A desqualificação anti-democrática do debate público

Ainda sobre a “pressão anti-democrática” das big techs sobre os deputados e a opinião pública. Reportagem de hoje repercute um estudo acadêmico que “prova” que o YouTube tem viés, ao privilegiar vídeos em sua plataforma que são contra o PL. Depois de ter que ler que Arthur Lira, a motoniveladora de regimentos, afirmou que as big techs “ultrapassaram os limites do contraditório democrático”, a matéria entra no estudo em si.

Os pesquisadores usaram uma ferramenta para descobrir que os 5 vídeos mais vistos contra o PL alcançaram 7,9 milhões de visualizações, contra apenas 0,9 milhão dos vídeos a favor. Bem, é provável que os repórteres não tenham entendido direito o estudo, porque para somar vizualizações não é necessária ferramenta alguma, basta saber somar. A questão, no entanto, é que os vídeos contra o PL realmente foram mais vistos, em uma proporção de 8 para 1, quando se comparam os 5 vídeos mais vistos de cada categoria. Por que?

Uma explicação é aquela alegremente abraçada pela reportagem: o YouTube estaria maliciosamente direcionando a audiência para os vídeos que lhe interessavam. A corroborar a tese, estaria um estudo “acadêmico”, o que quer dizer um estudo desinteressado e não enviesado, como tudo o que os cientistas produzem.

Mas há uma segunda explicação, para mim mais plausível. Não tive acesso ao “estudo”, mas gostaria de ver se o número de assinantes de cada canal foi usado como variável de controle para o levantamento. Porque é só obvio que canais com mais assinantes terão mais vizualizações. A questão é saber se o número de vizualizações foi desproporcional ou não ao número de assinantes de cada canal. Infelizmente, se essa informação existe, não foi informada na matéria.

Mas, mesmo que fosse encontrada uma desproporcionalidade estatisticamente significativa, isso por si só não provaria nada. A explicação poderia estar no “efeito rede”, que os algoritmos, grosso modo, seguem. Na Amazon, você verá sugestões de livros que outras pessoas que compraram aquele livro que você está visitando compraram. As redes sabem que aumentam as chances de visualização se as sugestões estiverem em linha com o gosto revelado pelo internauta.

– Ah, mas neste caso, o YouTube deveria balancear as recomendações, para o bem do debate democrático.

Não. Primeiro, que nem sei se isso é tecnicamente possível. Depois, e principalmente, porque as redes não são (nem poderiam ser) mediadoras do debate democrático. As redes são empresas que buscam maximizar o tráfego, e seus algoritmos são projetados para isso. Se isso cria bolhas ao longo do tempo, é outra discussão. Mas daí a dar o salto quântico e concluir que o YouTube maliciosamente direcionou tráfego para enviesar o debate público, vai uma distância cósmica.

O que mais uma vez fica claro é o desejo de desqualificar o contraditório. O uso do adjetivo “extrema direita” para se referir aos canais com opinião contrária vai na mesma linha do uso de palavras como “fascista” ou “neoliberal”, usadas para provocar ojeriza no receptor da mensagem.

Mas a coisa vai além. Uma das autoras do estudo considera que os internautas sejam hipossuficientes, parvos facilmente impressionáveis pelo primeiro vídeo que veem sobre determinado assunto, uma espécie de página em branco, pronta a receber o conteúdo do primeiro aventureiro que dela se apossar.

Pessoas com esse mindset, em ambos os lados do espectro político, costumam chamar aqueles com quem não concordam de “gado”. Claro, é sempre o “outro lado” que é sugestionável, diferente do “nosso lado”, que forma a sua opinião de acordo com pressupostos racionais e democráticos.

Eu prefiro pensar que quem realmente quer se informar, procura ativamente opiniões de ambos os lados. Mas essa é uma minoria. A maioria já tem a cabeça feita, e procuram opiniões que confirmem a sua própria (chamamos isso de “viés de confirmação”). Ou seja, mais vídeos contra o PL foram vistos porque mais pessoas eram contra o PL, e não mais pessoas ficaram contra o PL por terem visto mais vídeos contra o PL.

O curioso é que no site do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (ao qual a universidade onde foi feito o estudo é filiada), lê-se que um dos eixos de pesquisa é o “eparticipation”, o que envolve “capacitar e empoderar os cidadãos para expressarem suas opiniões e poderem exercer influência nos processos de decisão na esfera pública”. Faltou dizer “desde que a opinião seja a ‘certa’, e não ‘radical’ ou de ‘extrema direita’”. Certa vez, Pelé afirmou que o brasileiro não sabia votar. Por trás dessas palavras estava a presunção de que o brasileiro é hipossuficiente, e não vota nos candidatos que tem as ideias que eu acho “certas”. Nesse campo, estou com o saudoso Mário Covas, que dizia que o eleitor sempre vota certo, cabe aos políticos interpretar o seu voto. Essa desqualificação do voto e da opinião de uma parcela dos brasileiros não passa de uma tentativa anti-democrática de calar o contraditório.

Big Techs: o bode espiatório perfeito

O Estadão pública reportagem em que atribui às Big Techs o fracasso na tramitação do PL das fake news. Mais do que a atuação das Big Techs, tomamos conhecimento de como os autores da matéria entendem o funcionamento das redes e do processo democrático. Vejamos.

A reportagem tem início com a informação de que as Big Techs lideraram “uma operação de pressão e lobby” e “atuaram fortemente” para a derrubada do PL. Para provar o ponto, os repórteres fizeram um levantamento do número de vezes que representantes das empresas estiveram no Congresso. Além disso, conseguiram as aspas do presidente da Frente Parlamentar de Economia e Inclusão Digital, que afirmou que havia “recebido representantes de todas as plataformas”.

Além disso, as Big Techs teriam incentivado os cidadãos a fazerem pressão nas redes. A operação teria começado em 19/04, com o batismo do projeto de “PL da censura”, sugerindo que esse apodo tivesse sido criado nos gabinetes do Google e da Meta. Expressões como “os internautas foram instigados a mandar mensagens” e “as plataformas deram voz aos internautas para pressionar deputados” mostram como os repórteres quiseram transmitir a ideia de que, por trás de tudo, estavam sempre as poderosas Big Techs.

Este último ponto me faz lembrar as teorias da conspiração que envolvem George Soros por trás de toda a agenda da esquerda. No caso, os internautas não passariam de marionetes nas mãos das Big Techs. Na ânsia de provar o quão maléficas podem ser as plataformas (“empresas estrangeiras” foi um termo usado, para sugerir que houve interferência alienígena no processo democrático brasileiro), os repórteres não sentem vergonha de abraçar uma teoria da conspiração tosca. Não lhes passa pela cabeça que os “internautas” não precisam de muito para desconfiar de um PL abraçado com tanto ardor pelo PT.

Mas é em outra expressão que, me parece, está o grande engano da matéria. Os autores se referem à atuação das Big Techs como “interferência na discussão do Congresso”. Bem, até onde eu saiba, apesar de não regulamentada, a atuação de lobbies dentro do Congresso não é proibida. Se isto se configura como uma interferência indevida, então temos interferências indevidas desde quando Cabral aportou no Brasil. Isso existe nas democracias mais maduras, onde a atividade é regulamentada, e ninguém é acusado de “interferência”. Aliás, muito provavelmente os grandes jornais também contam com seus lobistas. Afinal, a remuneração da mídia que passou a fazer parte da PL das Fake News não está ali de graça.

Enfim, a matéria exerce o jus sperneandi, procurando os “culpados de sempre” para o fracasso, no Congresso, desse PL. É mais fácil do que admitir que o projeto não conseguiu convencer a maioria dos brasileiros e de seus representantes no Congresso. O processo democrático pode ser bastante doloroso.

Tributar a globalização é fácil, difícil mesmo é aplicar bem o dinheiro

Destaquei abaixo trecho do editorial do Estadão a respeito de um acordo no âmbito do G7, de modo a tributar multinacionais. Seria o fim dos chamados “paraísos fiscais”, onde essas maldosas fontes de desigualdade escondem os seus polpudos lucros, evitando, assim, que os governos possam usar esse dinheiro para mitigar o sofrimento dos mais pobres.

O trecho destacado já traz, em si, o ceticismo do editorialista com relação a essa arrecadação adicional de impostos. Não do ponto de vista técnico, ainda que seja uma tarefa difícil tributar entre fronteiras. Mas do ponto de vista da aplicação do dinheiro arrecadado: “se o dinheiro fosse bem aplicado, sem interferência do Centrão e de ministros gastadores”.

Confesso que tive que abandonar a leitura nesse ponto por conta de um ataque irreprimível de risadas.

Não vou nem perder muito tempo com a impropriedade: se não for o “Centrão” (Legislativo) e nem “ministros gastadores” (Executivo), quem vai definir o que fazer com o dinheiro dos impostos? O Judiciário? Anjos travestidos de deputados e ministros? O que temos é isso aí, e são esses que estão aí que vão decidir o destino do nosso dinheiro. Esse “se” não faz o mínimo sentido.

Mas o buraco é mais embaixo, como diria o poeta.

Não são nem esses os que realmente decidem. Foram outros deputados e ministros, no passado, que já decidiram pelos que hoje estão no poder. Cerca de 93% do orçamento federal está vinculado a gastos decididos nas décadas passadas. Os atuais legisladores e ministros têm pouquíssima margem de manobra.

Acrescentei duas notícias para ilustrar esse ponto: o imbróglio das dívidas dos Estados (R$350 bilhões são impagáveis) e o furo atuarial da previdência dos militares, calculado em R$700 bilhões. Ambos os gastos deverão ser cobertos por impostos no futuro. São somente amostras de como o grosso do nossos gastos já está decidido.

Claro que o Legislativo e o Executivo atuais poderiam mudar o curso dessa história, mexendo em privilégios adquiridos. Por exemplo, grande parte do rombo dos Estados tem origem na previdência dos funcionários públicos. A alíquota de contribuição já foi foi elevada em alguns Estados de 11% para 14%, mas está longe de resolver o problema. E sempre que se fala sobre o assunto, existe unanimidade em dizer que o tema não é “popular”, podendo prejudicar ambições eleitorais. Ora, se conter gastos com funcionalismo público é “impopular”, isso só significa que o peso do funcionalismo já ficou tão grande na sociedade brasileira que é impossível reverter o quadro. E mesmo que Legislativo e Executivo fizessem a sua parte, teríamos sempre um Judiciário pronto a defender os “mais pobres”.

Voltando à tributação das multinacionais: hoje, o dinheiro salvo da sanha arrecadatória é utilizado para novos investimentos por parte dessas empresas ou para pagar dividendos para os seus acionistas, a maioria pequenos investidores que têm nesses dividendos a sua renda para consumo. Os grandes acionistas, por outro lado, terão menos dinheiro para os seus gastos com luxo e suas ações de filantropia. Tudo isso para que os governos possam continuar sustentando suas máquinas de fazer o bem.

A angústia de Eugênio Bucci

Eugênio Bucci está angustiado com o valor das Big Techs americanas. Afinal, são necessários 3 anos de tudo o que o país produz para comprar essas empresas (pelo menos ele não cometeu o erro básico de comparar “riquezas”).

Destaquei os últimos 3 parágrafos do seu artigo de hoje. Em grande parte, o artigo descreve as explicações usuais para o valor absurdo dessas empresas. Seria basicamente porque dominam a tecnologia do futuro e manipulam bases de dados gigantescas sobre as pessoas a seu favor (esta última explicação é da The Economist). Bucci concorda com essas explicações, mas acha que estão longe de explicar tudo. Ele guarda os últimos parágrafos para descrever a sua explicação do fenômeno. E é essa que nos interessa, pois traduz uma visão comum a muitos.

Segundo Bucci, essas empresas se aproveitam de uma mutação do capitalismo que vem ocorrendo desde meados do século passado: os bens (“coisas úteis”, segundo Bucci) deram lugar aos “signos”. Por signos ele quer dizer marcas, mensagens. Para Bucci, “o capital virou um narrador, um contador de histórias”. E, segundo ele, isso passou a valer mais do que “as coisas úteis”. As Big Techs teriam se apropriado dessa “industrialização da linguagem” que manipula as pessoas, fazendo-as comprar seus “desejos” e não mais suas “necessidades”.

Bem, é difícil até escolher por onde começar. Mas vamos lá.

Bucci se refere a um fenômeno comezinho: o triunfo da publicidade. As pessoas não compram bens, compram marcas. Marcas estas construídas às custas de muito, muito esforço de propaganda ao longo de anos. Sem contar, claro, a qualidade do produto. Mas enfim, a questão é que não se trata de um fenômeno novo. Bucci mesmo diz que vem de meados do século passado. E porque isso aconteceu? Para tanto, precisamos voltar um pouco mais no tempo.

Na década de 20 do século passado, o PIB/capita americano era de cerca de 500 dólares. Hoje, um século depois, é de quase 60 mil dólares. E estamos falando de PIB real, já descontada a inflação do período. O americano médio enriqueceu mais de 100 vezes em um século. Guarde essa informação.

O psicólogo americano Abraham Maslow elaborou uma teoria sobre as necessidades humanas, que ficou conhecida como “pirâmide de Maslow”. A ideia é simples: as pessoas procuram satisfazer primeiramente as suas necessidades básicas, para depois caminharem para o consumo mais sofisticado. Na base da pirâmide de Maslow temos as necessidades fisiológicas (comer, vestir-se, dormir, fazer sexo) e em seguida caminhamos para outras necessidades: segurança, amor e relacionamentos, autoestima e realização pessoal, nessa ordem. Obviamente, o consumo dos mais pobres se limita à base da pirâmide e, à medida que vai enriquecendo, a pessoa vai galgando a pirâmide.

Voltemos ao enriquecimento do cidadão médio americano (e o mesmo vale para todos os países do mundo, em maior ou menor grau). Somos hoje muito, mas muito mais ricos do que éramos há um século. Pessoas pobres em países emergentes hoje têm uma renda e uma qualidade de vida (em termos materiais) superior aos ricos de um século atrás. A renda per capita brasileira hoje é de cerca de 10 mil dólares, cerca de 20 superior à renda nos EUA há um século.

Nesse processo de enriquecimento, galgamos a pirâmide de Maslow. As necessidades das pessoas mudaram com o tempo. Bucci lamenta que o “capitalismo” excite nas pessoas os seus desejos, deixando de lado suas necessidades. Não lhe ocorre que as pessoas já tenham satisfeitas as suas necessidades, e agora querem mais. Todas essas coisas “não úteis” são, na verdade, bem úteis. Aliás, este não é um processo novo.

Quando surgiu a indústria automobilística, carros não eram uma necessidade, eram um luxo. A humanidade poderia viver sem carros, como viveu durante milênios. Mas, uma vez incorporado ao rol de bens que podem ser comprados, o automóvel passou a ser uma “necessidade”. Isso pode ser aplicado a todas as inovações tecnológicas, desde a invenção da roda. Necessário mesmo não é. Afinal, a humanidade viveu sem isso (qualquer inovação) durante milênios.

Mas Bucci, na verdade, contrapõe a mercadoria em si à “ideia de mercadoria”. Ele dá o exemplo do fabricante de tênis que cuida mais da marca do que do próprio tênis. Claro: tênis é uma commodity, qualquer um pode fabricar. Está ali, na base da pirâmide de Maslow (a necessidade de vestir-se). O que as pessoas querem é subir na pirâmide. Não basta um tênis. É preciso comprar o tênis de tal marca, que tem tal qualidade, que é usado por tal atleta. Pode-se criticar essa atitude, mas não se pode negar que exista, e que faz parte da constituição mesma das pessoas. Queremos sempre mais, somos insaciáveis. Essa é a lógica.

O capitalismo não impôs essa lógica, como sugere Bucci. O capitalismo apenas serviu a essa lógica, por isso o seu sucesso. Na verdade, o capitalismo permitiu multiplicar a renda da população global em dezenas de vezes, e esse enriquecimento fez com que as pessoas passassem a exigir coisas mais sofisticadas do que simplesmente “coisas úteis”. Aliás, como dissemos acima, as “coisas inúteis” se tornam úteis e imprescindíveis com o passar do tempo.

Então, a resposta à pergunta angustiada do jornalista (o que afinal produzem essas empresas para valerem tanto) é simples: essas empresas estão no centro da revolução que está levando a humanidade a subir mais um degrau na pirâmide de Maslow. Isso não é novidade. Foi assim com as ferrovias, com o petróleo, com os automóveis. Todas indústrias que estavam no centro de uma revolução. As Big Techs são apenas mais um capítulo dessa história.

E, para finalizar, chamo a atenção para o último parágrafo, em que o autor diz que “o mundo distanciou-se da razão e do espírito”. Bem, há um século o mundo se envolveu em duas guerras mundiais que resultaram em milhões de mortos, inclusive em campos de concentração. E, não muito antes disso, ainda tínhamos escravidão de seres humanos. Não consigo pensar em nada mais longe “da razão e do espírito”. Ao contrário, ao tornar o mundo mais rico, as novas tecnologias permitem que mais pessoas se dediquem “à razão e ao espírito”. Se você acha que vivemos em um mundo brutal, é porque não conhece o que os nossos antepassados viveram.