Existe bicho-papão?

Não lembro exatamente o ano, mas certamente era no início da década passada. Minha filha estava no colegial, e fui dar uma olhada no livro de história do Brasil indicado. Estava lá: FHC havia sido um governo neoliberal, que entregou o patrimônio do povo brasileiro, mas o governo Lula veio para resgatar a dignidade. Tudo isso ilustrado por uma foto de uma mulher chorando ao olhar para o prédio do Banespa, que, como sabemos, foi privatizado em um governo neoliberal tucano.

Fui até a escola para reclamar. Aquilo era uma interpretação possível, mas não a única. O coordenador pedagógico me olhou como se eu fosse um ET e me disse: “mas o livro está certo, foi isso mesmo o que aconteceu”. E, como que para me consolar, acrescentou: “mas não se preocupe, esse livro não é dos piores, tem coisa muito pior por aí”. Saí aliviado.

Lembrei-me desse episódio ao ler o artigo de Sérgio Fausto, diretor do Instituto FHC, defendendo que o comunismo é apenas um fantasma conveniente para a extrema-direita.

Gasta duas das três colunas do seu artigo justificando esse ponto de vista com os fatos de que a URSS acabou, o Muro de Berlim caiu, a China não é mais comunista e Cuba e Venezuela são muito fracas para imporem qualquer doutrina. Ora, dois terços de um artigo somente para dizer o óbvio: o comunismo institucional não existe mais. Ok.

Mas é o último terço que nos interessa: o tal “marxismo cultural” também seria uma assombração conveniente. Como não há mais países comunistas, a extrema-direita denuncia “marxistas culturais” debaixo da cama, de modo a justificarem a sua própria agenda retrógrada. Segundo o articulista, isso não passaria de paranoia.

Assim como não notamos a atmosfera e um peixe não nota a água, os intelectuais não notam mais que estão inseridos em um mundo mental com categorias marxistas. Para o professor da escola da minha filha ou para a jornalista autora do tuíte reproduzido abaixo, em que diz que Faustão é um proletário, essa é a realidade. A única realidade possível. Então, falar de “marxismo cultural” é apenas como se um peixe dissesse “vivemos dentro da água”. É só natural.

Mas Sérgio Fausto tem um ponto. Da mesma maneira que o “marxismo cultural” toma conta de tudo, o “anti-comunismo” também é um esquema mental que perpassa todas as realidades. Tudo o que não é a agenda do líder, passa a ser “comunista”. A coisa torna-se caricata. Por exemplo, tive problemas, nas eleições de 2018, para provar que Amoedo não era “comunista”. Alguns achavam que eu era “ingênuo”, que não percebia a agenda marxista por trás daquelas belas palavras. Enfim, algo meio parecido com paranoia, como descreve o articulista.

Há uma tese, propagada principalmente por Olavo de Carvalho, de que o marxismo está tão entranhado nas estruturas da sociedade, que somente uma radicalização para o extremo oposto seria capaz de nos libertar. O seu uso continuado de palavrões (e, de modo geral, a grosseria inerente ao bolsonarismo-raiz) é somente uma das facetas dessa tática, que considera a violência (no caso, verbal) a única forma de diálogo com os marxistas.

Assim como os “intelectuais marxistas” não conseguiram ver Olavo de Carvalho e os bolsonaristas chegando, tão imersos que estavam em sua própria realidade, agora também os “intelectuais olavistas” não percebem que estão cevando, com a sua leitura peculiar da realidade e sua forma de tratar o contraditório, a volta dos “marxistas”. Quem não está em nenhum dos dois extremos acaba se cansando dessas diatribes.

A lógica do capitalismo

(Antes de começar este post, quero deixar claro que não tenho nada contra os funcionários da Ford, e me solidarizo com eles e suas famílias nesta hora difícil. O que vai a seguir é apenas uma tentativa de explicar como funciona o capitalismo).

Este assunto do fechamento da fábrica da Ford é fascinante. Quem leu Atlas Shrugged, de Ayn Rand, não pode deixar de lembrar do livro cada vez que lê sobre esse assunto.

A Ford é uma empresa organizada para produzir e vender carros. Para isso, precisa investir pesado em máquinas e conseguir convencer os consumidores potenciais a pagar um preço pelos seus produtos que: 1) pague os salários 2) pague os impostos e 3) remunere o capital do acionista pelo risco do empreendimento.

Pois bem: uma alternativa é eliminar o empresário da jogada. Desta forma, o capital não precisaria ser remunerado, eliminando, assim, um “parasita” do sistema.

Como se faz para eliminar o empresário? “Democratizando” o capital. Isso já seria possível hoje: bastaria que os funcionários da Ford se cotizassem e comprassem a fábrica da Ford. Obviamente, trata-se de uma possibilidade apenas teórica, dado que os funcionários não possuem o capital para isso.

Mas digamos, apenas para forçar o argumento, que um governo autoritário expropriasse a fábrica da Ford e concedesse a fábrica para os funcionários. Tudo certo? Não, aí é que se iniciariam os problemas. Hoje, a Ford tem 80% de capacidade ociosa. Como os funcionários fariam para pagar os seus salários se a fábrica gera prejuízo? De onde sairia o dinheiro?

É exatamente por isso que, nos sistemas comunistas, os meios de produção pertencem ao Estado, não aos trabalhadores. Assim, se o empreendimento der prejuízo, o Estado banca o salário dos trabalhadores no lugar do empresário. Não há como os meios de produção pertencerem ao proletariado, como promete o comunismo no final do arco-íris. Isso somente seria possível se os empreendimentos não dessem prejuízo nunca. Ou seja, se o investimento em produção de bens e serviços não corresse risco.

O Estado comunista procura, de fato, eliminar o risco, planejando todo o consumo dos indivíduos. Retirando o poder de escolha das pessoas, elimina-se o risco dos empreendimentos. Mas isso só é possível sob um Estado totalitário. Ou seja, o Estado continua sendo necessário.

Ao contrário do empresário, o Estado comunista não fecha fábricas que dão prejuízo. Mantém empreendimentos-zumbi, que vão minando a produtividade da economia. No final, o sistema sucumbe sob o peso de um capital humano e físico ocioso, empregado na produção de bens que ninguém quer comprar. É mais ou menos o que aconteceu no colapso da União Soviética. E é mais ou menos o que acontece quando o governo incentiva setores “escolhidos”, ao invés de incentivar horizontalmente a economia e deixar o consumidor decidir o que quer ou não comprar.

Com todo respeito ao drama dos funcionários da Ford, o fato é que manter eternamente aberta uma fábrica que dá prejuízo não faz parte das regras do jogo. O acionista precisa investir o seu capital em meios de produção que sejam mais produtivos. E essa produtividade é medida pelo lucro, que é um sinal de que o que está sendo produzido é útil e desejado pelos consumidores.

PS.: como nota humorística final, a inefável presidente do PT, Gleisi Hoffmann vai pedir que Bolsonaro converse sobre a Ford com Trump. Fico imaginando o papo com o presidente “America First” sobre uma empresa americana manter uma fábrica com prejuízo no Brasil para manter o emprego de brasileiros. Essa Gleisi é uma graça.

Marx para crianças

Que fofo! Mais uma contribuição (como se faltasse) para que nossas crianças aprendam como os empresários são maus e perversos, como o capitalismo é injusto, e como o comunismo é o regime da justiça social.

Que o digam os venezuelanos!

A utopia marxista

Ainda no Valor Econômico da sexta, muito rico de várias coisas. Entrevista com o cientista político alemão Michael Heinrich, autor de nova biografia de Marx. Vamos a um trecho:

Valor: “O fracasso da União Soviética e as dificuldades de Cuba abalaram o marxismo”?

Heinrich: “A primeira questão é se a União Soviética teve um socialismo relacionado com as teorias de Marx. Sou muito cético sobre isso. Na União Soviética, no início, havia muitos conselhos de trabalhadores, algo próximo ao conceito de Marx do socialismo. Mas, muito rapidamente, esses conselhos perderam poder para um partido autoritário, que não tem nada a ver com o socialismo. O fracasso da União Soviética é o fracasso de um sistema autoritário e repressivo, montado em torno do Estado, que não tem nada a ver com o conceito de Marx sobre socialismo ou comunismo.”

Então, ficamos assim: no início era o socialismo. Aí, seres alienígenas, vindos das profundezas do espaço sideral, apoderaram-se do poder na União Soviética, e implantaram um regime autoritário, matando o socialismo.

Só mesmo sendo muito desonesto intelectualmente para falar uma barbaridade dessas. Como se a implantação da igualdade a todo custo não exigisse, como pressuposto, um regime autoritário!

Mas o “cientista político” continua.

“Cuba é mais complicado. É um país muito pequeno, com recursos limitados e permanentemente ameaçado pelos Estados Unidos. Por isso, não teve o tempo de criar seu próprio modelo e acabou virando um regime autoritário também.”

Outro exemplo de socialismo que se transformou em regime autoritário por obra de forças alieníginas. Só que dessa vez, não vieram do espaço sideral, mas do norte mesmo. “Não tiveram tempo de criar seu próprio modelo”! Quanto tempo seria necessário? 100 anos? 500 anos? O suficiente para matar todos os oponentes da Revolução?

Diz ainda o “cientista político”: “Socialismo no sentido marxista continua sendo uma utopia, é uma meta ainda não alcançada”. Bem, se todo regime socialista que descamba para o autoritarismo não for marxista, então a utopia marxista vai ficar sendo utopia por toda a eternidade.

Por fim: “Acredito que o capitalismo é um sistema de exploração e de destruição do homem e da natureza. Para a sobrevivência da humanidade, é importante abandonar o capitalismo.” Ok, abandonar o capitalismo. E colocar o que no lugar? Não diz. Talvez a utopia marxista. Vai que agora dá certo.

Construtores de utopias

“Na década de 90, aceitou algo do capitalismo mas, à diferença dos chineses, preservou o máximo de conquistas sociais. Sempre acreditou no “homem novo”, na vida sem egoísmo. Este, o seu maior mérito: não repudiou o que havia de ideais no comunismo. Sua meta estava na independência de Cuba e na justiça social; para isso incorporou o comunismo.”

Este é Renato Janine Ribeiro, hoje, no Valor Econômico. Entre ontem e hoje, li algumas análises sobre Fidel escritas por intelectuais de esquerda, para tentar entender a cabeça desse pessoal. Acho que esse trecho resume bem a coisa toda.

Eles simplesmente não ligam a miséria econômica e a ditadura feroz com a ideologia comunista. Todas as análises (e incluo aqui FHC) ressalvam o “grande ideal de Fidel”, e colocam o Estado policial e a perseguição política quase como acidentes de percurso, que não são suficientes para tisnar a Grande Obra do Homem, do Mito, do Herói.

Renato Janine e seus companheiros de ideologia não veem, ou não conseguem admitir, que a “construção do Homem Novo, solidário, sem egoísmo”, tem como instrumento necessário o estabelecimento de um Estado Totalitário. Sobre isto, recomendo a entrevista de Natan Sharansky, ontem, no Estadão. O dissidente soviético descreve com rara precisão o controle do pensamento em Estados Totalitários, único modo conhecido de implantar a Revolução do Homem Novo.

É curioso como esses intelectuais não conseguem (ou não querem) ver a contradição entre a comemoração das supostas “conquistas sociais” do regime cubano e a necessidade de “aceitar algo do capitalismo”. Ora, se as tais conquistas sociais são tudo o que o povo quer e precisa, pra que capitalismo? De onde essa necessidade de comércio e de livre iniciativa, na Sociedade do Homem Novo? Renato Janine termina seu texto perguntando se a figura de Fidel continuará inspirando aqueles que “lutam contra a miséria”! Caramba, então pra que capitalismo, se está tudo bem na ilha?

Renato Janine condena o regime chinês, “um capitalismo selvagem somado a uma ditadura, que se diz comunista mas é selvagem”. Ou seja, apesar de se dizer comunista, o regime chinês é selvagem. Aqui está, me parece, a grande desonestidade intelectual desse pessoal: se é selvagem, não é comunismo. O comunismo é virtude, e quem é contra não passa de um egoísta. A realidade das coisas é um mero detalhe para esses construtores de utopias.

A cor da ditadura

Tarso Genro: “um dos promotores da paz”

Franklin Martins: “Fidel simbolizava a ideia de que era possível lutar e vencer”

Cristovam Buarque: “Ele foi o herói da minha geração de latino-americanos, sobretudo como líder de um governo comprometido com a justiça social”.

PT: “a Revolução Cubana que conduziu junto com outros dirigentes de seu país foi uma realização do direito à autodeterminação dos povos, da busca da igualdade e justiça social”

Lula: “Será eterno seu legado de dignidade e compromisso por um mundo mais justo”

Dilma: “Fidel foi […] um visionário que acreditou na construção de uma sociedade fraterna e justa, sem fome nem exploração, numa América latina unida e forte”

Por que a ditadura militar no Brasil foi considerada criminosa e a ditadura cubana é considerada virtuosa? Aliás, a ditadura militar se auto-denominava “Revolução”, assim como a ditadura cubana e seus acólitos a chamam de Revolução Cubana. Muda a cor, o vício é o mesmo. Voltando à questão: por que a ditadura militar no Brasil foi considerada criminosa e a ditadura cubana é considerada virtuosa? Simples: porque o comunismo é um ideal que está acima da moral. Todo e qualquer meio é válido, desde que seja para a implantação da “justiça social”.

A ditadura militar no Brasil produziu, em seus primeiros 10 anos, um crescimento espetacular com inflação controlada. Ou seja, crescimento de renda real. Lembro, quando criança, em 1972, o carro de Garrastazu Médici passando em frente ao meu colégio na Av. Tiradentes, e o povo todo na calçada saldando entusiasmado. Era um governo popular. Mas, na visão da esquerda, mantinha as “estruturas” que perpetuavam a “dominação das elites” e a “subserviência ao império norte-americano”. Portanto, a ditadura militar não era ruim por ser uma ditadura, mas por não ser de esquerda. E o mais curioso é que Dilma Rousseff reproduziu muito da política econômica da ditadura militar, principalmente do governo Geisel, com seu nacionalismo tosco e seu gosto pelo endividamento.

Fidel Castro foi mais um ditadorzinho como tantos outros que infelicitaram e infelicitam a América Latina e a África. A sua aura vem do fato de que foi o único que conseguiu estatizar todos os meios de produção, e implantar de fato o comunismo, a meros 500km de Miami, desafiando a maior potência capitalista. Fez isso calando qualquer oposição, a qualquer preço, como faz qualquer ditador. Mas isso pouco importa: não se faz omelete sem quebrar os ovos, como dizia Stálin. Se é para implantar a “justiça social”, vale qualquer meio. Inclusive, recontar a história, chamando “ditadura” de “Revolução”, no melhor estilo da ditadura militar brasileira.