A Constituição de um só artigo

O ministro da Justiça, Flávio Dino, chegou à conclusão correta: toda essa discussão sobre a PL das Fake News é ociosa. No final, o STF e “outras agências do Estado” resolverão o problema. Ontem, o ministro Alexandre de Moraes já chamou na chincha os diretores das Big Techs. Daí para encontrar alguma alínea de nossa profícua Constituição que justifique multas e até prisão é piece of cake. Se até Flávio Dino, recém-chegado ao ministério, já encontrou uma forma de tascar uma multa de um milhão por hora ao Google com base no Código de Defesa do Consumidor (?!?), ao ministro do STF certamente não faltará criatividade.

Aliás, editorial do Estadão de hoje chama a atenção justamente para a invasão de competência do STF no caso da determinação do índice de correção do FGTS, assunto que deveria ser tratado pelo Legislativo.

A conclusão que chegamos é que tanto faz o que vai escrito na Constituição. No limite, poderia haver apenas um artigo, rezando algo assim:

Constituição do Brasil

Artigo único: é direito de todos os brasileiros serem felizes.

Parágrafo único: revogam-se todas as disposições em contrário.

Pronto. A partir daí, os luminares do STF decidiriam todas as questões com base no que acham que seja o belo, o bom e o justo. É basicamente isso que nos está dizendo o ministro da Justiça (não sem razão). Nesse mundo de Flávio Dino, a tarefa dos Congressistas se limitaria a aprovar emendas parlamentares, desde que cumprissem o mandamento de fazerem todos os brasileiros felizes. Senão, nem isso.

Empurrando a história

Barroso suspendeu liminarmente, em uma decisão monocrática, uma lei aprovada pelas duas casas do Congresso e sancionada pelo presidente da República. E, aparentemente, sua justificativa não se baseia em qualquer dispositivo constitucional, mas na possibilidade de “fechamento de vagas de enfermeiros”.

Obviamente não sou fã dessa lei. Creio que é o mercado que melhor decide sobre quanto um enfermeiro, ou qualquer profissional, deve ganhar. No caso, trata-se de um mercado competitivo, fragmentado, em que nenhum player empresarial domina a ponto de ter poder de barganha sobre os salários. Qualquer intervenção externa tende a afetar esse equilíbrio, levando, no caso, a demissões e/ou aumento de custos para os usuários.

Mas não é este o ponto aqui. Barroso atua, novamente, com base em suas “boas intenções”, ao invés de se ater ao texto da Lei Maior. Com base nesse entendimento, o salário mínimo deveria também ser revogado. O salário mínimo é um dos principais, senão o principal, motivo para o alto desemprego estrutural brasileiro e o grande grau de informalidade do mercado de trabalho. Assim como qualquer piso salarial artificial, o salário mínimo impede a contratação de uma mão de obra que não tem qualificação suficiente para produzir o tanto que custa. Não há lei que mude essa realidade, infelizmente.

Os políticos brasileiros são demagogos e não entendem as leis da economia. Por isso, produzem leis que, ao fim e ao cabo, prejudicam a população brasileira no longo prazo. Mas um STF voluntarioso não é a solução para este problema. Porque se hoje o ministro Barroso está “empurrando a história” para o lado com o qual eu concordo, amanhã poderá ser o contrário, como no caso do aborto, por exemplo. O ponto é que o Judiciário não pode substituir o Legislativo, seja a que título for.

PS.: podemos estar somente presenciando um jogo de cena, em que Legislativo e Executivo jogam para a torcida e o Judiciário assume o ônus de ser o “bad cop” da história, uma vez que não precisa de votos. Seria menos mal, mas não deixaria de ser um traço de brasilidade de nossas instituições.

Ativismo judicial no dos outros é refresco

Ativismo judicial. Já ouviu falar neste termo?

Aqui no Brasil, o bolsonarismo tem sido a mais vocal, mas não única, força política a condenar o ativismo do nosso Supremo. Aqui temos um Supremo predominantemente progressista contra um Executivo conservador.

Nos EUA os papeis se invertem: um governo progressista contra um Supremo conservador. O presidente Biden rotulou a decisão da Suprema Corte de anular a Roe vs. Wade de “outrageous”, revoltante. E a Economist faz coro, dizendo que o Supremo não pode ter este tipo de “ativismo”.

No fundo, mais uma vez, não se trata de um problema conceitual sobre as atribuições da Corte Suprema, mas sobre o tipo de decisão que a Corte toma. Se me agrada, está cumprindo o seu papel. Se não me agrada, está sendo ativista. E isso vale para todas as colorações políticas.

O papel do STF no Estado Democrático de Direito

Vem a público a discussão de uma PEC com o objetivo de instituir o Legislativo como casa revisora do Judiciário.

A justificativa é de que o Supremo tem extrapolado o seu quadrado, invadindo a área de competência do poder legislativo ao, digamos, “expandir” os limites da Constituição, interpretando dispositivos constitucionais de modo a aprovar atos que não estão previstos na Carta Maior. O caso da criminalização da homofobia foi o exemplo citado na matéria.

Luis Roberto Barroso é o mais vocal ministro a defender esse papel expandido do Supremo. Em artigo na Folha de São Paulo de fevereiro de 2018, Barroso defende que a mais alta corte do país deve acolher “inequívocas reivindicações da sociedade, não acolhidas [pelo legislativo] em razão de um déficit de representatividade”. Nesse sentido, seria papel do Supremo “empurrar a história”, em momentos em que “a razão humanista deve impor-se sobre o senso comum majoritário”. Pensar o contrário seria submeter-se à “tirania da maioria” e ao “paternalismo moralista”.

Bem, não vou gastar pixels escrevendo como é perigosa para o Estado de Direito uma “tirania da minoria” de 11 iluminados que se auto-concedem o direito de exercer um “paternalismo moralista” sobre a nação. Parece óbvio. Meu ponto é outro: por que agora?

Esses embates entre Supremo e Legislativo no campo dos costumes têm ocorrido de tempos em tempos, mas já faz algum tempo que o último ocorreu. Portanto, não se trata de uma reação imediata a um evento recente. O que nos leva novamente à questão: por que agora?

O único embate à flor da pele neste momento está ocorrendo entre o presidente e o STF. O Legislativo está envolvido porque um dos seus, o deputado Daniel Silveira, teve a sua cassação determinada pelo Supremo, uma clara invasão de competência. Não está na reportagem, mas esta seria, talvez, uma gota d’água que justificaria o timing da apresentação dessa PEC.

É óbvio que essa PEC não tem como prosperar. Seria instituir a anarquia como forma de governo, dado que o Supremo certamente consideraria a nova norma inconstitucional, o que provocaria um impasse institucional insolúvel, restando a dúvida de quem tem a última palavra a respeito das leis do país.

Independentemente da sua aprovação ou não, essa PEC é apenas uma reação ao ativismo judicial do Supremo, que se arvora como a “consciência moral da nação”. Trata-se de um aviso, e agora caberia aos 11 ministros uma reflexão a respeito de seu papel no Estado Democrático de Direito.