Coisa de doente

Nem vou entrar no mérito das preferências políticas de André Fran, quem quiser saber é só dar uma googlada. O ponto não é este.

A questão é chamar de doente (ou de gado, ou de idiota, ou de esquerdopata, ou de <complete aqui>) quem pensa diferente. Cada ser humano tem sua própria escala de valores, construída desde o útero materno e forjada pelas mais diferentes experiências de vida. Não concordar com a escala de valores de alguém porque não bate com a nossa é uma coisa. Outra coisa é atribuir algum desvio de caráter ou alguma falha na saúde mental de quem pensa diferente.

Essa discussão é muito delicada. Afinal, há realmente desvios de caráter ou doenças mentais que podem levar a comportamentos socialmente indesejáveis. Por exemplo, ninguém, em sã consciência, aprovaria o comportamento dos Nardonis.

Mas há uma linha que separa o crime ou a doença da preferência política. Muitos atribuem ao mau caráter ou a uma doença o apoio a este ou àquele político, quando, na verdade, há uma diferença de escala de valores. E, por que não dizer, preferências subconscientes que fazem as pessoas simpatizar e antipatizar com políticos diferentes. Aliás, desconfio de que seja este o fator determinante, muito mais importante do que um check list de atributos morais.

Partir do pressuposto de que o outro lado é doente ou canalha não é um bom começo para qualquer discussão. Claro, se há o interesse de se ter alguma discussão. A política é o campo onde se procura chegar a consensos em meio à discórdia e é impossível fazer política em clima de torcida organizada. Os políticos profissionais sabem disso, e é por isso que se dão muito melhor entre si do que os seus respectivos apoiadores admitem.

Não se trata aqui de achar que todos os atos dos políticos são defensáveis, a depender da escala de valores de cada um. O único ponto é admitir que o outro pode não ser doente ou canalha por não concordar conosco. Isso já seria um bom começo.

O drama dos Tuvalenses e a redação do ENEM

A regra de qualquer redação é muito clara: você inicialmente expõe uma tese, desenvolve os argumentos contra e/ou a favor da tese e conclui refutando ou afirmando a tese. Essas coisas precisam estar mais ou menos amarradas. Caso contrário, o leitor termina perdido, sem entender exatamente em que o autor baseou a sua tese.

O artigo abaixo é um exemplo de como uma redação não deve ser feita. O autor expõe a sua tese no início: Tuvalu, uma ilha perdida no sul do Pacífico, estaria com seus dias contados em função do aquecimento global. Sua população precisará migrar para a Austrália! Sem culpa nenhuma, os Tuvalenses são um povo muito ecológico, e estão pagando pelos pecados de um mundo que insiste em gastar energia para se aquecer no inverno e se refrescar no verão.

Os argumentos para embasar a sua tese o autor os tomou de sua visita in loco à ilha. E é aí que a coisa começa a ficar estranha: apesar de ser um povo muito ecológico, as praias de Tuvalu estão tomadas por lixões. A não ser que acreditemos que o lixo dos EUA e Austrália esteja aportando nas praias da ilha perdida, aquilo é fruto do descarte da própria população ecológica. Primeiro argumento que não conversa com a tese.

Mas ainda haveria salvação para a redação: provar a tese principal, a de que o mar já está subindo e engolindo Tuvalu. Continuei lendo, em busca de alguma narrativa dramática de praias desaparecidas e populações tendo que se amontoar no centro da pequena ilha. Nada. Está tudo lá. O único sinal relatado de agressão ao meio ambiente foi o lixão amontoado pelos próprios nativos.

Saí da redação confuso. A tese do aquecimento global que vai engolir Tuvalu carece de provas no artigo. E o povo ecológico de Tuvalu amontoa lixões em suas praias. Desse jeito, vai receber zero no ENEM.