Se o dados não me obedecem, danem-se os dados

Tirar conclusões de eventos isolados é bom para criar manchetes, mas não serve de nada quando se quer analisar uma realidade. Por isso, em economia, sempre trabalhamos com dados agregados, e tomamos muito cuidado com correlações espúrias e relações de causalidade.

Nesse sentido, é até compreensível que os responsáveis pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública tomem cuidado ao relacionar o aumento do número de armas em poder da população com a diminuição do número de assassinatos desde 2019, conforme podemos observar no gráfico de seu último anuário.

De fato, pode ser que haja outros fatores que levaram a essa redução, que teria ocorrido APESAR do aumento do número de armas em circulação. Ou seja, o sucesso das políticas de segurança pública foram tão retumbantes a partir de 2019, que conseguiram remar na direção certa mesmo com um forte vento contrário.

Até aqui, a boa prática no exercício da análise estatística. No entanto, começamos a desconfiar das intenções do pesquisador quando este toma carona em eventos isolados para defender a sua tese, como é o caso dessa matéria.

Imaginemos o inverso: e se o número de assassinatos tivesse se elevado ao invés de cair? O mesmo cuidado de separar correlação de causalidade teria sido tomado? O aumento de armas em circulação seria tomado como mais um fator para explicar a criminalidade, ou como O fator único?

São questões retóricas, claro. O que mostra que o que eu penso vem antes dos dados. E se os dados não ornam com o que eu penso, danem-se os dados.

Debate ideológico

Esse debate sobre o direito ao porte de armas me faz lembrar o debate sobre a maioridade penal.

No Brasil, sempre que um ”de menor” comete um crime bárbaro, a direita sai pedindo redução da maioridade penal, enquanto a esquerda defende o status quo, lembrando que a violência tem causas mais profundas, não será punindo o infrator que se evitará o crime e acusando histeria do outro lado.

No caso das armas, os papéis se invertem. Sempre que há um massacre nos EUA, a esquerda sai pedindo controle de armas, enquanto a direita defende o status quo, lembrando que a violência tem causas mais profundas, que não será controlando armas que se evitará o crime e acusando histeria do outro lado.

Nesses debates, os aspectos técnicos perdem relevância, de longe, para os aspectos políticos e ideológicos.

Estou certo de que os comentários a este post corroborarão a tese.

A ciência engajada é o túmulo da ciência

Átila Iamarino surgiu no cenário nacional como um brilhante divulgador da ciência. Com seus vídeos inteligentes e divertidos, Átila se notabilizou por traduzir assuntos áridos em uma linguagem acessível ao leigo.

Com o início da pandemia, Átila utilizou toda a sua habilidade para chamar a atenção do público para o problema, ajudando a conscientizar a população para a importância do distanciamento social e cuidados básicos de higiene.

Mas Átila evoluiu. Ou involuiu, a depender do ponto de vista. Passou de divulgador científico para militante político. O post abaixo é só um exemplo.

Há dois problemas com esse post, um formal e o outro conceitual.

O formal (o menos importante) é a comparação entre o número de armas por habitante com o número de vacinas por habitante. Átila está se referindo ao novo decreto presidencial, que aumenta o limite de armas por pessoa de 4 para 6. Obviamente não há 6 armas por habitante no Brasil, isso é apenas um novo limite, que vai ser usado por pouquíssimas pessoas. Além do mais, mesmo que 100% da população estivesse vacinada, essa comparação seria “seis armas por habitante versus uma vacina por habitante”, o que ainda assim passaria a impressão de escolhas equivocadas por parte do governo. Bem, do ponto de vista formal, essa comparação é um completo non sense.

Mas o mais importante é o problema conceitual. A mensagem por trás do post é a seguinte: o governo Bolsonaro está mais interessado em distribuir armas do que vacinas para a população.

É um direito ser contra o acesso a armas por parte da população. Eu mesmo não gosto da ideia. Isso é uma coisa. Outra coisa é misturar a questão das vacinas com a agenda anti-armamentista. O que queria Átila? Que todo o processo legislativo ficasse congelado até que 100% da população fosse vacinada? Não se aprova mais nada até que todos sejam vacinados? Sim, porque qualquer lei aprovada que não seja em prol da vacinação será uma perda de foco. Ou é só a questão das armas e outros temas caros aos bem-pensantes que não podem ser tocados durante a pandemia?

Bolsonaro foi eleito com uma agenda bem definida. Essa questão das armas é um dos poucos temas em que este governo não está cometendo estelionato eleitoral. Não gosta da agenda? Esforce-se por eleger outro candidato nas próximas eleições. Este que está no Palácio do Planalto quer armar a população. E não deveria ser surpresa para ninguém.

O governo Bolsonaro tem sido uma nulidade nessa questão das vacinas. Eu mesmo escrevi vários posts a respeito. Criticá-lo por isso está mais do que certo. O problema é misturar duas agendas que não se comunicam somente com o objetivo de lacrar.

Quando um cientista começa a usar a ciência para fazer política, passa a falar somente para o público politicamente alinhado. As conclusões apresentadas passam a ser questionáveis: afinal, aquilo é ciência ou só narrativa? A ciência deixa de ser universal para servir de arma política.

A ciência engajada é o túmulo da ciência.

Arma na mão

Mais um “tema polêmico” vai desfilar na Sapucaí. Além do “momento Porta dos Fundos” na Marquês de Sapucaí, a letra do samba-enredo da Mangueira também se dedica a “provocar Jair Bolsonaro”, com o trecho “o futuro não tem Messias de arma na mão”. Letra sob medida para embevecer a intelectualidade da zona sul.

Por curiosidade, fui ver o mapa de votação de Bolsonaro na cidade do Rio há pouco mais de um ano. O capitão ganhou em TODAS as seções eleitorais da cidade no primeiro turno. Nas seções em verde mais claro (zona sul), as votações foram inferiores a 50%. Ou seja, ele ganhou, mas não de maneira avassaladora como nas periferias e favelas.

E como foi a campanha de Bolsonaro? Com ou sem arma na mão? Pois é…

Se Bolsonaro perder a próxima eleição na cidade, pode ter certeza de que foi porque não cumpriu sua promessa de colocar ordem na casa. Com arma na mão.

A estatística que me interessa

Quer ver como dois fatos estatísticos incontroversos podem levar a uma conclusão sem pé nem cabeça?

Fato 1: Os Estados da Amazônia tiveram crescimento de registro de armas de fogo de 54,6% de 2017 para 2018, enquanto no restante do País esse crescimento foi de “somente” 39%.

Fato 2: os Estados da Amazônia apresentaram crescimento de 1% nos assassinatos no mesmo período, enquanto no restante do País houve redução de 15% nesses mesmos crimes.

PORTANTO: como houve crescimento maior das armas na Amazônia, o crescimento dos crimes se deu por causa do aumento das armas de fogo. C.Q.D.

Nem vou aqui entrar no mérito de uma regressão estatística com dois pontos. Isso seria muito elaborado. A coisa é pior.

Não ocorre ao diretor do Fórum do Segurança Pública e nem ao jornalista que houve DIMINUIÇÃO de crimes no restante do País com concomitante AUMENTO de registro de armas. Se conclusão houvesse seria a inversa, pois ocorreu uma diminuição significativa de mortes. Na Amazônia, o aumento de 1% é estatisticamente irrelevante.

É claro que, confrontados com esse raciocínio óbvio, o diretor do Fórum e o jornalista rapidamente argumentariam (corretamente) com a insuficiência de dados estatísticos para concluir alguma coisa.

Mais e mais se confirma a definição de Estatística: é a ciência que serve para provar a MINHA tese.

PS: crescimento de 39% nos registros de arma de fogo no País em apenas um ano? Tá certo esse número? Parece meio exagerado, mas não chequei.