A pergunta correta

Biden fez a pergunta correta: quantas gerações de soldados americanos deveriam ser enviadas para lutar por um governo em que as próprias tropas não estão dispostas a lutar?

Quando ouvimos uma mulher apanhando do marido e gritando por socorro na vizinhança, chamamos a polícia, que tem o dever legal de intervir para proteger a vítima. Os EUA estão sendo vistos, no momento, como a polícia do mundo, que não está cumprindo o seu dever de proteger os cidadãos, e principalmente as mulheres, afegãos.

Muitos se condoem da situação das mulheres afegãs. É uma situação lastimosa, sem dúvida. Mas os EUA não são a polícia do mundo. Bush ordenou a invasão do Afeganistão para caçar terroristas, não para proteger as mulheres afegãs. Os direitos das mulheres foi apenas uma consequência do processo, não o seu objetivo. Irã e Arábia Saudita também vivem sob a sharia. Os EUA vão invadir os dois países para libertar suas mulheres? De forma mais ampla, os EUA vão invadir a China para proteger os uigures? Em todo país onde houver problemas com direitos humanos, os EUA serão chamados a intervir?

Em tese, a ONU é a polícia do mundo. É no âmbito da ONU que problemas de direitos humanos devem ser tratados. O Taliban está longe de ser o único regime que não respeita direitos humanos. O que faz a ONU? Os EUA deveriam substituir a ONU como guardião global dos direitos humanos? Caiu no colo de Biden o fiasco acumulado de todos os presidentes que o antecederam, ao terem a ilusão de que conseguiriam implementar um estado democrático ocidental no Afeganistão. Coube a Biden, como dizemos no mercado financeiro, zerar a posição, estancando as perdas.

As imagens de Cabul são chocantes e, sem dúvida, a situação das mulheres no Afeganistão é uma lástima. Cabe ao povo afegão tratar de seus próprios problemas. Não existe uma polícia global, feliz ou infelizmente.

Por que mesmo lutar?

A imagem do palácio presidencial de Cabul tomado pelos homens do Taleban certamente não passaria pelo critério de diversidade de nossas redes sociais. Mas a imprensa ocidental não perdeu tempo com lacrações desse tipo. O foco das análises foi como o Taleban conseguiu conquistar o poder no país de maneira tão rápida. A última bituca de cigarro do último soldado americano ainda estava fumegando no cinzeiro, e os barbudos já estavam sentados na mesa do fugitivo ex-presidente. Biden, em sua residência de verão, acompanhava o fiasco atentamente.

Destaquei abaixo alguns trechos dos jornais de hoje, além de uma reportagem da Economist.

O cálculo do governo americano era de que o presidente afegão tinha à disposição um exército muito superior, com homens treinados e armas. Poderia, portanto, resistir ao Taleban durante meses antes de, eventualmente, cair. Foi vencido em alguns poucos dias.

A Economist atribui a vitória do Taleban à sua inteligência, determinação e perspicácia política. Outro analista ouvido disse que o exército afegão era de mentira, pois os recrutas eram analfabetos e pouco motivados.

Não sou especialista, mas tenho outra tese. O Taleban venceu porque tem o apoio popular do povo afegão. Nenhuma ditadura toma o poder ou nele se mantém se não conta com o apoio de amplas parcelas da população. Quando deixa de ter esse apoio, é questão de tempo para ruir. Foi assim com a União Soviética, foi assim com a ditadura brasileira. As ditaduras castrista e chavista se mantêm no poder porque ainda contam com apoio popular. Há dissidentes, claro, sempre os há, mas são minoria.

Não é que o exército afegão era mal preparado, ainda que treinado e armado com bilhões de dólares do governo americano. É que, provavelmente, uma boa parte desse exército não estava realmente a fim de lutar contra o Taleban. Em uma guerra, é preciso que ambos os lados tenham convicção de que estão lutando pelo bem. Caso contrário, não há guerra. Por que mesmo os oficiais e recrutas do exército afegão estavam lutando? Pelos ditos “valores ocidentais”? Pelos ianques que ocuparam o país durante 20 anos? Por um governo marcado pela corrupção? Não havia pelo que lutarem. E, como vimos, não houve guerra.

Vinte anos depois, o Afeganistão volta ao ano de 2001, como se a intervenção americana não tivesse existido. Os pagadores de impostos americanos têm razão em questionar o porquê disso tudo.