Mais um pouco do Professor Ioannidis

Fui dar uma olhada no paper do professor John Ioannidis, que concluiu que o índice de fatalidade da COVID-19 é de 0,24% (não 0,23%, conforme tuíte que colei aqui antes – por isso que eu recomendo ir sempre à fonte).

Bem, ainda não foi revisado por pares (peer reviewing), é apenas um pre-print. Trata-se de um meta-estudo, em que o pesquisador faz um levantamento de estudos já publicados, muitos deles sem peer-reviewing também.

O professor Ioannidis procurou estudos que especificamente medem a população infectada através de levantamentos sorológicos. Divide então o número de mortes até um determinado período para chegar no índice de fatalidade. Foram considerados 42 estudos específicos e mais 10 estudos nacionais não publicados.

O autor é muito cuidadoso em dizer que há uma imensa variedade de distorções nos estudos, de modo que é muito difícil chegar a um número que valha para todos. Ele próprio diz que a heterogeneidade é muito grande, o que dificulta tirar conclusões. A mediana é apenas uma grandeza de referência, não serve como guia para políticas públicas específicas de cada região. O índice de mortalidade varia de zero em algumas regiões da China até 1,54% em Connecticut. No Brasil, temos 0,23% em um estudo com 133 cidades, 0,39% no Espírito Santo, 0,11% no Rio de Janeiro e 0,39% no Rio Grande do Sul.

Bom, este é o estudo. As incertezas envolvidas são imensas para cravar um número, mesmo porque deve variar bastante de região para região. Com certeza a mortalidade não é maior que 1%, mas também não parece ser muito menor do que 0,2%. Parece tratar-se de uma doença por volta de 10 vezes mais mortal do que a H1N1, cujo índice de mortalidade é de 0,02%.

O trecho que achei mais curioso (destaque abaixo) foi um que o autor procura justificar altas taxas de mortalidade em certos hotspots a alguns fatores, entre os quais hospitais lotados e o uso desnecessário de respiradores e hidroxicloroquina.

Ou seja, o autor reconhece que evitar a lotação de hospitais diminui a taxa de mortalidade. O que nos leva à conclusão de que o índice de fatalidades só está neste relativamente baixo nível porque se procurou evitar a disseminação rápida da doença através do distanciamento social. Caso contrário, seria maior, pois os hospitais não dariam conta. Acho que esta é a maior falácia das conclusões tiradas de maneira açodada deste número: considera-se a taxa de mortalidade como uma variável exógena, uma característica da doença, sem considerar fatores ambientais. O autor deixa bem claro na parte da discussão do trabalho: “o índice de fatalidade não é uma grandeza física constante”. Portanto, varia de acordo com características locais, inclusive a capacidade de tratar a doença.

Quanto à menção da hidroxicloroquina como fator de piora do índice de fatalidades, sem comentários.

Sai seis, entra meia-dúzia

Muito bem, trocamos de ministro.

Nas próximas horas, espero duas coisas:

1) Uma resolução do ministério indicando a cloroquina como terapia eficaz no tratamento do Covid-19 e

2) Uma resolução do ministério recomendando a adoção do tal “isolamento vertical”, mantendo somente idosos e pessoas com comorbidades em casa, e liberando todas as atividades econômicas.

Se isso não acontecer, ficará claro que a troca no ministério foi somente por uma birra pessoal do presidente.

A fé na ciência

Fé e ciência trabalham com verdades. A primeira, com a verdade revelada. A segunda, com a verdade provada cientificamente.

Essa divisão, que parece, em princípio, clara e cristalina, só funciona até a página 2.

Ao que parece, Leonardo da Vinci foi um gênio universal, que dominava todos os campos do conhecimento humano. Foi o último, pois o campo do conhecimento humano se multiplicou de tal forma desde então, que é impossível a um ser humano dominar todo o conhecimento adquirido e acumulado durante séculos.

Esse enorme acúmulo de conhecimentos fez entrar no campo da ciência algo característico do campo da fé: a fé em uma verdade revelada. Os cientistas passam a ser os “sacerdotes” dessa nova crença, que nós, leigos, acolhemos com fervor religioso. Desconhecendo o método científico, acolhemos a palavra dos cientistas como “a revelação”.

E quando os cientistas não concordam entre si?

Aí se formam as igrejas dentro da ciência, cada uma com seu rebanho. Cada pessoa escolhe a “sua” igreja de acordo com suas convicções pessoais e ideológicas, mandando às favas o método científico, que poucos sabem do que se trata.

Esse debate sobre o uso da cloroquina é exatamente isso. Há profissionais de saúde que advogam seu uso porque teriam tido efeitos bastante positivos no tratamento de doentes da Covid-19. E há outros que afirmam que nada pode ser afirmado. Em quem acreditar?

A ciência, assim como a fé, tem seus cânones. E o artigo de fé máximo da ciência é o método científico. O que não segue o método científico é charlatanismo. Ou, para usar o léxico da fé, heresia.

Voltemos ao caso da cloroquina. Qualquer remédio, desses que se vendem em farmácia ou são administrados em hospitais, passou por 3 fases de testes: a primeira, preliminar, mede a segurança de sua administração em seres humanos. A segunda faz testes em pequenos grupos para verificar se vale a pena o investimento em testes mais amplos e, por isso, mais caros. E a terceira fase são testes controlados estatisticamente, feitos com grupos maiores, e que levam meses para chegar a conclusões que permitem aos órgãos de saúde aprová-los para uso da população. Os testes com a cloroquina, assim como com outras substâncias, estão no início na fase 3 em várias partes do mundo. Não há testes estatisticamente controlados que comprovem a sua eficácia.

Tenho lido e ouvido muito por aí que os médicos da Prevent Senior vêm aplicando a cloroquina com sucesso. No entanto, não vi os números em lugar algum. Quantos pacientes foram tratados? Quantos não foram? Qual o percentual de recuperação em cada grupo? Qual foi o contra factual usado? Qual o papel da interação de outras drogas?

A Bíblia dos cientistas é o artigo científico. Nele, o cientista coloca no papel o método que usou para chegar aos resultados a que diz ter chegado. Este artigo, então, fica sob o escrutínio de outros “sacerdotes”, de modo a garantir a robustez dos resultados. Onde está o artigo dos médicos da Prevent? Como podemos verificar a robustez dos resultados? Por enquanto, só ouvi coisas do tipo “diminuiu o número de mortes”. Isso não é lá muito científico. Claro que mesmo remédios experimentais podem ser administrados em pacientes que já não têm outra esperança. Isso acontece no mundo inteiro e nos melhores hospitais. Isso é uma coisa. Outra coisa é o órgão estatal que regula esses assuntos dar o seu carimbo em um remédio que ainda não passou por todas as fases de testes, para uso generalizado da população.

Os médicos podem prescrever (e estão prescrevendo) a cloroquina para os seus pacientes. Mas é por sua conta e risco. Tanto é assim que os pacientes precisam assinar um termo de ciência e responsabilidade antes de receber o remédio. Os pacientes são avisados de que são cobaias. O que querem os médicos que estão pressionando o governo é se livrar dessa responsabilidade, pedindo que o ministério da saúde diga que a coisa é segura e funciona, mesmo sem ter passado pelos testes científicos de praxe.

Fé e ciência se baseiam em verdades. E a verdade, no caso da cloroquina, é que o debate já há muito deixou de ser científico.