Cuidado com os seus desejos

Bolsonaro, ontem, acusou Barroso de fazer “politicalha” e desafiou-o a ordenar também a abertura de processo de impeachment contra membros do próprio STF.

Li argumentos nessa linha ao meu post de ontem. Fui investigar.

O impeachment de ministros do Supremo está previsto na Constituição (art. 52, inciso II – qualquer cidadão pode pedir o impeachment de um ministro do Supremo) e é regrado pela Lei 1079, de 1950. Os artigos 41 a 73 são os que regem o processo de impeachment dos ministros do Supremo.

O artigo 44 diz o seguinte: “Recebida a denúncia pela Mesa do Senado, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial, eleita para opinar sobre a mesma”.

Parece claro, não? Uma vez recebida a denúncia, a mesma será lida na sessão seguinte e despachada para uma comissão especial. Aparentemente, não há discricionariedade possível por parte do presidente do Senado ou da mesa diretora. Deveria ser um procedimento automático: recebe a denúncia, lê e instaura comissão para análise. É isso, por exemplo, que defende Roberto Jefferson, em trecho de sua denúncia contra Edson Fachin, que destaco abaixo.

Portanto, qualquer cidadão poderia entrar com recurso junto ao STF para exigir a instauração de um processo de impeachment no Senado contra membros do Supremo, com o mesmo argumento (prevaricação) que valeu para a instauração da CPI da pandemia.

Mas…

Mas nem sempre as coisas são como parecem.

A mesma Lei 1079 rege o impeachment do presidente da República. O seu artigo 19 reza o seguinte: “Recebida a denúncia, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os partidos para opinar sobre a mesma.

”Observe a quase exatamente mesma redação que vimos no artigo 44. Não caberia, aqui também, a discricionariedade do presidente da Câmara ou da mesa diretora. Recebeu a denúncia, leu no expediente seguinte, encaminhou para uma comissão especial. Procedimento automático.

Como é de saber comum que o encaminhamento de um pedido de impeachment contra o presidente depende da boa vontade do presidente da Câmara, cabe analisar melhor a redação dos artigos 19 e 44 da Lei 1079.

“Receber”, neste caso, creio que tenha o sentido de “acatar”. Não se trata, no contexto, de um verbo passivo, no sentido de receber uma correspondência, mas ativo, no sentido de reconhecer que aquilo é uma denúncia válida. Portanto, cabe discricionariedade. É o mesmo sentido que os noivos dão ao verbo receber quando dizem na cerimônia do casamento: “recebe esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade”. Os noivos recebem a aliança podendo recusá-la, se não estão dispostos, por algum motivo, a assumir o compromisso que ela representa.

Se assim não fosse, todos os 61 pedidos de impeachment contra o presidente que estão engavetados teriam que ser automaticamente colocados para caminhar dentro da Câmara.

Quando Bolsonaro desafia Barroso a fazer caminhar os pedidos de impeachment contra ministros do Supremo, do mesmo modo qualquer ministro do STF poderia obrigar o início dos procedimentos para os pedidos de impeachment contra o presidente.

Cuidado com os seus desejos.

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