Complô

Na análise que vai a seguir, vou assumir que Bolsonaro não é um sonso. Ou seja, ele sabe exatamente o alcance e significado das palavras. Trata-se de uma hipótese plausível, para um sujeito que chegou ao cargo máximo da República.

Também vou assumir que Bolsonaro esteja sendo sincero em sua surpresa diante da carta de Barra Torres. Afinal, ele não menciona a palavra “corrupção”. Portanto, não foi de corrupção a acusação.

Então, do que se trata? Voltemos à fala do presidente, reiterada em entrevista à Jovem Pan: “o que está por trás do que a Anvisa vem fazendo”? Bem, se a premissa inicial estiver correta, Bolsonaro sabe que essa frase significa desconfiança de que há algum conflito de interesses nas decisões da agência, que não estaria seguindo os critérios técnicos que deveriam ser o único critério para os seus atos.

Tomando por base a segunda hipótese, a de que o interesse conflitante não seria fruto de corrupção, o que seria então?

Para quem tem contato com as bolhas bolsonaristas mais profundas, a resposta é óbvia: a Anvisa estaria fazendo parte de um grande conluio dos globalistas para a implementação de controle social, com o objetivo de acabar com a liberdade dos cidadãos e subjuga-los a um grande governo global totalitário. As campanhas de vacinação seriam apenas mais uma parte do grande plano de dominação, a Nova Ordem Mundial.

Se o que vai acima parece um delírio, é porque é mesmo. Mas, acredite: Bolsonaro se acha ungido para contrapor-se a esse suposto movimento global, e seus mais fiéis seguidores acreditam nisso. Quando o presidente acusa a Anvisa de “segundas intenções”, se não é a isso que se refere e nem à corrupção, fica o desafio de dizer qual é a acusação.

Barras Torre, sendo um homem comum, só conseguiu pensar na hipótese da corrupção. Se houvesse pensado na outra, ao invés de indignado, provavelmente teria caído na gargalhada.

O que está por trás?

Todo mundo comentando a nota do presidente da Anvisa, almirante Barra Torres, sinto-me na obrigação de também dar o meu pitaco.

Eu sempre gosto de pensar no contrafactual. No caso, o cenário em que essa nota não tivesse sido publicada. Ou tivesse sido publicada de outra maneira. Havia algumas escolhas a serem feitas.

O almirante poderia ter ouvido o “qual o interesse da Anvisa?” e pensado: “bem, esse é o presidente que temos, o tiozão do pavê, aquele que está entrando em ano eleitoral e está falando para fidelizar a sua grei, um cara que se comunica mal”, enfim, todas as desculpas que conhecemos para essas falas de Bolsonaro. Nesse caso, poderia simplesmente passar por cima, ignorar olimpicamente, e a fala, como tantas outras, estaria esquecida em 24 horas.

Ou o chefe da Anvisa poderia tomar as dores da agência que representa, seus funcionários e colaboradores, colocar-se no lugar deles e avaliar que a fala mereceria alguma resposta protocolar, para dar uma satisfação interna. Nesse caso, seria algo do tipo “a Anvisa tem orgulho de seus processos, sendo guiada pelo mais alto padrão ético em todas as suas decisões”. Algo anódino, mais uma defesa do que um ataque. Estaria dada a resposta e o caso seria esquecido em 24 horas.

Mas Barra Torres decidiu por uma terceira linha, a do confronto. E o pior, um confronto pessoal, EXIGINDO retratação de ninguém menos que o presidente da República. A nota apenas resvala na defesa da agência, ela toda é uma defesa pessoal apaixonada.

Para ter escolhido essa linha, das duas uma: ou escreveu essa nota com a cabeça quente, sem pensar, ou fez de caso pensado, mandando um recado. É difícil pensar que um profissional com a rodagem do presidente da Anvisa teria soltado uma nota no calor da hora, só para lacrar. O mais provável é que pensou bem no que escreveu e no tipo de reação pública que queria suscitar.

Se essa terceira hipótese for a mais próxima da realidade, podemos ver aqui mais uma reação de uma ala dos militares, em que Santos Cruz é o mais proeminente, que não está nada contente com o capitão. Nesse sentido, a entrevista do general Silva e Luna, presidente da Petrobras, dizendo que a empresa não pode fazer política pública e afirmando que o presidente atrapalha quando “anuncia” aumento ou redução de preço de combustíveis, pode ser visto também como algo nessa linha.

Bolsonaro encheu o Executivo de militares, pois é somente neles que ele confia. O que a carta de Barras Torre pode estar indicando é que a recíproca não é verdadeira para uma parte da caserna. Para Bolsonaro, mais útil do que perguntar qual o interesse da Anvisa por trás da liberação da vacina infantil, é se questionar qual o interesse por trás dessa nota do presidente da Anvisa.

Cheque-mate na Anvisa

Doria fez o que qualquer executivo de empresa faz: colocou uma data para entregar o trabalho. A data serve para pressionar os subordinados.

Mas a Anvisa não é subordinada ao governador de São Paulo. Portanto, não faz sentido.

Faz.

Apesar de a Anvisa não ser subordinada funcionalmente, passou a ser subordinada politicamente. Imagine você chegarmos no dia 24/01, as caixas com as vacinas nos postos de saúde, filas começando a se formar, e o governador anunciar que não teremos vacinação porque a Anvisa AINDA não autorizou. Pode acontecer? Pode. Vai acontecer? Difícil.

Doria não teria arriscado uma data se já não tivesse em mãos dados de eficácia promissores. E lembremos que estamos em um processo de aprovação contínuo, e se trata de uma autorização emergencial, não o registro definitivo. Além disso, a vacina já estará espalhada por outros estados da federação, só aguardando o sinal verde da agência. A pressão será insuportável.

Imagine o contrário: Doria esperando a aprovação da Anvisa para daí anunciar a data do início da vacinação. Sabe quando viria a tal aprovação? Põe aí uns meses, se viesse a aprovação.

Doria deu uma chave de galão no governo Bolsonaro com essa vacina e a Anvisa passou a ser mera coadjuvante no processo.