A lei não vale para todos nos trópicos

Não é mera coincidência que detalhes dos fatos relacionados ao 01 tenham vindo agora à tona, poucos dias depois de o STF ter liberado o uso de dados do COAF para tocar investigações. Dias Toffoli, o defensor número um das “instituições”, segurou o quanto pôde, mas teve que liberar o caso para o pleno ante a pressão da opinião pública e de órgãos internacionais, como o Gafi (grupo de combate à lavagem de dinheiro).

Óbvio que estamos ainda no início do processo. Não tivemos nem indiciamento, quanto mais julgamento e condenação. Só não é óbvio, pelo menos para mim, porque os petistas eram condenados já na fase de acusação pelo MP pelos mesmos que agora pedem para esperar a condenação judicial. “Se for culpado, que seja julgado e condenado” é a senha para posar de ético sem precisar execrar um dos seus.

Também é óbvio que “rachadinha”, assim como caixa 2, é prática milenar da política brasileira, todo mundo faz. “Por que só o Flávio, isso é perseguição política!”. Bem, a resposta é simples: porque Flávio é filho do presidente da República. Portanto, muito mais exposto politicamente. E, para piorar, eleito, assim como o pai, com a bandeira da “Nova Política”, em que as mãos não se sujam em conluios pouco republicanos. Sim, sem dúvida, comparar a rachadinha com o roubo da Petrobras para comprar o Congresso é o mesmo que comparar um furto de loja com o atentado às torres gêmeas. Mas ambos são crimes, ainda que de magnitudes completamente diferentes. Eu não furto lojas com a desculpa de que há crimes muito piores por aí.

Recentemente, a OCDE, fazendo coro com o Gafi, mostrou desconforto com a lei de abuso de autoridade, na medida em que tolheria as iniciativas de combate à corrupção ao manietar procuradores e juízes. Bolsonaro pai já externou mais de uma vez seu desconforto com as ações do Ministério Público, Toffoli tentou dar uma mãozinha com o COAF, o Congresso sempre esteve à disposição para coibir “abusos” da justiça (vide a dificuldade de aprovação de algo tão simples como a prisão após condenação em 2a instância). É muito difícil fazer valer a lei para todos aqui nos trópicos.

Terra de Ninguém

“… o que não pode é continuar essa terra de ninguém”, decretou o ministro de “súbitas convicções jurídicas adquiridas”, como bem o apelidou Fernão Lara Mesquita em artigo de hoje.

E o que serão essas “normas de organização e procedimentos” para o compartilhamento de dados do COAF e da Receita com a polícia e o ministério público? Simples: só pode compartilhar se tiver autorização judicial. Isso significa que para compartilhar dados de políticos ou de ministros do Supremo, será necessária a autorização de um… ministro do Supremo, dado o foro privilegiado. Para compartilhar dados de pessoas da planície, como eu e você, bastará a ordem de um “juizeco de 1a instância”, na já clássica definição de Renan Calheiros.

A “terra de ninguém” a que se refere Gilmar é justamente equiparar todos diante da lei. As “normas e procedimentos” visam retornar ao status quo das Ordenações do Reino: todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que outros.

Trata-se de tema hermético, de difícil mobilização popular. Mas é a coisa mais fundamental que a Suprema Corte do país vai fazer para livrar a cara de políticos com foro privilegiado. Teremos, como sempre tivemos, duas justiças. Não é à toa que o clima em Brasília está um “ninguém solta a mão de ninguém”.

O fim da Lava-Jato

Destaquei dois trechos do jornal de hoje: o primeiro é uma fala de Bolsonaro, afirmando com todas as letras que o pacote anticorrupção fica pra depois. O segundo é um trecho de um artigo de Fernando Gabeira, analisando o episódio COAF.

Lidar com prioridades é tarefa de qualquer presidente. Compor com o Congresso para aprovar primeiro o mais importante é o mais racional a se fazer. Até aí, tudo certo. (Se bem que sou capaz de apostar que, em um censo nas hostes bolsonaristas, a luta contra a corrupção ganharia de lavada contra a agenda econômica em termos de prioridade. Mas isso é detalhe).

Entretanto, seria somente uma administração de prioridades não fosse por um detalhe chamado Flávio Bolsonaro. O cerco ao COAF, peça fundamental na estratégia de Moro de combate à corrupção, tem o beneplácito do Planalto, que se junta ao Congresso e ao Supremo na demolição de um dos pilares da Lava-Jato. E tudo isso porque o 01 não quer que suas movimentações financeiras sirvam como prova em um processo.

COAF cercado, Moro em banho-maria. Senhores, é triste, mas a Lava-Jato acabou.

O COAF e o sigilo dos dados

Não sou especialista em processo legal, então não posso dar uma opinião técnica sobre esse assunto do repasse de dados do COAF. O que posso fazer é raciocinar em termos lógicos.

Existem duas grandes partes envolvidas nessa história: governo e cidadãos. Todos os atores envolvidos na decisão de Toffoli são governo: COAF, Receita, Polícia Federal, Procuradoria. Quando o COAF repassa dados para a Receita, os dados continuam dentro dessa grande entidade chamada governo. Há dois pontos nevrálgicos no caminho desses dados: o momento em que eles adentram a esfera governamental e o momento em que são usados para processar cidadãos.

O governo toma conhecimento dos dados sigilosos dos cidadãos através de vários canais: declaração do IR, registro de imóveis e automóveis e, o mais importante aqui, o reporte que os bancos fazem de movimentações acima de um determinado patamar para o COAF. Essas sim, representam invasão de privacidade dos cidadãos pelo governo. Não vi Toffoli preocupado com esse ponto.

O segundo ponto é ainda pior: a Receita Federal pode usar esses dados para autuar os cidadãos, ao largo do Poder Judiciário. A Receita multa os cidadãos em um processo administrativo, sem a autorização de um juiz. O cidadão pode entrar na justiça a posteriori, como fizeram os donos do posto de gasolina autuados. Mas a dor de cabeça já está instalada.

Agora, vamos ao caso em tela: a Polícia Federal e a Procuradoria não podem, ao contrário da Receita, iniciar processo sem autorização judicial. Esses órgãos usam os dados do COAF justamente para instruir esses processos. Ou seja, impedir o repasse de dados do COAF para órgãos de investigação sem autorização judicial é simplesmente antecipar a autorização à etapa anterior à própria investigação. O efeito prático disso será entupir o judiciário com um monte de pedidos de quebra de sigilo que eventualmente não chegariam à fase processual. Tornará a justiça ainda mais lenta no combate à corrupção.

Novamente: o sigilo já foi quebrado, sem autorização judicial, no momento em que os bancos repassam dados para o COAF. Que o COAF repasse dados para órgãos de investigação é apenas o corolário natural do processo. Exigir decisão judicial nessa fase da investigação servirá apenas aos interesses dos corruptos e sonegadores.

O início de tudo

O caso que deu início à suspensão do processo contra Flavio Bolsonaro chegou à Suprema Corte há dois anos, junho de 2017. Trata-se de uma prosaica sonegação de impostos por donos de um posto de gasolina em Americana.

Acompanhe comigo: 10 meses depois, em abril de 2018, a Corte julgou que se tratava de um caso de repercussão geral, e marcou julgamento para 11 meses depois, março de 2019. Ocorre que em março, o julgamento foi adiado para novembro, 6 meses depois. Se tudo desse certo, portanto, o recurso do casal de Americana seria julgado 2 anos e 5 meses depois de ter chegado à Corte.

Mas aí acontece a mágica: o advogado de Flávio Bolsonaro descobre que o seu cliente está sendo acusado com provas obtidas da mesma forma com que foram conseguidas as provas contra os proprietários do posto de Americana. Entra com um recurso no Supremo e… voilá, tudo suspenso. Fosse depender do curso “normal” das coisas, é possível que os anônimos de Americana morressem sem ter um veredito do Supremo Colegiado.

A Nova Política, aos trancos e barrancos, vem ganhando seu espaço no relacionamento com o Legislativo. Mas quando se trata de proteger os seus da longa mão da justiça, ainda vale a lógica da Velha Política.

Museu de grandes novidades

O Coaf vai rastrear o dinheiro do narcotráfico, anuncia o governo.

O Coaf já não fazia isto antes? Ou, quando tinha uma movimentação suspeita, as ligadas ao narcotráfico eram deixadas de lado?

Esse governo é um museu de grandes novidades.