A democracia israelense está viva

Benjamin Netanyahu, ao lado de Donald Trump e Jair Bolsonaro, forma o “eixo do mal” iliberal antidemocrático, exorcizado diuturnamente nas tertúlias vespertinas da Globo News e, de resto, por toda a mídia liberal (no sentido americano) global. Não fosse por Netanyahu, árabes e israelenses viveriam lado a lado em paz e harmonia, como o leão e o cordeiro bíblicos, em uma terra onde correria o leite e o mel. Mas o ultradireitista Netanyahu, aliado aos religiosos ultraortodoxos, estaria sabotando esse mundo idílico por pura maldade.

Bem, a história seria assim se fosse assim. Israel nasceu socialista. Os kibutz eram experimentos de vida comunista, o que, obviamente, não deu certo. O primeiro primeiro-ministro não de esquerda de Israel foi Menachen Begin, eleito em 1977, quase 30 anos depois da formação do Estado. Antes dele, Israel já tinha ocupado Jerusalém Oriental, Gaza, Cisjordânia e as colinas do Golã na guerra dos 6 dias, em 1967, marco inicial da lenda de Israel como “potência ocupante e colonizadora das terras palestinas”. Ou seja, 10 anos antes do primeiro primeiro-ministro conservador, Israel já era um pária da comunidade internacional. Netanyahu é apenas a resposta à preocupação número 1 dos israelenses, a sua própria sobrevivência como Nação. Os ataques de 07/10 poderão fazer os cidadãos israelenses reverem esse ponto de vista, mas esse é um problema do futuro.

É nesse contexto que a reforma do judiciário proposta por Netanyahu deve ser entendida. A coisa não é preto no branco, como querem fazer crer os jornalistas da Globo News. Tanto não é, que a reforma foi derrotada na Suprema Corte por uma margem apertadíssima, 8×7. A reforma veio ao encontro dos anseios de parte relevante da população israelense, que vê abusos de autoridade da Suprema Corte, que tem tradição liberal (de esquerda). Assim, a reclamação que Netanyahu verbaliza é que a direita ganha a eleição mas não consegue governar, quem realmente governa é a Suprema Corte. É este equilíbrio institucional que está em jogo.

De qualquer modo, essa votação, em plena campanha em Gaza, mostra que a democracia israelense está alive and kicking. Tenho realmente muita curiosidade por saber o que pensam os altos magistrados do Irã, da Arábia Saudita, da Síria e da Autoridade Palestina a respeito de seus governos.

Comparando coisas incomparáveis

No artigo abaixo, o autor compara os “radicais ultraortodoxos” que circundam Netanyahu aos terroristas do Hamas, pois ambos desejam a destruição do povo oposto.

Vamos fazer um breve exercício mental para entender o tamanho da bobagem. Imagine, por um momento, que o Hamas desaparecesse, e fosse substituído por lideranças mais razoáveis, que permitissem um programa de desarmamento supervisionado pela ONU. Você acha que o governo Netanyahu se aproveitaria dessa fraqueza para entrar em Gaza para fazer uma “limpeza étnica”? Ou mesmo um governo Netanyahu não teria alternativa a não ser dialogar?

Agora, imagine o inverso: Netanyahu e os ultraortodoxos somem do mapa, e um novo governo liberal assume com o compromisso de “derrubar os muros de Gaza” e “desmobilizar o exército” na região. Não precisa ter muita imaginação para saber o que os rapazes do Hamas fariam. Aliás, não precisa ter nenhuma imaginação: “jogar Israel ao mar” faz parte dos estatutos do grupo político que domina Gaza com mão de ferro desde 2007. Depois de fazer a sua própria limpeza étnica, o Hamas implantaria na região um regime islâmico regido pela Sharia, como no Irã. Isso também está nos seus estatutos.

A simetria, aqui, é completamente descabida. No início da década de 90, foi um movimento de Yasser Arafat que permitiu a assinatura dos acordos de Oslo, que permitiam uma solução de dois estados e reconheciam a Autoridade Palestina como o embrião de um governo árabe-palestino em Gaza e na Cisjordânia. A iniciativa foi bem recebida pelo lado israelense, e continuou sendo implementada mesmo com o assassinato de Rabin por um extremista judeu e a eleição de Netanyahu para substitui-lo. Esses acordos congelaram depois que ficou claro que Arafat não controlava as alas radicais de seu governo, que aproveitavam a abertura proporcionada pelos acordos para realizar ataques terroristas em solo israelense.

Na última vez que um governo israelense mostrou alguma boa vontade, levou um Hamas de presente. Foi no desmantelamento unilateral dos assentamentos em Gaza, em 2005. Dois anos depois, o Hamas tomou o poder da Autoridade Palestina no território, e começou a fazer a única coisa que sabe fazer: terrorismo. Não, a coisa definitivamente não é simétrica.

O grande eleitor de 2022

O que têm em comum os primeiros ministros Viktor Orbán, Boris Johnson e Benjamin Netanyahu com o ex-presidente Jair Bolsonaro? Os quatro representam a direita em seus países. O que os distingue? Os líderes de Hungria, Inglaterra e Israel fizeram questão de liderar pelo exemplo as campanhas de vacinação em seus países. Bolsonaro, não.

De nada adiantou dizer que “quem quis se vacinar teve vacina”, o que é verdade. Disponibilizar vacinas é muito, mas longe de ser o suficiente. Um líder lidera pelo exemplo, e uma campanha de vacinação começa com o exemplo que vem de cima.

Ao jogar a vacinação para o campo ideológico (a direita que defende a liberdade contra a esquerda totalitária que quer impor o que você deve fazer), Bolsonaro se desligou do que queria a maioria da população, que era simplesmente se livrar o quanto antes do vírus. Líderes de direita do mundo inteiro entenderam isso. Bolsonaro, não.

Lula, obviamente, se deixou fotografar sendo vacinado durante a campanha nacional e, ontem, novamente. Não precisa ser muito esperto politicamente para sacar que esse é o contraponto por excelência em relação a Bolsonaro. O ex-presidente perdeu a eleição para um ex-presidiário por meros 1,8% dos votos. Não tenho dúvida de que, se Bolsonaro tivesse seguido o exemplo de seus pares Orbán, Johnson e Netanyahu, a história teria sido diferente. A Covid foi o grande eleitor dessas eleições.

A maior ameaça à democracia

Luíz Sérgio Henriques, um dos organizadores da obra de Gramsci no Brasil, escreve o 54.897o artigo sobre a ameaça às democracias representada pela “ultradireita” (“extrema-direita”, pelo visto, já não é um termo suficiente). Dá como exemplo a reação de Trump, Netanyahu e Keiko Fujimori às suas respectivas derrotas eleitorais, colocando em dúvida a lisura do processo, o mesmo que já vem ocorrendo no Brasil.

Acho ridículo o “whataboutism”, que consiste em apontar os defeitos do contrário para tirar importância aos próprios. A frase que imortalizou o “whataboutism” no Brasil foi “e o petê?”, que serve como coringa para qualquer crítica ao governo Bolsonaro.

No entanto, correndo o risco de ser acusado de “whataboutism”, senti falta, no artigo, da menção a regimes que verdadeiramente suprimiram a democracia em seus países, como a Cuba de Miguel Diaz-Canel, a Venezuela de Nicolas Maduro e a Nicarágua de Daniel Ortega. O articulista prefere lembrar a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini, exemplos de quase um século atrás, e convenientemente esquece o que está acontecendo aqui e agora. Trump e Netanyahu podem ter tumultuado o processo, mas entregaram o poder. Diaz-Canel, Maduro e Ortega foram um pouco além do tumulto.

Henriques termina o artigo convocando “uma frente muito ampla em defesa das regras do jogo”, o que certamente inclui Lula e o PT. O mesmo Lula e o mesmo PT que apoiam abertamente regimes liberticidas como os de Cuba, Venezuela e Nicarágua. O mesmo Lula que, outro dia, em entrevista a um jornal chinês, elogiou o sistema de partido único e forte do país. São estes que vão defender a democracia brasileira?

Cada um, de acordo com sua própria escala de valores, vai avaliar qual dessas duas forças é mais deletéria para o sistema democrático e votar de acordo com sua própria consciência. O que não dá é, como faz o articulista, apontar Bolsonaro como a única ameaça às instituições democráticas do país.

Curiosamente, Henriques termina o artigo dando uma pista sobre qual é o maior perigo à democracia, ao afirmar que a tarefa de afastar a ameaça é relativamente simples, pois Bolsonaro “não disfarça e nem oculta seus truques”. Sem querer, o articulista mostra que gente como Trump e Bolsonaro são menos perigosos, por serem caricatos, golpistas de manual. Muito mais perigosa é a ameaça insidiosa, que se aproxima sem que se perceba. Um estudioso de Gramsci certamente sabe do que se trata.