Os economistas do lado errado da economia

Meu amigo Cleveland Prates, o economista comunista mais neoliberal que conheço, enviou-me o link da notícia abaixo: uma entrevista do economista Antonio Correa de Lacerda ao portal GGN, de Luís Nassif, que dispensa apresentações. Lacerda é o presidente do Cofecon, Conselho Federal de Economistas, e já tivemos oportunidade de analisar suas, digamos, ideias, nessa página.

A reclamação de Lacerda e dos outros economistas envolvidos na entrevista é a preponderância de economistas ligados ao setor financeiro no debate de políticas econômicas no país. A imprensa buscaria somente esses economistas, deixando de lado aqueles ligados ao “setor real” da economia, que teriam muito a contribuir para o debate.

O problema é que os economistas que se formam na faculdade têm quatro caminhos: 1) trabalhar no setor financeiro ou em consultorias que atendem ao setor financeiro; 2) trabalhar no “setor real” em outras áreas que não economia; 3) trabalhar no governo ou 4) seguir carreira acadêmica. As empresas do chamado “setor real” simplesmente não têm um “departamento de economia”, pois não é este o seu core business. Por isso, normalmente, essas empresas recorrem aos seus bancos ou, eventualmente, contratam uma consultoria financeira, para desenhar cenários sobre os quais trabalham. Assim, os economistas que vão para a iniciativa privada normalmente trabalham no setor financeiro, pois o core business desse setor é, justamente, desenhar cenários para investir melhor o dinheiro.

Na verdade, a reclamação de Lacerda e seus colegas não é bem essa. O que os incomoda é a preponderância de economistas que têm uma visão mais ortodoxa da economia, aquela que diz que é necessário ter responsabilidade fiscal e que o crescimento econômico não vem com políticas mágicas, mas construindo um ambiente que atraia investidores. Faltaria consultar economistas como ele, que acreditam que um mundo melhor é possível, onde basta vontade política para que os agentes econômicos se comportem de acordo com os seus próprios livros texto.

Existe mais um componente nesta birra: a preponderância do setor financeiro na economia brasileira como um todo. Sou um engenheiro que foi abduzido pelo setor financeiro, assim como muitos de meus colegas. Lacerda certamente lamenta que o talento dos engenheiros seja empregado em algo que “não produz riqueza”, enquanto poderia estar a serviço do “lado real da economia”. Sem aqui entrar no mérito dessa dicotomia burra e sem sentido, é fato que o setor financeiro tem uma participação desproporcional na economia. Um retrato disso é a composição da bolsa: nada menos do que 24% do Ibovespa é formado por papeis do setor financeiro, sendo o setor mais importante da bolsa local. No S&P500, por exemplo, o peso do setor financeiro é de apenas 10%, nível que mais ou menos se repete em outras bolsas de países desenvolvidos.

Para entender por que isso ocorre, nos será útil observar a notícia abaixo, em que o presidente da Argentina, Alberto Fernández, reclama com o seu colega russo sobre o FMI. Putin, com o poker face que Deus lhe deu, deve ter pensado consigo mesmo: “o que este cara quer, dinheiro emprestado?”

Esse lamento de Fernández é da mesma natureza da reclamação da dependência do setor financeiro no Brasil. Não quer depender do FMI ou do setor financeiro? Simples: pague a sua dívida. O setor financeiro é hipertrofiado no Brasil porque vivemos em um país que se endividou para financiar planos grandiosos de desenvolvimento e um estado de bem-estar social nórdico. Claro, não conseguimos nem uma coisa e nem outra, mas os credores não têm nada a ver com isso, eles querem o dinheiro de volta.

Alguns poderão dizer que países ricos também têm dívidas gigantescas, e nem por isso o setor financeiro é predominante. Aí entra o segundo ingrediente dessa receita indigesta: somos um país pouco sério no trato da nossa dívida. Sempre encontramos um jeitinho de tungar os credores. O último movimento foi a postergação do pagamento dos precatórios, mas está longe de ser o único. A nossa história é marcada por pequenas e grandes intervenções que minaram, ao longo do tempo, a nossa credibilidade. Sem mencionar a inflação, que é a tungada por definição.

A julgar pelo que vem acontecendo recentemente e pelos “planos” dos candidatos a presidente, podemos contar que os “economistas ligados ao setor financeiro” continuarão sendo ouvidos por ainda muito tempo. Para desgosto de Lacerda e seus companheiros do “setor real”.

De fato, o orçamento público não é como o orçamento privado

O economista Antônio Correa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia, nos lembra que a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico não se aplica, porque o Estado tem “funções e prerrogativas próprias”. De onde se conclui que o Estado pode gastar mais do que arrecada, se for com o objetivo de cumprir suas “funções e prerrogativas próprias”.

Nem economista sou, quem sou eu para discutir com o representante máximo dos economistas brasileiros. Ele deve ter razão, afinal é professor-doutor da matéria. Mas, como todo aluno aplicado, fico cá com minhas dúvidas.

Economistas como Lacerda defendem que o Estado pode sim se endividar de maneira ilimitada, porque seus gastos teriam um “efeito multiplicador” na economia. Ou seja, gerariam impostos suficientes para pagar a dívida lá na frente. Seria preciso apontar para um “equilíbrio intertemporal”, em que os investimentos de hoje serão os impostos de amanhã, garantindo, assim, o equilíbrio da dívida pública e, de quebra, fazendo “a roda da economia girar”.

Claro que não é assim tão simples, e tenho certeza que Lacerda concordaria comigo. É preciso que esses gastos sejam “de qualidade”. Não adianta, por exemplo, contratar pessoas para cavar buracos e depois enterra-los. Isso não vai gerar o “efeito multiplicador” desejado, vai só queimar mais dinheiro, gerando mais dívida pública.

E é nesse “gasto de qualidade” que mora o problema. Lacerda não vai me desculpar, mas vou usar um exemplo de economia doméstica. Imagine uma família que gasta mais do que ganha e já altamente endividada. O marido, então, ao invés de cortar gastos, decide abrir uma barraquinha de pastel na feira. O raciocínio é simples: com esse investimento, vamos ter lucro suficiente para pagar o investimento e ainda cobrir o buraco dos gastos correntes da família. É óbvio que, para que o plano dê certo, é preciso que este investimento seja “de qualidade”. Ou seja, que realmente gere lucro.

Ocorre que, quase que por definição, os gastos do governo são de péssima qualidade. Os gastos de “boa qualidade”, aqueles que geram retornos suficientes, normalmente já são realizados pela iniciativa privada. Sobra só a carne de pescoço, disputada por grupos de interesses que têm a eficiência do investimento como último critério de escolha, quando têm.

Lacerda e seus companheiros, além de defenderem o “efeito multiplicador” dos gastos públicos, costumam brandir o argumento das “externalidades positivas”. Ou seja, um investimento pode não ter retorno em si, mas ajudará outros agentes econômicos que não pagam pelo investimento. O exemplo clássico é o da estrada que não tem fluxo suficiente para pagar o investimento em sua manutenção, mas que supostamente beneficia indiretamente as populações das cidades que são por ela ligadas. Tenho uma certa dificuldade em entender como uma estrada por onde não passa ninguém beneficia alguém, mas vá lá, digamos que seja assim. Mesmo nesse caso, em que a externalidade supostamente alavanca a arrecadação de impostos, é preciso que o investimento seja feito com critério, para maximizar as externalidades positivas. Como esse é um exercício dificílimo de ser feito, não surpreende que também acabe refém de decisões políticas.

De fato, a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico é inadequado, mas não porque o Estado tenha “prerrogativas e funções que lhe sejam próprias”. O orçamento público é diferente porque o Estado tem a prerrogativa de se endividar sem limites, pois tem o monopólio da emissão da moeda na qual são, por lei, feitos os gastos. Assim, as famílias, que não podem emitir seu próprio dinheiro, precisam ajustar o seu orçamento. Já o Estado, que pode captar dinheiro sem limite, não precisa se ajustar. Esqueça toda essa história de “efeito multiplicador” e “externalidade positiva”, não é disso que se trata, mas de abusar do poder de monopólio sobre a moeda.

Isso funciona se os financiadores da dívida não têm para onde escapar e há excesso de poupança privada. Caso contrário, a única forma de se financiar é rodar a maquininha, desvalorizando a própria moeda. Se uma família faz isso, vai presa. Se o Estado faz isso, o máximo que acontece é o governo de plantão não ser reeleito ou ser impichado, em função da inflação e do baixo crescimento gerados.

De fato, o Estado não pode ser comparado com uma família: nós não temos como produzir inflação para pagar nossas contas.