De onde vem o crescimento

A manchete principal do Estadão tem duas imprecisões. A primeira refere-se ao “recorde”. Achei estranho, dado que já enfrentamos períodos muito piores de inadimplência. Somente no miolo da reportagem ficamos sabendo de que se trata de uma seria do Serasa que teve início em 2016. Do jeito que está, parece que o recorde é desde Cabral.

A segunda imprecisão é mais sutil. A inadimplência não “trava o crescimento”. A inadimplência sinaliza que aquele crescimento que achávamos que existia, na verdade nunca existiu de verdade, era apenas uma ilusão de ótica. Explico.

No final de todo o qualquer processo produtivo, seja de bens, seja de serviços, estão as pessoas físicas com sua renda para comprar esses produtos e serviços. O PIB nada mais é do que a soma de todos os lucros (valores agregados) nesse processo, até chegar no cliente final, pessoa física, que vai comprar aquele produto ou serviço, produzindo o lucro final dessa cadeia para o comerciante ou prestador de serviço. A pessoa física não vai empregar aquele produto ou serviço para ela mesma produzir lucro, ela vai simplesmente consumir, sendo o último ela da cadeia de geração do PIB.

Digamos, então, que a D. Maria vai comprar um liquidificador de R$ 100 na Magalu. Ela será o elo final de uma longa cadeia de agregação de valor, cada elo contribuindo com o PIB, sendo que os R$ 100 são a soma de todos os lucros ao longo da cadeia de produção do liquidificador.

No entanto, ao invés de comprar à vista, D. Maria entra no “carnezinho gostoso” da D. Luiza. O que aconteceu aqui? Na verdade, quem “comprou” o liquidificador foi a financeira por trás do carnezinho gostoso, não a D. Maria. A financeira é mais um elo da corrente que vai lucrar em cima do consumo da D. Maria. Enquanto o carnezinho gostoso não for quitado, aquele PIB, de fato, não existe. O PIB só existe de verdade quando a D. Maria e o seu José compram produtos e serviços com o seu bom e honesto dinheiro.

Quando e se o tal do Desenrola sair, digamos que a dívida da D. Maria seja comprada por R$ 20 por alguma empresa. Esse desconto é o reconhecimento de que o liquidificador não valia R$ 100, mas apenas R$ 20. Essa diferença de R$ 80 nunca existiu, e havia sido somado ao PIB inadequadamente. A financeira vai reconhecer esse prejuízo em seu balanço, e isso vai subtrair do PIB.

Portanto, não é que a inadimplência esteja “travando o crescimento”. A inadimplência é apenas o sinal de que o crescimento que achávamos que existia era pura ilusão, só existia porque a D. Maria podia comprar o liquidificador sem ter renda suficiente. Ao limpar o nome da D. Maria, o Desenrola vai reconhecer o PIB que não existia no passado e, ao mesmo tempo, vai abrir espaço para novos financiamentos, produzindo novamente um PIB fictício, que será objeto de outro Desenrola no futuro.

Crescimento econômico é uma máquina que se move com segurança jurídica, capacitação da mão de obra e barreiras baixas à integração com economias mais desenvolvidas. O crédito serve apenas como uma graxa dessa engrenagem. Não adianta querer usar a graxa como combustível. O máximo que se vai conseguir é emperrar ainda mais a máquina.

Para não esquecer

Estou lendo o excelente livro de Marcos Mendes, “Para Não Esquecer: Políticas Públicas Que Empobrecem o Brasil”, em que o autor compila artigos de economistas com críticas qualificadas a várias políticas públicas adotadas nas últimas duas décadas.

Acabei de ler o capítulo sobre Fundos Garantidores de Crédito, que usa como exemplos o Fundo de Garantia da Construção Naval, que garantiu as operações da Sete Brasil, e o Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo, que garantiu as operações do FIES. Com relação a este último, o programa custou, entre 2010 e 2017, R$ 117 bilhões aos cofres públicos. E mais: o Relatório de Riscos Fiscais do Tesouro prevê, para este ano de 2023, custos de R$ 2 bilhões e subsídio implícito (dado pelo diferencial de taxas de juros) de R$ 4 bilhões. Isso porque o programa, nos moldes antigos, terminou em 2017! Ou seja, continuamos a pagar a conta ainda hoje.

A ideia do Desenrola é justamente essa: um fundo de garantia de crédito. Ou seja, substituir os bancos e financeiras que já fecharam a torneira do crédito. O mecanismo seria o seguinte: o banco ou financeira venderiam o crédito com desconto para um banco operador do Desenrola (provavelmente BB ou Caixa), e este passaria a cobrar a dívida descontada do devedor, a juros módicos. Se o devedor não pagar nem essa dívida com desconto, o preju seria coberto pelo Tesouro, por meio de um fundo garantidor de crédito.

Tem moral hazard para todos os gostos aqui. Primeiro, em relação aos bancos, que provavelmente aproveitariam para vender seus créditos podres por um preço maior do que obteriam em operações desse tipo no mercado. Sim, porque esse tipo de operação (venda de créditos com deságio) já existe. A entrada do governo neste mercado, com o viés político de “fazer a coisa funcionar” certamente distorceria os preços, para a alegria dos bancos e financeiras.

Outro moral hazard é dos próprios devedores. Ao ter suas dívidas praticamente perdoadas, provavelmente sua propensão a tomar empréstimos aumentaria, sem necessariamente ser acompanhada de um aumento de capacidade de pagá-los. Trata-se apenas de dar mais uma volta na roda da bicicleta, para voltar a emperrar logo mais à frente, quando a inadimplência dos novos empréstimos voltar a aumentar. Já prevejo um Desenrola II – A Missão.

O FIES, apesar de suas muitas falhas de implementação, ao menos tinha um fim nobre, qual seja, aumentar a capacitação profissional dos brasileiros. Este programa, Desenrola, nem isso. A ideia é manter a roda da economia girando a qualquer preço. E aqui vai a nota cômica da reportagem: a preocupação do ministro é com a contração do crédito por conta da Selic muito alta.

Ora, o BC aumenta a Selic justamente para contrair o crédito, esse é um dos efeitos esperados para esfriar a economia e, assim, trazer a inflação de volta para a meta. Ao, candidamente, afirmar que quer expandir o crédito, o ministro da Fazenda admite que está remando na direção contrária ao da autoridade monetária. O Desenrola, ao onerar o Tesouro, significará expansão fiscal, o que poderia levar o BC a manter a taxa de juros alta durante mais tempo.

Daqui a alguns anos, quando Marcos Mendes estiver compilando o segundo volume do seu “Para Não Esquecer”, certamente o Desenrola estará ocupando um lugar de honra.

Cheque especial

Que surpresa! O cheque especial cresce mais do que outras linhas de crédito, mesmo depois dos bancos se “autorregularem” para oferecerem outras linhas de crédito mais baratas.

O que aconteceu de tão surpreendente? Bem, depois de tomar outras linhas de crédito mais baratas, o pessoal voltou ao cheque especial. Agora, estão endividados nas linhas mais baratas E no cheque especial. O mesmo deve estar acontecendo também no rotativo do cartão de crédito, alvo também de regulação por parte do BC.

Quem conhece um pouco da natureza humana poderia ter antecipado essa “surpresa”. Afinal, a maioria dos que estão no cheque especial foram parar lá por falta de controle de suas finanças, e não por um “acidente de percurso”. Ora, se a pessoa vive consistentemente acima de suas posses, vai tomar todas as linhas de crédito disponíveis para manter seu consumo. As linhas baratas e as linhas caras. É o que está acontecendo.

A solução para isso é simplesmente proibir o cheque especial (e o rotativo do cartão de crédito também). Se o indivíduo não consegue viver dentro de sua renda, o cheque especial só vai piorar a sua situação, agregando juros escorchantes ao seu buraco. No final, termina pior do que se não tivesse o cheque especial, tendo que fazer um ajuste ainda maior no seu orçamento para equilibrar-se. Acabar com o cheque especial significa forçar o indivíduo a ajustar-se enquanto ainda é tempo, com um esforço menor.

Mas terminar com o cheque especial acaba com uma fonte importante de renda dos bancos. Aí é que está o busílis da questão.

Só a Caixa baixa juros – já vimos essa história antes

Tabela extraída do jornal Valor Econômico

A Caixa fez um movimento agressivo de redução de juros. Ao contrário de 2012, no entanto, aparentemente não obedeceu a uma ordem do governo, foi uma decisão empresarial. O BB não acompanhou, por enquanto.

Os grandes bancos privados não foram atrás, também por enquanto. A aposta da Caixa é de que taxas de juros menores diminuirão a inadimplência e, portanto, diminuirão as perdas do banco com esses empréstimos, mais do que compensando a queda das taxas. É uma estratégia, que pode dar certo ou errado.

Os grandes bancos só vão se mexer nessa direção se começarem a perder clientes para a Caixa. E,mesmo assim, talvez não se mexam. A estratégia da Caixa pode sofrer do fenômeno de “seleção adversa”: tendem a migrar para a Caixa primeiramente aqueles clientes com mais dificuldades para pagar suas contas. A Caixa fica com os clientes mais arriscados e com uma taxa de juros menor, enquanto os grandes bancos ficam com os clientes menos arriscados e com uma taxa de juros maior. Por que os grandes bancos evitariam este movimento?

Existe um pressuposto por trás desse movimento da Caixa que, desconfio, está equivocado: o de que as pessoas não pagam seus saldos devedores no cheque especial e no cartão de crédito porque os juros são muito elevados. O que de verdade acontece, na minha opinião, é que as pessoas que acumulam dívidas no cheque especial e no cartão é porque são descontroladas financeiramente. Juros menores somente abrirão mais espaço para essas pessoas gastarem mais, não pagar suas dívidas. No final, haverá dívidas maiores e a mesma dificuldade de pagamento.

O nível dos juros do cheque especial não está lá à toa, serve para compensar este risco. Se os grandes bancos não estão seguindo a Caixa, é bom ficar de olho: esses grandes bancos são sobreviventes em um país que já viu tudo quanto foi crise e que transformou o sistema bancário brasileiro em um imenso cemitério. Eles sabem fazer conta, mais do que um “forasteiro” que teve experiência somente com bancos de investimento, como é o caso do presidente da Caixa, Pedro Guimarães. Não estou dizendo que não possa dar certo, só estou alertando para um potencial rombo criado por essa estratégia, e que será pago pelo meu, pelo seu, pelo nosso. Como sempre.

Brincando de banqueiro

Dizem que o melhor negócio do mundo é um banco bem administrado, e o segundo melhor negócio do mundo é um banco mal administrado.

Pois bem. O BC acaba de criar a oportunidade da sua vida: torne-se um banqueiro! Se você não tem o capital, não tem problema: encontre um amigo que tenha e que também queira se tornar um banqueiro, peça dinheiro emprestado para ele, e comece a ganhar dinheiro. Muito dinheiro!

Isso me faz lembrar um amigo, que certa vez veio me falar, entusiasmado, que o Citibank havia aberto uma conta corrente para ele. A vida toda ele fora cliente do Bradesco, mas nunca havia sido tão bem tratado como no Citi. Até o limite do cheque especial havia sido o triplo do que tinha no Bradesco! Pensei cá com meus botões: isso não vai acabar bem.

Anos depois, soube que esse meu amigo havia quebrado, deixando um papagaio gigante no Citibank. Recentemente, a operação de varejo do Citi fechou as portas no Brasil. Meu amigo, e pessoas como ele, devem ter tido algum papel nessa decisão.

A senhora da reportagem vai emprestar dinheiro a 3,5% ao mês, porque no banco (Bradesco?) o mesmo empréstimo não sai por menos de 7% ao mês. Quer dizer, o Bradesco, com décadas de experiência no negócio, não cobra menos de 7%, enquanto D. Elaine acha que pode ser banqueira e cobrar metade do preço. Boa sorte.

O bode expiatório perfeito para governos incompetentes

“Temos que enfrentar os bancos. Bancos foram feitos para serem enfrentados. Nós não temos mais paciência com esses caras.”

Esse é Fernando Haddad, na Paraíba, ontem.

Banco é um troço muito simples: trata-se de um lugar que faz a intermediação entre pessoas com excesso de dinheiro e pessoas que precisam de dinheiro. A isso chamamos de crédito.

O crédito, segundo o programa do PT, deve ser a mola propulsora do novo ciclo de desenvolvimento do país.

Assim, ligando uma coisa à outra, o que Haddad disse foi: “vamos obrigar os bancos a fornecerem crédito barato”.

Lembro como se fosse hoje. Corria o ano de 2004 e, certo dia, meu finado pai me contou, todo contente, que tinha aberto uma conta no Citibank. Além do status, o banco lhe havia garantido uma linha de crédito no cheque especial de R$10 mil.

“Tenho conta no Bradesco há 30 anos, e o meu cheque especial tem mil reais de limite”, contou, não sem uma ponta de mágoa.

Pensei cá com meus botões: se o Bradesco, com 30 anos de histórico, deu só mil reais de limite, motivo deve ter.

Não deu outra. Pouco mais de 10 anos depois, coube a mim renegociar as dívidas de meu pai na esteira da maior recessão da história (isso foi anos antes do programa Limpa Nome do Ciro que o PT roubou). Adivinha quem era, de longe, o maior credor? Exato, o banco americano que achou que sabia dar crédito no Brasil. O resto é história: poucos anos depois, o Citi encerraria suas operações de varejo no país, ajudando a concentrar, ainda mais, o mercado bancário.

Intermediar crédito é uma arte. Significa antecipar a inadimplência esperada, e cobrar um spread suficientemente alto para compensá-la. Para isso, o histórico do cliente e uma certa previsão sobre o ciclo econômico são as únicas bases sobre as quais o banco se apoia.

Quando, em 2012, Dilma “perdeu a paciência” com os bancos e forçou a redução dos spreads por parte dos bancos públicos, os bancos privados recuaram e perderam market share. Pensei cá com meus botões: se os bancos privados não acompanharam a redução dos spreads, aí tem.

Foi só uma questão de tempo para que a inadimplência aumentasse, na esteira da maior recessão do País.

O curioso é que, no raciocínio do PT, tanto na época quanto hoje, o crédito mais barato faria “a roda da economia girar”, o que, por si só, garantiria o pagamento desses empréstimos. Faltou combinar com os russos, ou melhor, com os agentes econômicos, que se retraíram diante da crescente intervenção do Estado no domínio econômico. Se ontem foi o setor elétrico e hoje são os bancos, amanhã poderei ser eu a sofrer nas mãos de um governo discricionário. Ninguém investe em um ambiente desses e, sem investimento, a demanda criada pelo crédito fica pendurada na broxa.

Mas Haddad, claro, é diferente de Dilma. Ele sabe que não se reduz spread por decreto. Por isso, ele propõe um imposto sobre o spread. Alexandre Schwartsman, em recente artigo na Folha, demonstra que esse imposto aumentaria o spread justamente para os que mais precisam de crédito, pois o custo seria repassado pelos bancos.

No limite, os bancos saem do mercado, deixando de dar crédito. Talvez seja esse mesmo o sonho de Haddad e dos economistas do PT: um mercado de crédito dominado pelos bancos públicos, que teriam, ao mesmo tempo, sensibilidade social e sentido de missão. Sensibilidade e sentido que seriam pagos, no final do dia, pelo contribuinte, quando o Tesouro fosse chamado a capitalizar esses bancos para cobrir a inadimplência de empréstimos mal dados.

Bancos são o bode expiatório perfeito para governos incompetentes.

Um desserviço da imprensa

Além de servir como slogan para acompanha do Ciro, pra que mais serve essa manchete de capa do Estadão?

No quesito “desinformação”, é 10. O Brasil tem 3 vezes a população da Itália, e qualquer fenômeno no Brasil será o equivalente a vários países menos populosos. A China deve ter uns dois Brasis de inadimplentes. O que isso significa? Rigorosamente nada.

Depois, esses números não batem uns com os outros. O país tem aproximadamente 55 milhões de famílias. Digamos, para simplificar e estressar o argumento, que todas sejam classificadas como pobres. Segundo a matéria, 26,7% dessas famílias estavam inadimplentes, o que significaria aproximadamente 15 milhões de famílias. Para que 63 milhões estivessem com contas atrasadas, seria necessário que cada uma dessas famílias tivesse, em média, 4 membros, e todos estivessem inadimplentes, incluindo crianças.

Há, obviamente, um problema conceitual aqui, que não permite conciliar essas informações. Mas o Estadão prefere a manchete bombástica do que o jornalismo esclarecedor. Muito triste isso.

Diagnóstico errado

Esboço de um “plano econômico” do PT foi publicado hoje no Valor.

É incrível como, depois de dois anos da mais brutal recessão da história brasileira, os caras vêm com as mesmíssimas ideias que nos levaram para o buraco. Por exemplo, insistir no crédito às famílias como a alavanca que vai “despertar” a economia, em um contexto de alto endividamento.

A ideia de “usar o compulsório” mostra quanto esses caras não entendem como funciona o mercado financeiro. Os bancos não estão emprestando não por falta de funding, mas por falta de tomador! As famílias já estão super endividadas, e não tem mais como tomar empréstimos. Refinanciar para emprestar mais significa aumentar o endividamento das famílias, o que não se daria a um custo baixo. A não ser que os bancos públicos fossem usados para dar crédito “baratinho”, e já vimos onde isso termina.