CPMF. Mas pode me chamar de “tributação digital”

“Tributação digital”.

Já vi muitos apoiadores incondicionais do governo dizendo que não se trata de CPMF, mas de um “tributo digital”. Bolsonaro confirma.

Só que até agora ninguém explicou o que seria esse tal de “imposto digital”.

Pode ser um imposto exclusivamente sobre o faturamento de empresas digitais. Pouco provável, dado que a base seria muito pequena para fazer alguma diferença.

Mais provável ser um imposto sobre “transações digitais”, qualquer uma que se desse através de um computador. Bem, nesse caso, estamos falando exatamente da CPMF, pois não existe hoje transação que não passe por um computador, a não ser que seja escambo ou lavagem de dinheiro. E, mesmo nesse caso, seria tributado quando o dinheiro reentrasse no sistema.

Enfim, há aqui uma tentativa tosca de menosprezar a inteligência alheia. Lamento informar que a tentativa não funcionou.

Mais uma vez, a CPMF!

Quando esse assunto da CPMF veio a público há alguns meses, Bolsonaro não titubeou: disse que o novo imposto não era pauta do governo, e pediu a cabeça do pai da ideia, o secretário Marcos Cintra. A repercussão havia sido péssima, pois a não criação de novos impostos era uma das pedras angulares da campanha do candidato do PSL, e a recriação da CPMF era o símbolo máximo de um novo imposto. Na época, bolsonaristas saíram correndo para dizer que era tudo intriga da imprensa, que o governo jamais patrocinaria uma coisa dessas. A demissão de Marcos Cintra foi a comprovação dessa posição.

Aos poucos, no entanto, foi ficando claro que o pai da ideia não era Cintra, mas o próprio Guedes. Ele insiste na criação do novo imposto para “desonerar a folha de pagamentos”. Como diz o presidente do BC na matéria abaixo, “o imposto não é um sonho, mas precisa ver para o quê está sendo criado”. Lembra a pregação de Adib Jatene pela criação do primeiro IPMF (Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras) para financiar a saúde. O fim era muito nobre, e justificava a criação do imposto. O presidente do BC certamente teria outra opinião se ainda fosse um executivo do mercado financeiro. Mas resolveu tocar o samba de uma CPMF só em que se transformou a reforma tributária defendida pelo governo Bolsonaro.

Ok, desta vez não se trata de criar novos gastos, mas de substituir um imposto por outro, subsidiando a criação de empregos. Menos mal. Mas só existe a CPMF como solução para isso? Não seria possível aumentar alíquotas de impostos já existentes? Além disso, a folha de pagamentos das empresas é onerada porque são muitos os “direitos” dos trabalhadores. Ao criar a CPMF, o governo estará subsidiando esses direitos (ou os lucros dos empresários, pois nada garante que mais empregos serão criados) através da oneração de indivíduos que não receberão esses benefícios. Trata-se de um imposto, além de tudo, perverso do ponto de vista distributivo. Os desdentados do Brasil, mais uma vez, estarão subsidiando quem tem carteira assinada e/ou seus patrões. E para quem pensa que a CPMF afeta só quem tem conta bancária, pense de novo.

A CPMF é aquele imposto que parece inocente, não dói quase nada se comparado a outros impostos com alíquotas muito maiores. Mas é exatamente este o problema. Assim como a gordura vai obstruindo silenciosamente os vasos sanguíneos, a CPMF vai obstruindo a livre circulação do dinheiro pelo sistema financeiro, que é o sistema circulatório da atividade econômica. Com a liquidez do sistema comprometida, a atividade vai perdendo o seu vigor, pois a mobilização de capitais para financiar a atividade fica mais difícil. Não à toa, a Comissão Europeia estudou esse assunto durante vários anos após a crise de 2008, como uma forma de fazer o sistema financeiro financiar uma rede de proteção contra crises daquele tipo, e não chegou em um desenho que não fizesse a emenda pior que o soneto. A CPMF seria uma (mais uma!) jabuticaba bem brasileira.

Há dois projetos de reforma tributária no Congresso, uma na Câmara e outra no Senado. E há a CPMF do Paulo Guedes, contra promessa de campanha de seu chefe. Vamos ver qual delas a sociedade brasileira quer.

Tirando de um bolso para devolver para o outro

Estão aí 3 tabelas que resumem os encargos sobre a folha de pagamentos. Impostos (e vou considerar INSS e FGTS como impostos, pois são usados pelo governo) representam 58,65% dos encargos. O restante considero parte do salário.

Então, para um empregado registrado em carteira, o empresário gasta quase 60% do salário nominal com impostos. É disso que se trata. Aí, vem a brilhante ideia de instituir a CPMF para substituir essa carga tributária.

Economicamente não faz sentido. Pode até criar mais empregos registrados (não vai afetar, por óbvio, os informais), mas a massa salarial permanecerá a mesma, pois a carga tributária permanecerá a mesma. Em outras palavras, o que for ganho em termos de emprego, será perdido pela perda do poder de compra causada pela CPMF. Não há mágica: o governo estará confiscando o mesmo montante da sociedade, então a sociedade como um todo permanecerá pobre como sempre.

E a própria criação de novos empregos é incerta. O empresário pode simplesmente engordar seus lucros com a desoneração, sem contratar um mísero empregado a mais. Aliás, isso é o mais provável, dada a ainda muito lenta recuperação da atividade. Teríamos então um transferência de renda dos trabalhadores (via CPMF) para os empresários.

Então, na melhor das hipóteses, a criação da CPMF é neutra, pois mantém a carga tributária do mesmo tamanho. Mas essa é a melhor das hipóteses. Na pior, a CPMF vai introduzir ainda mais areia na engrenagem da já emperrada economia brasileira. A um sistema tributário caótico, introduziremos mais um imposto ruim, pois incide em cascata e serve de subsídio cruzado, no país dos subsídios cruzados que infernizam quem quer produzir e consumir. O governo deveria estar preocupado em encontrar formas de diminuir a carga tributária, ao invés de propor remendos que deixam a coisa ainda pior. Esta era, aliás, a promessa de campanha.

Quem paga a conta

Tenho criticado aqui duramente o corporativismo do funcionalismo público, que se aproveita de sua proximidade com o poder para arrancar privilégios negados ao restante do país. Mas o funcionalismo não é o único grupo que só olha para o seu umbigo. Os empresários que contam com capacidade de mobilização também se defendem.

É óbvio que, em uma reforma tributária, alguns sairão perdendo e outros sairão ganhando. A questão não é essa. A questão é se o status atual é eficiente ou não. Esses grupos de empresários que se unem contra a reforma tributária, na verdade conquistaram o direito de pagar menos impostos do que a média porque sempre tiveram proximidade com o poder. Seus lobbies tiveram muito sucesso, ao longo do tempo, em emplacar suas reivindicações. Agora, a reforma tributaria ameaça todas essas “conquistas”.

Quando vejo um Flavio Rocha defendendo a volta da CPMF para “desonerar a folha de pagamento”, chego à conclusão de que merecemos este país de loucos, com um sistema tributário repleto desses subsídios cruzados, penduricalhos que tornam um inferno a vida de quem empreende. Flávio Rocha, o rei do liberalismo, defendendo esse tipo de arranjo, é porque não há saída mesmo.

É simplesmente uma falácia dizer que a mensalidade da escola vai aumentar em 50% e, portanto, a reforma proposta é ruim. Não que seja mentira, mas é uma meia verdade, o que é pior. Na cesta de consumo de qualquer cidadão, consome-se escola, mas também se consome produtos que ficarão mais baratos. Para quem consome mais serviços, a cesta de consumo realmente ficará mais cara. Para quem consome mais alimentos e produtos industriais, ficará mais barata. Os mais pobres consomem proporcionalmente mais produtos, enquanto os mais ricos consomem proporcionalmente mais serviços. Uma reforma que nivele a cobrança de impostos entre os diversos setores fará justiça social. Ou é melhor os mais pobres pagarem proporcionalmente mais impostos, como ocorre hoje?

Ao contrário da reforma da Previdência, dessa vez certos empresários são contra a reforma tributária. Por que, ao contrário da Previdência, agora quem paga a conta são eles.

A CPMF que não é CPMF

“Não é CPMF, é só um imposto sobre transações”.

O Guedes podia implementar logo essa p… desse imposto, já que não tem capacidade de pensar em nada melhor mesmo. Mas pelo menos podia parar de menosprezar a inteligência alheia.

Cintra vai reestruturar o PSL

Retirado do jornal O Estado de São Paulo

Cintra foi escorraçado do governo por tocar o samba de uma CPMF só. Até agora não temos notícia de outra proposta de reforma tributária do governo.

Eis que, não mais que de repente, ressurge das cinzas o paladino do Imposto Único. Ficamos sabendo que Luciano Bivar, ele mesmo, é entusiasta da ideia. Cintra vai subsidiar o partido do governo com suas ideias.

Partido do governo?

Quer dizer que o partido do governo vai defender uma ideia de “reforma tributária” já supostamente morta e enterrada pelo próprio governo?

Os gatos continuam brigando dentro do saco.

A ideia única

Durante a campanha eleitoral, o tema CPMF veio à baila por meio de uma imprudente declaração de Guedes. Bolsonaro veio correndo apagar o incêndio e ficou o dito pelo não dito. Foi apenas um “mal-entendido”, disseram todos.

Eleição ganha, montagem de governo, Guedes chama para a secretaria da Receita o inefável Marcos Cintra. Cintra passou sua vida inteira (não é força de expressão) como professor e parlamentar defendendo uma ideia única: o imposto único. O objetivo era óbvio, só não via quem não queria ver.

Passada a reforma da Previdência, começam as discussões da Tributária. Do governo se esperava um projeto inteiro e coerente, como foi o da reforma da previdência. O que tivemos, no entanto, foram balões de ensaio sobre a “nova CPMF”, fantasiada com vários eufemismos diferentes. O imposto único se tornou a ideia única do governo.

Bolsonaro, que de bobo não tem nada, não esperou a saída do hospital para apagar mais esse incêndio. Acabou a história? Não. Em entrevista à Jovem Pan ontem, temos um Guedes lamuriento, que ainda se mostra inconformado com o enterro de sua ideia única. Parece que era aquilo ou nada.

Paulo Guedes é idolatrado pelo mercado. Não é à toa. Trata-se de um economista liberal-raiz, cujas palavras são normalmente música aos ouvidos do mercado. Mas no caso da CPMF, não li uma mísera análise de economista sério defendendo essa estrovenga. Trata-se daquelas idiossincrasias inexplicáveis.

Agora, é melhor o governo correr se quiser algum protagonismo na reforma Tributária. No caso da reforma da Previdência, o governo teve pelo menos o mérito de enviar uma proposta coerente e ousada ao Congresso, apesar de depois ter abandonado a tramitação à própria sorte. No caso da Tributária, corre o risco de nem proposta ter. Será uma pura construção do Congresso. Certamente, uma novidade na democracia brasileira.

O tamanho da carga tributária

As discussões em torno da “nova” CPMF desnudam o problema de fundo do País: a carga tributária é muito alta. Exageradamente alta. Pagamos cerca de 35% do PIB em impostos, contra 20% no Chile, 16% no México, 27% na Coreia e 25% na Turquia, países mais ou menos comparáveis.

O efeito disso é que fica cada vez mais difícil “esconder” impostos. A criatividade para “aumentar a base de arrecadação” (eufemismo para esconder impostos) não tem limites, como se viu no caso da CPMF. A oneração da folha de pagamentos é um exemplo: o imposto fica lá, longe dos olhos do grande público. Até que fica claro seus efeitos deletérios sobre a atividade econômica. Mas, e aí é que está o problema, se o imposto for compensado pelo aumento da alíquota sobre a venda dos produtos, ficará claro para todos quanto custa manter aquela arrecadação: seria maior que a maior alíquota da OCDE! A CPMF era uma forma esperta de esconder essa realidade.

A verdade é que tanto faz onde está o imposto. Se continuar onerando a folha de pagamento, este imposto continuará a ser embutido no preço dos produtos, diminuindo o poder de compra dos trabalhadores, do mesmo jeito que se o imposto fosse cobrado diretamente sobre a venda. O problema é a carga tributária em si, não a forma de cobrança do imposto.

Para resolver este problema, somente um grande programa de redução de despesas resolve. Estamos gastando tempo e energia filtrando o mosquito, enquanto o camelo da carga tributária continua lá, tranquilo, sem ser incomodado.

– Ah, mas um país com as carências do Brasil precisa ter programas sociais que mitiguem o problema da pobreza.

Precisamos acabar de nos convencer de que, em um país pobre como o Brasil, os impostos saem do bolso dos pobres. Todos esses “impostos escondidos”, no final do dia, oneram os produtos e serviços comprados pelos mais pobres. O Estado brasileiro tira escondido de um bolso e devolve para o outro bolso com estardalhaço. No meio, aumentamos os lucros das empresas da Zona Franca de Manaus, pagamos o miserê dos procuradores de MG e sustentamos as falcatruas do Petrolão. Se ainda o dinheiro tirado do bolso do pobre voltasse para o bolso do pobre, seria menos mal. Mas nem isso.

Começamos a arranhar o problema com a aprovação da Reforma da Previdência, mas ainda há muito, muito o que fazer. O governo precisa liderar esse debate, ao invés de perder tempo e energia com malabarismos para trocar o bolso de onde os impostos são extraídos.

A CPMF derruba o secretário da Receita

A única parte que não encaixa nessa história da demissão do Cintra é que o seu chefe imediato, Paulo Guedes, parecia genuinamente convencido de que a única saída para desonerar a folha de pagamentos era a criação da CPMF. Guedes chegou a falar que os congressistas deveriam escolher entre “o imposto ou o desemprego”, daquele jeitinho meigo dele de convencer as plateias.

Do jeito que Cintra foi demitido, parece que ele estava sozinho nessa, atropelando tudo e todos, inclusive o seu próprio chefe imediato.

Claro, a se tomar a valor de face o que Bolsonaro diz em seu tuíte, Cintra foi demitido como uma demonstração, digamos, em três dimensões, de que a CPMF está enterrada. Uma imagem vale mais do que mil palavras, diz o sábio ditado. A cabeça cortada do secretário da Receita exibida na entrada do ministério da Economia vale mais do que mil desmentidos. A única ideia que Cintra teve na vida foi o imposto único. Seu escalpo é o escalpo da CPMF.

Além disso tudo, Cintra não mostrou pulso no episódio das multas contra parentes de Bolsonaro. Sua cabeça já estava a prêmio. A fome com a vontade de comer se juntaram harmonicamente, no caso.

Sobra o enigma de Guedes. Ele estava genuinamente convencido sobre a CPMF. Mas prevaleceu a leitura política de Bolsonaro: a CPMF seria de tal forma um estelionato eleitoral, que ficou claro que não havia como banca-la. Guedes preferiu enfiar o rabo entre as pernas a confrontar o chefe, em uma demonstração clara sobre quem manda em quem no Planalto.

Linha vermelha

Todos nós temos uma linha vermelha. É aquela que, se ultrapassada, torna qualquer coisa intolerável. Esta “linha vermelha” pode parecer uma bobagem para os outros, mas para a pessoa que não tolera, é a gota d’água. O cara pode estar pintado de ouro, não serve mais. Pode ser Jesus na Terra, o mais virtuoso dos homens, mas aquele ponto específico era inegociável.

Lembro que, durante a campanha, Alckmin ultrapassou uma linha vermelha para mim. Foi a defesa (entrelinhas) da volta do imposto sindical, em meio às negociações para compor com o Centrão. Aquilo foi intolerável. Perdeu alguma possibilidade de voto meu ali.

Bem, eu tenho outra linha vermelha. Chama-se CPMF.