Colocando a pasta de dente de volta no tubo

Eugênio Bucci debruça-se sobre um problema nacional de primeira grandeza: o resgate das cores nacionais, sequestrada que foram pelos “machistas, racistas, xenofobos e mesquinhos”, ou pelas “tchutchucas e dondocas de classe média”, segundo suas palavras. Na avaliação de Bucci, os R$ 3 milhões que serão gastos no desfile de 7 de setembro em Brasília estão justificados, se forem usados para resgatar as cores da nacionalidade das mãos dos pérfidos bolsonaristas.

O jornalista lembra, com nostalgia, dos tempos em que o verde e o amarelo não representavam o “golpismo”. Cita as Diretas Já, uma canção de Chico Buarque, a redação da Capricho e o novo logo da Placar como exemplos do uso do verde e do amarelo que não significavam o que, em tese, significam hoje. O que aconteceu?

Sabemos o que aconteceu. Nada. As cores nacionais nunca foram, nem poderiam ser, monopólio de nenhum grupo. O verde e o amarelo sempre puderam ser usados por qualquer cidadão. Então, afinal, por que essa identificação que Bucci lamenta? Sinto dizer, Bucci, mas a culpa é, em boa parte, de vocês, jornalistas. No início, quando as cores verde e amarela tomaram as ruas em apoio ao impeachment de Dilma, não faltaram “análises” ironizando os “patriotas com a camisa da seleção”. Foram o PT e suas cracas na academia e nas redações que entregaram de mão beijada o simbolismo. Ao bolsonarismo, só coube receber o presente de braços abertos.

Obviamente, não serão R$ 3 milhões gastos em um desfile bolado por um marketeiro que irão resolver o “problema”. Agora, é preciso que esses mesmos que “mistificaram” o uso das cores, as “desmistifiquem”. No ano passado, quando Lula apareceu com a camisa da seleção para torcer na Copa do Mundo, a cobertura jornalística frequentemente citava o fato de que aquelas cores haviam sido usadas pelos seus oponentes. Cada menção a esse fato é mais uma regada no cultivo do simbolismo.

Mas há um porém adicional de grande importância. O símbolo do PT é uma estrela vermelha, ou uma estrela branca sobre um fundo vermelho. Fica difícil dissociar o partido dessa cor, ou associá-lo ao verde e ao amarelo. Nas últimas eleições, os marketeiros do PT dançaram miúdo para tentar diminuir o vermelho sem descaracterizar o partido. ISSO não tem como esconder: pode fazer o que for, a cor do PT sempre será vermelha. Mas o PSDB, que durante anos foi o oponente principal do PT em eleições majoritárias, e que tem o azul e o amarelo como cores predominantes, nunca usou esse fato a seu favor, talvez por achar esse artifício baixo demais. Afinal, como sabemos, o PSDB é um partido de gentlemen. Coube ao bolsonarismo usar as cores nacionais como simbolismo sem pudor, confundindo partidarismo com patriotismo.

Eugênio Bucci quer uma fórmula mágica para recolher a pasta para dentro do tubo. Ele mesmo não avança em nenhuma “solução” ou “estratégia”. Sinto dizer que, enquanto for o PT a liderar esse esforço, podem gastar muitos R$ 3 milhões, que isso não vai acontecer.

A real força do bolsonarismo no Congresso

Essa votação da reforma tributária foi interessante para mapear a real força do bolsonarismo no Congresso, assumindo que grande parte dos votos pelo “não” tenham sido influenciados, de uma forma ou de outra, por Bolsonaro. Claro, haverá um ou outro deputado que terá lido o texto e não terá concordado com seu teor. Mas, convenhamos, a maioria segue os líderes e se movem por afinidades.

O primeiro mapa (gráfico 1) mostra a votação por partido. Com exceção do PL e do Novo (que só tem 3 deputados, sendo que 2 votaram contra), todos os outros partidos deram maioria constitucional (60%) para a PEC. Então, poderíamos deduzir que o bolsonarismo se reduz ao PL.

Mas vamos aprofundar um pouco mais, e analisar os votos por estado (gráfico 2).

Podemos observar que os deputados de RO, MT, SC, GO e RS não deram a maioria constitucional para a PEC. Será que esses estados têm maioria de deputados do PL, justificando essa distribuição? É o que veremos no gráfico 3.

Neste gráfico, podemos observar que, nesses estados, a proporção de votos “Não” é bem maior do que a proporção de deputados do PL, indicando que o bolsonarismo, nesses estados, extrapola partidos. Já o inverso ocorre em estados como AP, RN, MA e CE, onde a proporção de votos “Não” foi bem menor do que a proporção de deputados do PL. As defecções no partido do ex-presidente aconteceram nesses estados do Norte-Nordeste, indicando a fraqueza do bolsonarismo por lá.

O bolsonarismo conseguiu arregimentar 118 votos, sendo 75 no PL e os restantes 43 em outros partidos. No impeachment de Dilma Rousseff, 136 deputados votaram contra. Claro, são legislaturas diferentes, mas o perfil ideológico não deve ter tido grandes modificações. Assim, podemos dizer que o petismo-raiz tem mais ou menos 25% do Congresso, o bolsonarismo-raiz outros 25%, e os restantes 50% migram de um lado para o outro, a depender da pauta. Para passar PECs ou impeachments, é necessário conquistar 70% dos deputados dessa meiuca. Essa é a conta.

Tarcísio montou no cavalo selado

“Cavalo selado passa só uma vez”. Esse dito popular, que serve como um alerta para não perdermos as raras boas oportunidades que o destino nos reserva, cai como uma luva para a política. No jogo político, são raras as oportunidades de se destacar, de sair da pilha e tornar-se um “top of mind” da população. Tarcísio de Freitas soube perceber o cavalo selado da reforma tributária, montou e saiu maior do que entrou nesse processo.

O governador de São Paulo, fazendo a leitura correta do cenário político, percebeu que a reforma tributária já estava encaminhada, e seria tolice simplesmente cruzar os braços e esperar pelo desfecho. Ao invés disso, foi à luta: mobilizou a bancada paulista e outros governadores, e conseguiu emplacar uma regra favorável aos grandes estados na composição do Conselho Federativo. Portanto, nem a composição ficou refém dos pequenos estados, nem as regras ficaram para lei complementar, que eram dois dos receios legítimos de quem torcia o nariz para a ideia.

Confesso que normalmente não boto muita fé em tecnocratas alçados ao poder político pelas mãos de um padrinho poderoso. Está aí o exemplo de Dilma, um desastre político. No entanto, Tarcísio passou pelo seu primeiro teste: mostrou capacidade de articulação, composição e liderança, requisitos indispensáveis para quem almeja governar.

Claro que Bolsonaro e suas hostes não gostaram nada. Um ideológo bolsonarista tuitou que Tarcísio é um “neo tucano”. O governador de São Paulo já recebeu o fatwa do aiatolá da Barra, e seu nome, daqui em diante, será maldito em todos os cantos do reino bolsonarista. Foi uma jogada de risco do governador, considerando que Bolsonaro ainda mobiliza uma parcela relevante do eleitorado. De qualquer forma, as eleições de 2026 ainda estão distantes, e muita água vai rolar. De tudo isso, fica a mudança de patamar de Tarcisio de Freitas, de uma apadrinhado de Bolsonaro para alguém com luz própria. Não é pouca coisa.

O falso paralelo que une petismo e bolsonarismo

O jornalista Breno Altman, do site Opera Mundi, é para o petismo aquilo que foi o jornalista Allan dos Santos para o bolsonarismo, uma espécie de propagandista e porta-voz informal. Portanto, ler Breno Altman é ler o verdadeiro pensamento petista em seu estado bruto, antes de ser lapidado pela realidade.

Sobre a Nicarágua, Altman nos propõe o seguinte paralelo: quem é a favor da investigação e prisão dos golpistas de 08/01 não pode ser contra a repressão de Daniel Ortega na Nicarágua, que também está agindo contra golpistas.

Segundo o “raciocínio” de Altman, há somente dois atores consistentes nessa história: os petistas, que defendem a ação dos governos contra os golpistas, e os bolsonaristas, que criticam a ação dos governos contra os seus críticos. Aqueles que criticam Ortega mas apoiam a ação do Estado brasileiro contra os bardeneiros de 08/01 estariam sendo contraditórios.

Esse paralelo de Altman é da mesma natureza daquele feito por Lula, quando comparou a longevidade de Ortega no poder com a mesma longevidade de Angela Merkel na Alemanha. A longevidade é a mesma, mas o processo para se chegar lá é completamente diferente em uma democracia e em uma ditadura. Basicamente, quem fazia campanha contra Merkel não corria o risco de ser preso. Não se trata de uma diferença semântica.

Essa é a diferença fundamental entre a repressão de Ortega e os processos contra os baderneiros de 08/01 na forma da lei de um estado democrático. Comparar os dois eventos só serve para legitimar o regime nicaraguense (como fazem os petistas) ou para deslegitimar o regime brasileiro (como fazem os bolsonaristas). Não há termos de comparação entre uma ditadura e uma democracia, por mais falha que seja.

Opinião pública e poder

O Estadão traz hoje as fotos de algumas dezenas de pessoas que participaram da invasão de domingo. O ânimo era de “tomada de poder”.

Ontem, conversei com um amigo que tem uma amiga acampada. Ele me contou que sua amiga acha que realmente está participando de um evento histórico, e tem fé absoluta, religiosa, de que vão tomar de volta o poder usurpado pelos comunistas. De alguma forma, fazem-me lembrar os terroristas que buscavam derrubar o regime militar, nas décadas de 60 e 70. Estes, apesar de ateus, tinham uma fé religiosa na marcha da História, que reservava ao comunismo o seu mais alto lugar.

No entanto, as relações de poder em uma sociedade complexa, onde convivem milhões de pessoas em que cada cabeça é uma sentença, é tremendamente mais complexa do que os esquemas simplistas do Bem x Mal que levam a atos como os de domingo.

Uma sociedade complexa se organiza em torno de pactos de poder. O atual, no Brasil, se organiza a partir dos pressupostos de uma democracia representativa, em que o poder é dividido entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Este conjunto de forças exerce o poder não em nome de si mesmo, mas em nome dessa massa amorfa chamada “povo”. O povo se faz presente não somente durante as eleições, mas ao longo do tempo, através de um outro conceito amorfo, ainda que mais restrito, a “opinião pública”. A opinião pública é esse conjunto de forças que não conseguimos dizer de onde vêm e para onde vão, mas que influenciam grandemente o poder formal ao longo do tempo.

Muitos, olhando o quadro atual, poderiam pensar que não há outro jeito de tomar o poder a não ser tomando de assalto o núcleo formal do poder, como sonham os bolsonaristas fanáticos. No entanto, sem o apoio dessa coisa chamada “opinião pública”, nada feito. Vou dar três exemplos.

O primeiro foi a tomada de poder pelos militares em 1964. Não se tratou de uma quartelada pura e simples, mas algo foi muito maior. A deposição de Jango foi feita no Congresso, referendada pelo Supremo e precedida por passeatas gigantes e editoriais furibundos dos principais veículos de imprensa da época. Havia uma espécie de clamor da opinião pública por aquela solução, que os militares somente operacionalizaram.

Passaram-se os anos, os militares tomaram gosto pelo poder e, para lamento dos terroristas que procuravam “tomar o poder”, contavam com grande popularidade em virtude do chamado “milagre econômico”. No entanto, essa popularidade se esvaiu com a inflação, e os ventos da opinião pública, aos poucos, se voltaram contra o regime. Políticos como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves conduziram esse processo por dentro das estruturas de poder, o que se mostrou muito mais eficaz do que atentados terroristas. Eles conduziram uma transição de poder com amplo apoio da opinião pública.

Por fim, o impeachment de Dilma Rousseff demonstrou, mais uma vez, que a resolução de problemas de poder se dá quando há alternativas reais de poder e o apoio massivo da opinião pública. Não foi preciso invadir o palácio do Planalto para tirá-la de lá.

O que temos hoje? De que lado está a opinião pública? Basta ler os jornais e ouvir as entrevistas das principais personalidades do país a respeito do que ocorreu no domingo. Definitivamente, a opinião pública não está ao lado dos bolsonaristas radicais, ainda que possam concordar, genericamente, com a sua pauta. Não há, portanto, a mínima chance de movimentos desse tipo prosperarem.

Então, não há solução? Deve-se aceitar bovinamente tudo o que os poderes formais impõem? De maneira alguma. Temos, como cidadãos, o direito de nos opormos ao que achamos errado. Quando a maioria se juntar ao que pensamos, será questão de tempo para que o poder formal mude de mãos. A História não acaba, está sempre em movimento.

Claro que esse tipo de raciocínio pressupõe o tempo. Não se pode ser como a criança que planta um feijão no algodão e chora no dia seguinte porque o feijão ainda é um feijão. Essas mudanças de vento levam tempo, muitos anos, às vezes décadas. Getúlio Vargas ficou 15 anos no poder, os militares 20 e o PT, 13 anos. Para os que não suportam a ideia de tanto tempo com o poder nas mãos “erradas”, trago a má notícia de que a maioria da opinião pública talvez não concorde que o poder esteja nas mãos erradas. No dia em que concordar, será questão de pouco tempo para que o poder mude de mãos.

Cada vez mais longe da pacificação

Reza a lenda que Brasília foi construída para isolar os políticos de protestos populares. Verdadeiro ou não, esse “objetivo” foi cumprido relativamente bem até o dia 17/06/2013, quando populares ocuparam a parte externa do Congresso Nacional. Ontem, novamente as sedes dos três poderes foram ocupadas por populares. Os dois eventos, separados por quase 10 anos, guardam semelhança em alguns aspectos, mas são profundamente diferentes em outros.

Os protestos de 2013 pegaram o mundo político e, porque não dizer, os próprios manifestantes, de surpresa. Sem liderança ou pauta definida, os protestos manifestavam uma espécie de “malaise” em relação ao governo de turno e à classe política em geral. O que começara com grupelhos de esquerda protestando contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, foi engolfado por multidões protestando contra “tudo isso que está aí”. Atordoados, os políticos começaram a prometer tudo para todos, até que as manifestações voltaram ao nada de onde surgiram, e tudo voltou como dantes no quartel de abrantes. Isso é normalmente o que acontece com movimentos sem objetivos claros e, principalmente, lideranças hábeis. A Revolução Francesa só funcionou porque tinha um Robespierre com um plano de ação para o dia seguinte.

Os protestos de 2023 (e aqui incluo os acampamentos em frente aos quartéis e o quebra-quebra de ontem) também surgiram “contra o sistema”. A semelhança com 2013, além da foto de populares no telhado do Congresso, acaba aqui. Ao contrário de 2013, havia um objetivo claro e uma liderança definida, ainda que oculta. O objetivo era pedir e apoiar um golpe militar que reconduzisse ao poder o líder oculto do movimento, Jair Bolsonaro. Antes de continuar, vamos tentar construir a ponte que liga esses dois eventos separados por 10 anos.

Havia, como dissemos, um mal-estar generalizado contra a classe política. Este mal-estar só fez aumentar e explodir com as revelações da operação Lava-Jato. O movimento pró-impeachment de 2015/2016 foi uma extensão dos protestos de 2013 e, a seu exemplo, apartidário. Nesse movimento, havia uma minoria que pedia um golpe militar. Eram caminhões de som menores, que ficavam na periferia das manifestações. O núcleo do movimento, formado por grupos como o MBL e o Vem Pra Rua, defendia uma saída institucional, o que acabou ocorrendo. Mas os grupos golpistas estavam sempre ali, como relíquias de um passado distante.

O caráter apartidário desses movimentos era o sinal evidente de que qualquer político que se mostrasse desvinculado do sistema tinha grande chance de sucesso. Bolsonaro levantou essa bandeira com rara habilidade, encarnando os ideais dessa espécie de “limpeza” das instituições. O seu anti-petismo, na verdade, era um anti-sistema. Notem que a ojeriza dos bolsonaristas nunca se limitou ao PT. O PSDB sempre foi “o parceiro do PT”, o centrão só se movia por dinheiro, o STF só tinha bandidos, os governadores eram sabotadores. Nada prestava, a não ser Bolsonaro.

Jair Bolsonaro, portanto, foi o underdog que, como herói improvável, apareceu como o líder daquela franja golpista que mal aparecia nas manifestações pelo impeachment. Tendo uma parcela firme, ainda que minoritária, do eleitorado a seu lado, a lei da polarização fez com que Bolsonaro obtivesse o apoio de outras parcelas da população que não comungavam de suas convicções anti-sistema. Uma minoria, assim, tornou-se uma maioria, e ele foi eleito em 2018 e perdeu por pouco em 2022.

Chegamos, então, a janeiro de 2023. Bolsonaro perdeu as eleições e aquela franja se reuniu na frente dos quartéis, pedindo um golpe militar. E ontem, enfim, partiu para as vias de fato, uma alegoria perfeita da retórica anti-sistema. Cada parte do patrimônio público depredado é expressão física desse discurso.

Obviamente, as instituições brasileiras estão doentes. As manifestações de 2013 e a ascensão de um sujeito como Bolsonaro indicam alguma falha no sistema. No entanto, também é óbvio que qualquer “solução” por fora do sistema tem chance zero de prosperar. Quando muito, eventos como o de ontem só servem para deixar claro a que ponto pode chegar o discurso anti-sistema, o que somente fortalece o mesmo sistema, o contrário do objetivo declarado das manifestações.

Por fim, há um líder inconteste do ocorrido. Por omissão e abuso de mensagens dúbias, o ex-presidente levou essa franja golpista a acreditar que algo poderia acontecer. Na medida em que foi ficando claro que nada aconteceria, só restou o ato de desespero que testemunhamos ontem. Bolsonaro foi o político que empunhou a bandeira anti-sistema, e sua retórica se materializou na depredação de ontem. Ele é o responsável último, senão juridicamente, pelo menos, politicamente.

Mas, não nos iludamos, prender Bolsonaro e os responsáveis pela depredação de ontem não irá pacificar o país. É preciso entender o que gerou esse fenômeno. Caso contrário, estaremos fadados a repeti-lo.

A luta entre fascistas e comunistas imaginários

Eugênio Bucci é um dos principais representantes de uma esquerda autoritária que se quer ver muito democrática. Em artigo de hoje, o professor da ECA-USP exige do jornalismo uma espécie de investigação sobre o fenômeno bolsonarista, no dizer dele, um “regurgitar do arbítrio”.

Bucci é daqueles que veem fascistas debaixo da cama. É só o outro lado da moeda dos que veem comunistas debaixo da cama. Haja cama para esconder tanta gente mal intencionada.

Mas esse não é o principal problema do colunista, cada um com seus delírios. O problema principal está destacado no trecho acima: Bucci convive mal com a escolha política de seus compatriotas. Para ele, “há algo por trás” das pessoas que escolheram livremente votar no candidato que se opôs ao seu preferido. Não exerceram a sua liberdade, foram coagidos por uma espécie de grande complô, financiado por não se sabe que ligações internacionais. Tive, inclusive, que pesquisar o que significa a palavra “janotismo”, que o professor usa para qualificar a simpatia da Faria Lima por Bolsonaro. Significa apenas “preocupação exagerada em vestir-se na moda”, e fiquei pensando qual a relação disso com o fascismo.

Dentro da margem de erro dos institutos, houve um empate técnico nas eleições. Lula é o presidente porque alguém precisa ganhar, nem que seja por um voto, mas o fato é que praticamente metade do país preferia o outro candidato. Bucci exige que o jornalismo faça uma investigação sobre essa metade do país, pois não lhe cabe na cabeça que as pessoas possam escolher Bolsonaro e não Lula. Esta é praticamente a definição de uma mente autoritária, que não admite que outros possam ter opiniões diferentes e exerçam seus direitos políticos de acordo com suas próprias premissas e experiências de vida. O mundo da mente autoritária é sempre dividido entre “nós e eles”, sendo que “eles” são ou mal-intencionados ou incapazes de tomar decisões esclarecidas, sendo apenas massa de manobra.

Bolsonaro não é exemplo de democrata, assim como Lula também não o é. Vivemos no Brasil, onde não conseguimos enterrar 1964 e olhar para frente, nessa espécie de “guerra fria” interminável entre fascistas e comunistas imaginários. Enquanto isso, o Centrão, a tradução mais literal do verdadeiro espírito brasileiro, deita e rola.

A força das instituições

Por óbvio não conheço detalhes, e tudo que vou escrever a seguir se baseia na minha percepção das coisas, mas, ao que parece, o presidente (agora ex) do Peru, Pedro Castillo, foi vítima da ilusão do apoio do “povo”. Contando com o “povo” para se manter no poder, Castillo tentou uma cartada, frustrada em poucas horas.

Em uma sociedade minimamente organizada, o que manda são as “instituições”. O “povo” não passa de uma massa amorfa, desorganizada, incapaz de impor a sua vontade. Mesmo porque, a “vontade” do povo é, como o próprio, amorfa. São as instituições que dão estrutura à vontade do povo. Se elas funcionam bem, se são inclusivas ou extrativistas, se estão capturadas por interesse privados, isso é outro problema. O ponto central é que são as instituições a instância onde se resolvem as coisas na arena política.

Nas ditaduras pessoais, as instituições se confundem com uma pessoa. No entanto, mesmo nesse caso, o ditador precisa se mostrar hábil para se manter no poder. Afinal, trata-se apenas de um único homem, que domina as instituições do país com sua maneira de equilibrar os pratos e satisfazer ou aterrorizar pretendentes ao poder.

Em uma democracia, a mesma coisa. O detentor do poder mantém-se na medida em que consegue equilibrar os pratos. O poder é limitado pelas instituições. Muitos acham, por exemplo, que o impeachment de Dilma só ocorreu porque Eduardo Cunha assim o quis, ou que um processo de impeachment de Bolsonaro só não ocorreu porque Rodrigo Maia e, depois, Arthur Lira, não quiseram. Ledo engano. O presidente do Congresso, de fato, tem a caneta. Mas é subordinado aos interesses da Casa que preside. Cabe ao presidente do Congresso medir a temperatura e dançar conforme a música. É a instituição, no fim do dia, que manda.

Muitos esperavam (e ainda esperam) que a força do “povo” fosse suficiente para que Bolsonaro se mantivesse no poder, desafiando as instituições. Se tentasse, aposto que seu destino seria o mesmo que o de Castillo. O ”povo” na rua tem alguma influência sobre as instituições, sem dúvida. Mas os que detém o poder dentro das instituições sabem distinguir entre uma verdadeira revolta popular e um amontoado de devotos de um político.

Fim de governo melancólico

O MTST bloqueava avenidas para chamar a atenção da sociedade para os “problemas sociais”. Eram, com razão, chamados de barderneiros, impedindo o direito de ir e vir de cidadãos que não tinham nada a ver com aquilo.

Obviamente, os bloqueios de estradas por parte de caminhoneiros devem ser igualmente condenados. Afinal, os fins não justificam os meios, ou a causa não justifica a baderna. Os cidadãos presos nas estradas não têm nada a ver com aquilo.

É só óbvio que o silêncio constrangedor de Bolsonaro, fechado em copas no Palácio, dá margem a esse tipo de manifestação. Fim de governo melancólico.

O que precisa ser estudado

O editorial do Estadão dá voz à perplexidade que tomou conta de alguns círculos bem-pensantes do país diante dos resultados eleitorais, particularmente para o Legislativo. Por ”razões ainda a serem estudadas”, os eleitores escolheram ministros completamente ineptos para representá-los no Congresso.

Vou dar aqui minha humilde contribuição para os “estudos” a serem feitos.

Comecemos com Damares e Salles. A questão, talvez, não é que tenham sido incompetentes. Pelo contrário. Esses dois ministros foram vistos como muito competentes na implementação da agenda vencedora das eleições de 2018, o que inclui valores conservadores da família e o uso da floresta para o desenvolvimento econômico. Para desgosto do Estadão, existe uma parcela da população que endossa essas agendas e viu em Damares e Salles seus legítimos representantes.

Já o caso de Pazuello é outro. As centenas de milhares de mortes causadas pela Covid certamente não fazem parte da agenda de ninguém. A perplexidade aqui é outra: como pode a população premiar com um mandato parlamentar um “negacionista”? O editorial reconhece que não dá para colocar 100% das mortes por Covid nas costas do governo, mas atribui à dupla Bolsonaro/Pazuello a transformação de uma calamidade em uma tragédia.

Será esta mesmo a percepção de toda a população? Creio que não. Para uma parcela dos eleitores, a Covid foi o que foi, ceifou vidas no mundo inteiro, e mesmo países com governos “responsáveis” sofreram muito com a doença. Bolsonaro deve ter perdido votos preciosos com seu discurso anti-vacina, mas não o suficiente para evitar que seu lugar-tenente fosse eleito. Aliás, pelo contrário: o discurso anti-vacina agrada uma parcela dos eleitores, o suficiente para eleger um seu representante no Congresso.

Por outro lado, o editorial constata, perplexo, que Bolsonaro obteve mais de 50% dos votos em Manaus, o epicentro da CPI da Covid. Aqui já não se trata de uma parcela da população, mas de sua maioria. Como explicar? Já tive oportunidade de escrever sobre isso aqui: os eventos de Manaus se encaixam em um contexto em que a população já está acostumada a não ter assistência decente de saúde. A população, em grande parte, simplesmente não ligou o que aconteceu com o governo federal, dado que os hospitais são estaduais ou municipais. A CPI tentou fazer essa ligação, mas só teve sucesso com quem não mora em Manaus.

Por fim, a simples ligação com Bolsonaro não foi o suficiente para eleger parlamentares. Queiroz e Wasseff não foram eleitos, por exemplo. O que reforça a tese de que não basta ser bolsonarista, é preciso trabalhar pela agenda que ele representa. O bolsonarismo é maior do que Bolsonaro. É isso que precisa ser estudado.