O verdadeiro herói brasileiro

Matéria de capa do Estadão nos lembra (ou informa, para quem não sabia) que o nosso tão celebrado agronegócio não sobrevive sem subsídios.

Essa história é antiga. Gustavo Franco, em seu livro A Moeda e a Lei, descreve como o sistema financeiro nacional foi moldado, há 100 anos, em torno das necessidades de financiamento da indústria cafeeira. Desde então, a “bancada do agro” sempre teve muita influência sobre o orçamento público.

Não é minha intenção aqui discutir a necessidade, ou não, de se subsidiar os juros para o financiamento agrícola. Meu único ponto é que, obviamente, os outros setores da economia que sobrevivem com os juros de mercado são mais produtivos que o agronegócio. Isso é matemática, não há discussão aqui.

O financiamento é um insumo como outro qualquer. Assim como não é possível plantar sem fertilizantes, também não é possível plantar sem investir inicialmente. Se não houvesse subsídios, somente os empresários mais produtivos conseguiriam pagar esse insumo pelo seu preço de mercado e, ainda assim, auferir lucros no final do processo. Com os subsídios, empresários menos produtivos são atraídos pelo negócio e conseguem sobreviver mesmo com produtividade menor.

Claro que o efeito colateral dos subsídios é tornar ainda mais ricos os empresários do agronegócio que, sendo mais produtivos, sobreviveriam sem os subsídios. E aqui entra a questão que ninguém está disposto a enfrentar: esses subsídios (R$ 22 bilhões para esta safra, segundo a reportagem) é o melhor investimento possível para este dinheiro? Onde estão os estudos periódicos de eficiência do gasto público que deveriam embasar esse tipo de decisão? Esta pergunta é só retórica. No caso do agronegócio, a necessidade é baseada em clichês do tipo “o agro representa 25% do PIB” (o que é uma falácia, mas não vou comentar aqui), ou “o agro sustenta a balança comercial”, ou ainda “do agro depende a alimentação do trabalhador brasileiro”. Tudo isso pode ser verdade, mas a questão é outra: tudo isso justifica, na ponta do lápis, a concessão de subsídios? O orçamento público é (cada vez mais) limitado, e esse tipo de questão precisa ser enfrentada.

Respeito o agronegócio como produtor de riqueza para o país. E respeito ainda mais o empresário de qualquer outro setor que rala dia e noite para levar para frente o seu negócio sem contar com linhas subsidiadas de financiamento. Esse é o verdadeiro herói brasileiro.

Talvez seja melhor rever seus conceitos

Entrevista com Marcello Brito, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Principais pontos:

– A Abag patrocinou um manifesto condenando as manifestações de 7 de setembro. O pedido de desculpas do presidente após o evento demonstra que estávamos corretos.

– Nunca houve unidade política no agronegócio, portanto não houve racha. Essa unidade é criação da imprensa.

– Há muitos agronegócios no Brasil, não é só plantador de soja e criador de boi.

– Bolsonaro hoje deve ter apoio de 30% dos empresários de agronegócios, mais ou menos o apoio que tem na sociedade.

– Alguns dirigentes de associações de agronegócios que apoiam Bolsonaro às vezes o fazem também por serem políticos e terem interesses partidários.

– A política externa do governo Bolsonaro foi um desastre para os exportadores ao demonizar a China. Perdemos a confiança de nosso principal parceiro. O antigo chanceler era amador, melhorou muito com o novo.

– Foi salutar a não ida de Bolsonaro para a Cop26, pois o presidente não une, divide. A equipe brasileira que está na conferência é de altíssimo nível e vai dar conta do recado.

– Um candidato de 3a via tem chance, não precisa ter pressa em encontrá-lo. (Essa foi a manchete escolhida pelo jornal. Na minha opinião, a coisa mais desinteressante que ele disse)

Minha leitura: a visão do presidente da Abag representa uma parcela do PIB brasileiro. Se essa parcela é relevante ou não, cada um vai ter a sua opinião. O que não adianta é criticar essa visão sem entender como a ela se chegou. Escutar é o primeiro passo para corrigir rumos, se é que há interesse em corrigi-los.

Posso adiantar que uma parte do mercado financeiro compartilha dessa visão dentro do seu próprio contexto. Se Bolsonaro pensa que o PIB brasileiro vai com ele “no matter what” e basta conquistar os votos dos miseráveis com o novo bolsa família, talvez seja melhor rever os seus conceitos.

Brasília, faça alguma coisa!

Mais um editorial do Estadão clamando por alguma “política pública” para levantar a indústria brasileira. Como é comum nesse tipo de argumentação, está a comparação com o “sucesso do agronegócio”, que só teria evoluído porque recebeu incentivos de crédito e pesquisa por parte do governo.

É lugar comum pensar no agronegócio como o “salvador da lavoura” (sem trocadilhos) da economia brasileira. Este setor da economia seria o responsável por dar robustez às contas externas, livrando o país do fantasma da crise de balanço de pagamentos que tantas vezes nos assombrou durante a nossa história.

Vejamos o que dizem os números.

Hoje, as exportações brasileiras são dominadas basicamente por três grandes grupos de produtos: agrícolas, industriais e extrativa mineral. Quanto cada um desses representa na pauta exportadora? Respectivamente 29%, 31% e 25%. Surpreso? Pois é. Exportamos, em termos absolutos, o mesmo em bens industriais e produtos agrícolas.

Como era essa divisão 20 anos atrás? Em 1999, eram 27%, 52% e 9%. Portanto, o que houve foi uma perda de importância da indústria para a mineração, e não para a agricultura. E, dentro da mineração, para o petróleo, não para o minério de ferro.

O que ocorreu neste período é que os números absolutos cresceram muito, em função da demanda da China. Então, ficamos superavitárias na balança comercial. Mas não por mérito especial do agronegócio. Aliás, dentro do agro ocorreu uma mutação interessante: a soja representava 30% da pauta exportadora agrícola há 20 anos, e hoje representa 50%. Tudo demanda da China.

Vamos olhar de outra forma: há 20 anos, exportávamos cerca de U$50 bilhões. Hoje, exportamos U$225 bilhões, um crescimento de 350%, ou 8% ao ano. As exportações agrícolas cresceram, no mesmo período, de 13 para 65 bilhões, ou pouco acima de 8% ao ano. Por outro lado, as exportações de soja cresceram 11% ao ano no mesmo período. O que houve foi uma rotação dentro do setor agrícola para atender a China.

Tudo isso pra dizer que existe uma certa mística em torno do agronegócio, que se transforma em uma miragem inalcançável para a indústria. Como se “Brasília” (sim, o editorial cita a capital da burocracia como solução dos problemas) tivesse o condão de fazer pela indústria o que “fez” pelo agronegócio. Ora, Brasília, se fez alguma coisa, foi atrapalhar o agronegócio, com uma infraestrutura caindo aos pedaços da porteira para fora da fazenda, além do pesadelo tributário e legislativo que nos impõe a todos. Os paliativos que oferece, como as pesquisas da Embrapa ou linhas subsidiadas de crédito, são só isso mesmo, paliativos.

O agronegócio só conseguiu manter o seu share nas exportações porque apareceu a China demandando nossa soja e temos uma vantagem competitiva nessa área, que é o clima e o solo. Como é óbvio, essas vantagens competitivas desaparecem quando se trata da indústria. É um verdadeiro milagre que produtos industriais ainda representem um terço das nossas exportações. Trata-se de um setor que sobreviveu a incontáveis “políticas industriais” ao longo de décadas. Nossa indústria é “nascente” desde que Getúlio resolveu instalar a CSN. Sabe como é, quase 80 anos não foram suficientes. É preciso que Brasília “faça alguma coisa”.