STF: o autoritarismo por trás das boas intenções

Esse editorial é de extrema importância. Não somente porque aponta inutilidade da ação do Supremo (chamada de “utopia”), mas porque, principalmente, dá parcialmente nome aos bois, acusando o STF de pretender substituir a política. Volto a esse “parcialmente” mais à frente.

Já comentei aqui sobre a pretensão do recém-empossado presidente do Tribunal máximo do país, Luis Roberto Barroso, de transformar a Corte em Guia Genial doa Povos. A expressão que utilizou foi “empurrar a história”. O STF deveria usar seu poder para “empurrar a história” na direção correta.

Não há como negar que essa ideia tem um apelo especial. Por exemplo, é comum encontrar pessoas que acham que a nossa Constituição deveria ser escrita por uma “Comissão de Notáveis”, que teriam o dom especial de escrever uma Carta “certa”, e não essa joça que foi parida por políticos venais há 35 anos. Essa ideia de que haveria um grupo especial de seres humanos que resolveriam todos os nossos problemas é reconfortante. O único problema é que se trata de uma ideia autoritária, palavra que faltou no editorial.

Por trás de todo o seu discurso democrático, Luis Roberto Barroso tem uma ideia autoritária do papel do STF. Como bem aponta o editorial do Estadão, sua pretensão é substituir a política, o embate de posições a respeito das várias questões nacionais. O STF seria esse “coordenador-mor” do país, na feliz expressão do editorialista. Sempre, claro, com a boa intenção de “empurrar a história” na direção correta.

No caso específico, a Suprema Corte definiu a situação dos presídios como um “estado de coisas inconstitucional”. Claro, sem dúvida. Assim como se constituem “estados de coisas inconstitucionais” as submoradias, o analfabetismo (incluindo o funcional), as filas ultrajantes no SUS, a falta de saneamento básico etc etc etc. Para todos esses problemas nacionais, que aviltam a dignidade humana, o STF vai exigir “planos” do Executivo, com prazo certo e a serem homologado pelos supremos?

Recentemente, o ministro Alexandre de Moraes determinou que o Executivo elaborasse um “plano” para lidar com a população sem-teto. Fazer planos é a coisa mais fácil. O papel aceita tudo. O problema sempre está em colocar o plano em prática e medir seus resultados. Os ministros do STF vão também acompanhar a execução dos planos? Com que estrutura? Se não forem cumpridos, qual será a punição? Impeachment? Essa moda de “mandar fazer planos” parece mais uma forma de parecer preocupado com os problemas nacionais do que efetivamente trabalhar para resolvê-los.

O problema fundamental do país é a sua pobreza. Se o Brasil tivesse a renda per capita, digamos, da França, com certeza haveria mais recursos para manter presídios dignos. Com recursos escassos sendo disputados a tapa no Congresso, não deveria surpreender que reste muito pouco para os presídios. E não há sentença judicial que resolva.

Quer o judiciário ajudar a resolver o problema? Trabalhe na direção de aumentar a segurança jurídica no país. A insegurança jurídica é um dos principais pontos do chamado Custo Brasil, que diminui a produtividade e impede o país de crescer. Mas os luminares do Supremo preferem “empurrar a história” com sentenças inócuas.

A agência de checagem governamental: bem-vindo à URSS

O governo federal acaba de lançar uma “plataforma de checagem de informações“, no melhor estilo “agência de checagem”, com direito a um filmete de apresentação de 1 minuto (coloquei o link nos comentários).

Antes de entrar na “plataforma” propriamente dita, vale comentar o filmete, pois o contraste com o conteúdo da “plataforma” é chocante.

Em um minuto, o filmete publicitário manda as seguintes mensagens:

1. Os brasileiros precisam se unir contra o ódio

2. Informações falsas podem destruir a democracia

3. Informações falsas podem destruir famílias

4. Informações falsas podem destruir reputações

5. Informações falsas podem destruir vidas

6. É hora de frear o ódio

7. É hora de parar de repassar informações falsas

8. Quem espalha fake news, espalha destruição

Tudo isso embalado em muito choro, sorrisos, abraços, enfim, um clima bem emotivo.

Aí, você vai até a “plataforma”. O que você encontra? Uma série de refutações de “notícias falsas” contra o próprio governo e, claro, contra Lula.

Alguns exemplos:

“É falso que governo Lula mandou desligar bombas do São Francisco”

“É falso que ministério da Fazendo vai taxar setor de games”

“É falso que Lula levou mais de 400 presentes da Presidência”

E por aí vai. Tem espaço, inclusive, para “esclarecimentos” do governo. Por exemplo:

“Governo Federal esclarece sobre live com primeira-dama em canal no youtube”

“Esclarecimentos sobre os dados de desmatamento na Amazônia Legal jan/fev 2023”

Vários desses desmentidos são reproduções de levantamentos já anteriormente feitos por agências de checagem. Fica a questão: o governo irá reproduzir todos os desmentidos, ou somente aqueles que lhe interessam?

Alguns “esclarecimentos” são mero pretexto para exercer a hagiografia do presidente. Por exemplo:

“Presidente não disse que pobre deve esperar ajuda do governo.

A frase tirada de contexto, em vídeos editados postados em redes sociais, transmite uma ideia que não condiz nem com o legado e nem com a missão do presidente Luíz Inácio Lula da Silva”.

E, finalmente, como não poderia deixar de ser, não falta espaço também para fake news. Por exemplo, quando a “plataforma” refuta a notícia de que Ludmila teria recebido R$ 5 milhões da Lei Rouanet. Na verdade, foi a Lei do Audiovisual, mas a frase que finaliza o esclarecimento é fake: “Vale lembrar que nem a Lei do Audiovisual e nem a Lei Rouanet têm recursos transferidos diretamente do Tesouro previstos no Orçamento. Ou seja: o governo não tira dinheiro de outras áreas para financiar a cultura do país”. A verdade é que tira sim: isso se chama “gasto tributário”, em que o governo abre mão de impostos para fomentar alguma política pública. E “gastos tributários” estão previstos no orçamento. Se não fosse gasto, estaria criada a fonte da eterna juventude, em que se pode ter todos os bens do mundo sem gasto nenhum.

Em resumo: para quem acreditou no filmete, e esperava, finalmente, um Brasil livre das fake news, onde o leite e o mel correriam livremente, recebeu uma página em que o governo se defende. É o governo determinando como as notícias sobre si próprio devem ser corretamente interpretadas. Se isso não é autoritário, então perdi o sentido das palavras.

A luta entre fascistas e comunistas imaginários

Eugênio Bucci é um dos principais representantes de uma esquerda autoritária que se quer ver muito democrática. Em artigo de hoje, o professor da ECA-USP exige do jornalismo uma espécie de investigação sobre o fenômeno bolsonarista, no dizer dele, um “regurgitar do arbítrio”.

Bucci é daqueles que veem fascistas debaixo da cama. É só o outro lado da moeda dos que veem comunistas debaixo da cama. Haja cama para esconder tanta gente mal intencionada.

Mas esse não é o principal problema do colunista, cada um com seus delírios. O problema principal está destacado no trecho acima: Bucci convive mal com a escolha política de seus compatriotas. Para ele, “há algo por trás” das pessoas que escolheram livremente votar no candidato que se opôs ao seu preferido. Não exerceram a sua liberdade, foram coagidos por uma espécie de grande complô, financiado por não se sabe que ligações internacionais. Tive, inclusive, que pesquisar o que significa a palavra “janotismo”, que o professor usa para qualificar a simpatia da Faria Lima por Bolsonaro. Significa apenas “preocupação exagerada em vestir-se na moda”, e fiquei pensando qual a relação disso com o fascismo.

Dentro da margem de erro dos institutos, houve um empate técnico nas eleições. Lula é o presidente porque alguém precisa ganhar, nem que seja por um voto, mas o fato é que praticamente metade do país preferia o outro candidato. Bucci exige que o jornalismo faça uma investigação sobre essa metade do país, pois não lhe cabe na cabeça que as pessoas possam escolher Bolsonaro e não Lula. Esta é praticamente a definição de uma mente autoritária, que não admite que outros possam ter opiniões diferentes e exerçam seus direitos políticos de acordo com suas próprias premissas e experiências de vida. O mundo da mente autoritária é sempre dividido entre “nós e eles”, sendo que “eles” são ou mal-intencionados ou incapazes de tomar decisões esclarecidas, sendo apenas massa de manobra.

Bolsonaro não é exemplo de democrata, assim como Lula também não o é. Vivemos no Brasil, onde não conseguimos enterrar 1964 e olhar para frente, nessa espécie de “guerra fria” interminável entre fascistas e comunistas imaginários. Enquanto isso, o Centrão, a tradução mais literal do verdadeiro espírito brasileiro, deita e rola.

Vai vendo…

Da página de Carlos Alberto Di Franco:

“Em debate promovido pelo site Poder 360, Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, espraiou-se em descabida comparação entre as atividades do Judiciário e da imprensa. “Nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”. É declaração explícita de autoritarismo. Autêntico AI-5 informal do Judiciário.”

Entendedores entenderão

Estou terminando de ler A Fome Vermelha, de Anne Applebaum, que descreve em detalhes o Holodomor, a Grande Fome na Ucrânia no início da década de 30 do século passado, em que estima-se que tenham morrido 4 milhões de pessoas.

O Holodomor foi o resultado da política de coletivização das fazendas nas repúblicas soviéticas, antecedida pela desapropriação das fazendas dos “kulaks”, a burguesia do campo. Com o tempo, kulak virou sinônimo de qualquer um que se opusesse às políticas de Stálin. Ou melhor, Stálin colocava a culpa de tudo o que dava de errado nos kulaks, que encarnavam o “inimigo do povo”.

Aliás, na minha opinião, essa é a parte mais chocante de toda essa história: por mais que a realidade insistisse em contradizê-lo, Stálin interpretava tudo como uma grande luta política, onde sabotadores contrarrevolucionários tinham por objetivo minar o “governo do povo”. Essa ótica levava-o a negar a realidade ou atribuí-la aos “inimigos do povo”. Nesse sentido, relatos de camponeses morrendo de fome só poderiam ter sido “forjados” com objetivos políticos obscuros. Essa interpretação da realidade fazia com que Stálin apertasse ainda mais o torniquete contra os “kulaks”, que, a certa altura, eram todos os que insistiam em mostrar a realidade.

A mente autoritária enxerga o mundo de uma maneira peculiar, onde todos os que não rendem submissão absoluta representam um perigo para a autoridade. Todos se tornam inimigos, em um visão paranoica da realidade. A realidade, inclusive, se torna refém de uma eterna luta política, em que, o que importa, é a defesa da autoridade.

Entendedores entenderão.

Quem é o autoritário?

E quem define o que é “ódio, intolerância e desinformação”? Quem é o “dono da verdade”, aquele que definirá o que pode e o que não pode ser dito? Quem será o censor-mor da República?

E Bolsonaro era o autoritário que ameaçava a democracia.

A perseverança no caminho democrático

O que vai abaixo é um trecho do editorial do Valor de hoje.

O editorialista nem se deu conta de quão próxima está a sua posição da de Bolsonaro. O candidato do PSL investe em uma ligação direta com o povo por conta do “apodrecimento do sistema partidário”. Não por outro motivo, Bolsonaro não conseguiu se coligar a ninguém (não que não tivesse tentado). Tanto um quanto o outro menosprezam o sistema de partidos. Ou, antes, gostariam de ver partidos “limpinhos”, “puros”, que é a semente do pensamento autoritário.

O sistema de partidos é um dos pilares (ao lado da separação de poderes e de uma imprensa livre) de qualquer regime democrático. Fazer coligações com vistas a implementar programas de governo é a regra do jogo em qualquer sistema com mais de dois partidos. Basta ver as idas e vindas de Angela Merckel na Alemanha para montar um governo.

“Ah, mas aqui os deputados só querem se locupletar”. Não é verdade. Basta ver a ginástica retórica que Ciro Gomes está sendo obrigado a fazer para tentar se coligar ao Centrão. Se fossem só cargos, ele poderia continuar com seu discurso incendiário muito ao gosto das esquerdas e mesmo assim se coligar com o DEM. Não vai acontecer.

É muito fácil ficar sentado na poltrona e apontar o dedo para os políticos de um “sistema partidário apodrecido”. Esquecemos que esses mesmos políticos não sugiram de geração expontânea nem vieram de Marte. Estão lá porque os brasileiros, nós, os colocamos lá. E se, por um milagre da natureza, houvesse 100% de renovação do Congresso, os novos deputados se mostrariam tão ruins como os que foram substituídos. E pode mudar sistema, de proporcional para distrital ou mesmo sorteio: a coisa não vai mudar, porque de massa podre não sai bolo bom. O Congresso reflete o Brasil e os brasileiros, com suas ideias, defeitos e contradições.

Lula foi o último a apostar na “ligação direta com o povo”. Como tinha que lidar com o Congresso, comprou-o. Esta sensação de que “nenhum político presta” é a consequência lógica de um sistema autoritário, onde a “ligação direta com o povo” substitui os partidos. Lula e Bolsonaro têm mais em comum do que seus seguidores estão dispostos a admitir. A diferença é que Bolsonaro ainda não chegou ao poder, está ainda na fase dos “300 picaretas no Congresso”.

Mas não sou pessimista. Se perseverarmos no caminho da democracia, não cedendo à tentação da “ligação direta com o povo” (que é o caminho de todo autoritarismo), criaremos com o tempo uma cultura política no país, através dos canais regulamentares, dentre os quais se incluem os partidos. Sim, estes mesmos que estão aí, com esses políticos que estão aí. Não há atalhos.

A diferença entre um autoritário e um democrata

Qual a diferença entre a ditadura militar brasileira e a ditadura de Fidel Castro? O número de mortos pelo regime.

Qual a diferença entre um autoritário e um democrata? O autoritário de direita ama a ditadura militar e execra Fidel, o autoritário de esquerda ama Fidel e execra a ditadura militar, o democrata execra ambos.