afirmações incorretas no seu fim. O crescimento econômico, de fato, é remédio para todos os males. O problema é como se chega ao crescimento econômico. Essas frases deixam entrever uma preferência por fortes políticas anabolizantes, que têm no Estado o grande coordenador econômico do país, e que veremos ganhar corpo ao longo do seu segundo mandato. No programa do PT, vemos com mais nitidez algumas dessas ideias. Por exemplo (os grifos são meus):
“Nosso governo estará chamado a incentivar uma profunda mudança estrutural nos sistemas produtivos, especialmente aqueles intensivos em alta tecnologia. Por isso, dará especial atenção aos setores que tenham possibilidade de disputar mercados e investimentos internacionais e de vencer a forte concorrência existente. Isso significa que as políticas governamentais deverão também intervir seletivamente na reestruturação dos setores de ponta, a começar do complexo eletroeletrônico, do setor de bens de capital e da indústria química.”
“Apesar da crescente desnacionalização e privatização do setor financeiro brasileiro, há ainda elementos neste sistema que podem e devem ser recuperados na construção de um novo modelo de financiamento capaz de alavancar o crescimento interno e reduzir a dependência de recursos externos. O primeiro deles se refere às instituições especiais de crédito, tais como o BNDES, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (BASA).“
De qualquer forma, Lula foi muito prudente logo no início de seu mandato. O menos que ele precisava era uma crise de balanço de pagamentos e o descontrole da inflação.
A Equipe Econômica dos primeiros 3 anos
Lula estreou fazendo exatamente aquilo que prometera na Carta aos Brasileiros. Em primeiro lugar, escolheu uma equipe econômica de perfil ortodoxo. Para o ministério da Fazenda, escalou o então prefeito de Ribeirão Preto, Antônio Palocci, que havia feito um trabalho exemplar de saneamento das contas do município. Palocci, por sua vez, escolheu Joaquim Levy para a secretaria do Tesouro, e Marcos Lisboa para a secretaria de Política Econômica. Assim, as duas principais secretarias do ministério estariam sendo comandadas por ortodoxos de quatro costados. Para o BC, Lula escolheu o ex-presidente do BankBoston e deputado eleito pelo PSDB, Henrique Meirelles, que manteve a diretoria de Armínio Fraga. Na última reunião do COPOM do governo FHC, o BC elevou os juros de 22% para 25% para combater um duro processo inflacionário que o país enfrentava naquele momento. Sob os aplausos de Palocci.
No front político, após semanas de negociações, Lula, em uma decisão que teria repercussões alguns anos depois, deixa o PMDB de fora do seu governo, o que vai dificultar a governabilidade. Seria um ministério com a presença maciça de membros do PT.
Entre estes membros, em outra decisão que teria repercussões futuras, nomeia a então secretária de energia do RS, Dilma Rousseff, para o ministério das Minas e Energia, e o economista do PT, Guido Mantega, para o Ministério do Planejamento, e que depois assumiria o comando do BNDES. Também no ministério da Fazenda, Arno Augustin, que terá papel de destaque na fase seguinte do governo, foi nomeado secretário-adjunto.
Assim como na Carta aos Brasileiros o domínio de ideias ortodoxas fez passar quase despercebido o flerte com o desenvolvimentismo, o ministério econômico de Lula, dominado pelos ortodoxos, ofuscou a presença de elementos-chave que estariam prontos para tomar o poder quando chegasse o momento. Fosse um governo inequivocamente ortodoxo, esses elementos sequer chegariam perto de postos governamentais. Mas Lula precisa balancear a sua necessidade de estabilizar os mercados com o seu desejo de implementar uma política desenvolvimentista, que está no DNA do PT. Essa mescla vai lhe permitir dar o salto quando chegar a oportunidade.
A reforma da previdência do governo Lula
Além dos fundamentos macroeconômicos, esta primeira fase do governo do PT se notabilizou também por algum ímpeto reformista. Logo em seu primeiro ano, o governo Lula emplacou uma reforma da previdência dos funcionários públicos.
Foi em 11/dez/2003, após uma tramitação de sete meses pelo Congresso. Lula seguiu a cartilha segundo a qual reformas impopulares devem ser aprovadas no primeiro ano do mandato. Com esta reforma, os servidores aposentados passaram a recolher 11% de seus rendimentos para a previdência, além de extinguir a integralidade dos funcionários públicos admitidos dali em diante, ou seja, o pagamento de aposentadoria igual ao último salário recebido na ativa.
Tratava-se de uma reforma dura com o funcionalismo, somente possível de ser feita em um governo do PT. Foi aprovada com votos do PSDB e PFL, a oposição da época, e com votos contra do PT, incluindo o de Heloísa Helena, que seria expulsa do partido por conta deste episódio e formaria o PSOL. Esta seria a primeira e única reforma de grande porte do governo do PT em seus longos 13 anos no poder.
Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:
Episódio 1: Brilha Uma Estrela
Episódio 2: Pedala, Dilma!
Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções
Episódio 4: Na Base do Anabolizante
Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa
Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!
Episódio 7: Fact Checking
Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT
Extra: Teaser da 2a Temporada