O candidato ao governo da Argentina Javier Milei prometeu dolarizar a economia argentina. O que isso significa?
Na América Latina, Equador, Panamá e El Salvador dolarizaram suas economias. Não tenho informação sobre como esses países estão se saindo, mas são economias muito menores e muito menos diversificadas do que a economia do nosso vizinho do sul. Uma dolarização da Argentina seria um experimento e tanto!
Para pensar no que significa a dolarização, comece pensando no Euro: vários países trocaram as suas moedas por uma só emitida por uma entidade supranacional. Isso significa que a taxa de juros e a taxa de câmbio da moeda “estrangeira” têm uma relação apenas distante com as condições específicas de cada país da zona do Euro. Esses dois “preços” do dinheiro (juros e câmbio) acabam sendo “atraídos” pelas maiores economias da zona (no caso, Alemanha e França), e o restante dos países que lute. No meu livro “Descomplicando o Economês”, conto o caso da Grécia, que teve que enfrentar 5 anos de um brutal ajuste, perdendo 25% do seu PIB, só para caminhar em direção às condições da média dos países da zona do Euro. Voltaremos a este ponto mais à frente.
No caso do Euro, a partir do dia D, os cidadãos puderem trocar seus marcos, francos, pesetas, liras, etc, por euros, ao câmbio vigente no dia da troca. Aqui temos uma primeira dificuldade da dolarização: qual câmbio será utilizado para trocar os pesos argentinos por dólares? A depender da taxa de conversão, a dolarização poderá se transformar em um verdadeiro confisco. Óbvio que todos quererão trocar pelo “câmbio oficial”, mas certamente o governo argentino, pela primeira vez, reconhecerá que o câmbio “blue” é aquele que reflete de maneira mais fidedigna a real situação da economia argentina. Quanto mais depreciado o câmbio, menos dólares serão necessários para fazer a troca.
E aqui temos uma segunda dificuldade: o governo precisa ter os dólares para entregar aos cidadãos em troca dos pesos. No caso do Euro, foi apenas uma troca de base monetária: o BC Europeu imprimiu tantos euros quantos necessários para fazer a troca, de acordo com as diversas taxas de câmbio. No caso de uma dolarização, o governo americano não vai imprimir dólares para o governo argentino. É este que precisa ter os dólares, pois o seu Banco Central não pode emitir dólares. Como as reservas líquidas da Argentina estão negativas, fica difícil imaginar como Milei faria essa troca. A não ser que houvesse um novo acordo com o FMI, que emprestaria os dólares necessários. E aqui entramos no terceiro problema: as condições exigidas para que ocorra uma dolarização.
Voltando ao caso da Grécia, o país precisou fazer um ajuste hercúleo para permanecer no Euro. Bem, o ajuste da Grécia parecerá um passeio no parque comparado ao ajuste exigido da Argentina. Não porque o FMI seja uma entidade do mal, mas porque o BC argentino deixará de financiar o Tesouro, e uma parte significativa das receitas do governo simplesmente desaparecerá. Assim, subsídios, salários de funcionários públicos, programas sociais, tudo isso precisará passar pela tesoura. Além disso, os dólares serão uma mercadoria escassa. O efeito será parecido com o confisco do Collor, que “enxugou” a liquidez do sistema financeiro, provocando uma brutal recessão.
Todo esse processo tem como objetivo levar a Argentina para mais próximo das condições da economia americana. É o BC americano que comandará as taxas de juros e câmbio, ficando o BC argentino somente com a função de supervisão bancária. Quando Milei diz que vai “acabar com o BC”, na verdade ele está se referindo ao efeito necessário da dolarização. Os países da zona do Euro não têm bancos centrais nacionais.
A Argentina já teve uma experiência com uma espécie de dolarização: o “currency board”, que era um compromisso do governo de trocar um peso por um dólar. No meu livro, eu explico essa experiência, as suas distorções e o seu trágico fim, o corralito. A experiência que Milei propõe é ainda mais radical, porque o peso simplesmente desapareceria.
A Argentina, para resolver o seu problema inflacionário, tem duas alternativas: ou encontra forças dentro do seu corpo político e da sociedade para fazer e perseverar nos ajustes necessários no tamanho do Estado, como o Brasil fez a partir de 1993, ou lança mão de um truque como a dolarização, que forçará um ajuste brutal. Boa sorte aos hermanos!