Caminho certo para a irrelevância

Era 08/03/2015. Estávamos na festa de aniversário do meu sobrinho, no salão de festas do prédio onde mora o meu irmão, na Pompeia (bairro de classe média em São Paulo), quando minha cunhada chama a atenção para um fato inusitado: um panelaço rolava solto no bairro. A então recém-eleita Dilma Rousseff estava na TV, fazendo um pronunciamento pelo dia da mulher. Espontaneamente (eu pelo menos não lembro de nenhuma convocação para aquele panelaço), as panelas diziam Fora Dilma! Uma semana depois, uma manifestação monstro, que colocaria o evento de 07/09 no chinelo, tomou conta da Paulista. Aquele panelaço foi o primeiro ato popular que desaguaria no impeachment de Dilma, cerca de 1 ano e 1 mês depois.

O que leva as pessoas às ruas? Pode-se desfiar aqui uma série de motivos, mas eu resumiria em um só: indignação. As pessoas precisam estar suficientemente indignadas com alguma coisa para se disporem a largar o conforto de seu sofá e juntar-se a uma manifestação política. Nesse sentido, podemos deduzir, avaliando as manifestações de ontem, que são poucos os que estão suficientemente indignados com o governo Bolsonaro.

Os analistas políticos confundem avaliação ruim com indignação. A avaliação do governo Bolsonaro é ruim e vem piorando. Mas isso não é suficiente para levar as pessoas às ruas. É preciso mais do que isso. Alguns dirão: “mas trata-se de um governo que tem quase 600 mil mortes na sua conta!”. A julgar pela adesão às manifestações, essa conta não é de Bolsonaro, ou exclusivamente de Bolsonaro. “Mas é a nossa democracia que está em jogo!”. Sério que alguém acha que o povo vai sair pras ruas pra defender os nossos “poderes constituídos”?. Conta outra.

As manifestações de ontem, a apenas um ano das eleições, deveriam ter enterrado de vez qualquer ilusão de que um impeachment é possível. Não há indignação suficiente na sociedade para que isso aconteça. Diagnósticos como “a oposição se dividiu” ou “a carta de Temer tirou o senso de urgência” só servem como autoengano. Para piorar, notinha de jornalista engajado tentou amenizar o desastre, dizendo que o palanque esteve cheio de “pesos-pesados” da política, sem notar que isso só piora a situação. Primeiro, porque tira a espontaneidade da manifestação. E, segundo e principalmente, estes tais “pesos-pesados” demonstraram que sua presença faz pouca ou nenhuma diferença.

O fato nu e cru é que não há adesão popular à tese do impeachment e, a um ano das eleições, não há tempo hábil para construí-la. Se depois de tudo o que aconteceu nos últimos dois anos o povo não está indignado a ponto de sair para as ruas, fariam bem as oposições em começar a pensar em uma estratégia alternativa. Nesse sentido, o PT jogou o seu jogo: com a desculpa de que não iria se misturar com seus algozes, Lula e seu partido não se associaram a um evento que, já sabiam de antemão, seria um fracasso de público e renda. Além, é claro, de não lhes interessar em nada um impeachment de Bolsonaro.

A julgar pelas falas dos “políticos pesos-pesados” presentes neste domingo, a luta pelo impeachment continua, e vão procurar atrair o PT para essa “luta”. Se a estratégia tem como objetivo continuarem irrelevantes e cevarem o caminho de um 2o turno entre Lula e Bolsonaro, estão no caminho certo.

A democracia que o povo quer

Carlos Melo, cientista político e professor do Insper, é mais um intelectual a perorar pela união dos “brasileiros de bem” (ele não usa essa expressão, que foi usurpada pelos bolsonaristas, mas o sentido é o mesmo) em “defesa da democracia”. Recortei vários trechos da coluna, porque são uma amostra da miopia dos intelectuais, que ainda não entenderam o que aconteceu, ainda que muito tenham estudado.

Em nenhum momento o colunista cita o Petrolão ou a maior recessão da história do Brasil entre as causas desse estado de coisas. Na verdade, segundo Melo, chegamos onde chegamos por conta de uma “polarização” entre PT e PSDB. Se tivessem se unido (e esse é ainda o sonho de uma noite de verão dos intelectuais de maneira geral e de Melo em particular, como fica claro no final da coluna), não teríamos deixado a democracia brasileira “em perigo”.

Melo acusa este governo de “aparelhar” o Estado para o seu projeto de poder, sem mencionar que se trata apenas de uma reação ao aparelhamento selvagem perpetrado pelo PT.

O colunista também se exaspera contra o mercado financeiro, que teria o dever de refletir os “riscos para a democracia” de um governo autoritário, mas não, faz festa e a bolsa bate recorde atrás de recorde. Diz o colunista que não há resultados econômicos duradouros sem democracia e que o mercado está sendo míope. China e Cingapura, que são tudo menos democracias, devem ser exceções, não é mesmo? De qualquer forma, a “democracia” nos garantiu a maior recessão da história.

E aqui chego ao ponto central do meu post: o povo está se lixando se temos democracia ou autoritarismo. O povo quer comida na mesa e que as coisas funcionem. Os que enchem a boca para pronunciar a palavra “democracia” produziram um sistema de castas protegidas, o maior esquema de corrupção da história e a maior recessão da história. Estamos catando os cacos de tudo isso.

Já disse aqui várias vezes: Bolsonaro não é a doença, é o sintoma. A democracia brasileira está doente não porque Bolsonaro ou seus auxiliares fizeram ou disseram isso ou aquilo. Bolsonaro ganhou a eleição porque a democracia brasileira já estava doente há muitos anos.

Essa história de “entendimento nacional” entre as “forças democráticas” é um papo bonito. Só precisa conferir se o povo pensa da mesma forma.