A questão das mensalidades nas universidades públicas

O debate sobre a cobrança de mensalidades em universidades públicas voltou à pauta, com o início da tramitação da PEC 206/2019.

Os defensores da “universidade pública, de qualidade e gratuita” já se manifestaram. Nesse debate, não poderia faltar a opinião de Anitta. Ansioso para ouvir Felipe Neto.

Chistes à parte, esse é um falso debate. O pobre já paga universidade no Brasil. Segundo o censo da educação superior de 2020, dos 8,6 milhões de alunos matriculados no ensino superior em 2019, cerca de 76% pagavam mensalidade em faculdades privadas. Esse número era de 74% em 2009. A grande maioria, obviamente, pobres.

Então, essa defesa apaixonada pela ”educação superior gratuita” é apenas uma defesa dos peixinhos de um aquário muito pequeno em relação ao mar aberto da educação superior no Brasil. Claro que gostaríamos todos de prover “educação pública de qualidade e gratuita” para todos. Seria possível?

O orçamento de 2022 para o custeio das universidades federais é de R$ 5 bilhões. Isso é só custeio (água, luz, limpeza), não inclui salários dos professores. O orçamento obrigatório, segundo consulta que fiz no Painel do Orçamento Federal, totaliza R$ 30 bilhões de valores empenhados em 2022. Então, são R$ 35 bilhões para manter 1,33 milhões de alunos, o que resulta em um custo mensal de aproximadamente R$ 2.200 por aluno. Para incluir os 6,52 milhões de alunos das universidades privadas no mesmo esquema, precisaríamos de um orçamento adicional de cerca de R$ 170 bilhões, ou o equivalente a 4 anos de bolsa-família.

Então, a exemplo dos sindicatos, que defendem com unhas e dentes a CLT e ignoram a imensa massa de trabalhadores não registrados, os defensores da universidade pública gratuita ignoram a imensa massa que precisa ralar para pagar universidade privada. Alguém dirá que é melhor uma minoria com esse privilégio (sim, esse é o nome) do que ninguém. Aliás, é sempre interessante ver a esquerda defender privilégios.

Faculdades como o Insper resolveram o problema de outra forma: existe um programa de bolsas que são pagas após o aluno estar formado. É a mesma ideia do FIES. A diferença é que a bolsa do Insper baseia-se em uma hipótese crível de empregabilidade do aluno após formado. Já no caso do FIES, a grande inadimplência do programa se deu por conta de uma hipótese irreal de empregabilidade dos alunos formados nesses caça-níqueis que se auto-denominam faculdades.

A grande distorção das universidades federais está justamente nessa questão da empregabilidade. É óbvio que um egresso de uma universidade pública tem empregabilidade muito maior do que o seu par da universidade privada, quando não menos pelo montante investido em cada aluno. Essa empregabilidade deveria servir como lastro de um programa de financiamento estilo FIES para esses alunos, que financiaria as universidades públicas e seria pago por estes alunos ao longo de sua vida laboral. Mas esta é uma solução muito neoliberal para o nosso país, preferimos continuar subsidiando uma minoria de estudantes com o dinheiro arrecadado dos desdentados.

A enrascada em que se enfiou a esquerda

A esquerda está em uma enorme enrascada do ponto de vista de simbolismos. O vermelho, que desde sempre representou o PT e outras siglas de esquerda, tornou-se um fardo difícil de carregar.

Em reportagem de ontem, o novo marqueteiro do PT sugere “desarvermelhar a sigla”.

Já tentaram isso na eleição passada. É tão crível quanto a Manuela D’Ávila comungando. Ainda mais depois de Alckmin ser flagrado cantarolando a Internacional Socialista. O vermelho está na alma.

Mas o buraco encontra-se mais embaixo, como diz o outro. O PT conviveu com o vermelho sem problemas até poucos anos atrás. As grandes manifestações pelo impeachment mudaram a equação. Mas, antes de continuarmos, voltemos um pouco no tempo.

As manifestações pelo impeachment de Collor também envolveram cores. No seu pior momento, o então presidente conclamou seus apoiadores a vestirem verde e amarelo nas ruas. Os caras-pintadas, por outro lado, se vestiram de preto para marcar o seu protesto. O preto prevaleceu, mostrando que o presidente não contava com o apoio das ruas. Collor tentou se apropriar das cores nacionais e não conseguiu. Mas foi o preto que venceu, não o vermelho.

Voltemos para 2015. As ruas foram tomadas por manifestantes vestindo amarelo. Essa era a cor predominante, ainda que não tivesse havido uma coordenação central, nem o pedido explícito de algum político, como havia sido o caso de Collor. O amarelo pegou como a cor das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff.

Essa escolha incomodou e incomoda até hoje. Em 2018, a Paraíso da Tuiuti desfilou na Sapucaí um enredo sobre o “golpe”, vestindo uma ala com as “indefectíveis” camisas amarelas da seleção, os passistas sendo “manipulados” como se fossem marionetes.

A palavra “indefectíveis”, aqui, não está à toa. Essa exata palavra foi usada pela repórter na matéria que comentei mais cedo, para se referir às cores usadas pelos manifestantes na Paulista.

“Indefectível”, no caso, serve como termo pejorativo, indicando algo que se espera que aconteça, vindo de quem vem. Quase que uma vergonha alheia.

O incômodo cresceu quando as manifestações de apoio a Bolsonaro também passaram a ter a cor amarela como predominante. Parece uma continuidade das manifestações pró-impeachment, mas é apenas um subconjunto daquelas manifestações, que usa o amarelo como símbolo patriótico. No impeachment, o amarelo era usado como um contraste ao vermelho do PT. No apoio a Bolsonaro, como uma reafirmação patriótica. As duas coisas têm regiões de intersecção, mas não são exatamente a mesma coisa. Tanto é assim, que uma parcela relevante dos que apoiaram o impeachment vestidos de amarelo se recusam, hoje, a vestir as mesmas cores para apoiar Bolsonaro.

De qualquer forma, esse, digamos, novo uso das cores nacionais, exacerbou a reação da esquerda. Tivemos, por exemplo, a defesa da tese de que a seleção deveria mudar a cor da sua camisa para branco. Foi em um texto no blog do Juca Kfouri, em maio de 2020.

Caiu no vazio, obviamente. Mais recentemente, no entanto, temos visto manifestações no sentido contrário: não podemos deixar as cores nacionais serem sequestradas por um político. E que político!

A ideia desse texto nasceu de uma coluna de hoje de Robson Morelli, comentarista esportivo, que defende que o “verde-amarelo é de todos os brasileiros”.

Vai na mesma linha da manifestação de Anitta, que outro dia afirmou que ”as cores da bandeira pertencem a todos os brasileiros”, ela mesma vestindo verde e amarelo.

A quem escrevem Robson Morelli e Anitta? Óbvio: para a esquerda, que se sente constrangida em vestir as cores usadas por “golpistas” e “fascistas”. Mas essa não é a primeira vez que cores universais são, de certa forma, capturadas por certos grupos. O arco-íris, por exemplo, foi capturado pela militância LGBT. Hoje, ninguém pode usar roupas com arco-íris sem ser identificado como apoiador da causa. As manifestações de Morelli e Anitta são sinal de que o mesmo começa a acontecer com as cores da bandeira.

Existe algo que pode ser feito pela esquerda? Acho que não. Dizer que posso usar a camisa da seleção ou roupas verde-amarelo sem que isso signifique apoio a Bolsonaro é uma confissão de que a batalha já está perdida. A carga simbólica já está lá e, vamos ser sinceros, com a ajuda prestimosa da própria esquerda, que não se cansou de tratar com desdém os “patriotas com camisa da seleção”. O feitiço virou contra o feiticeiro, e agora tentam correr atrás do prejuízo.