Novamente, o circo de pulgas

Como leitor experimentado de jornal, já estou acostumado a notícias abordando temas sem importância alguma, mas apresentados como se fossem a última bolacha do pacote. Mas nessa aqui o Estadão se superou: um verdadeiro pastel de vento foi apresentado como um banquete em restaurante estrelado, merecendo manchete principal na capa e uma página inteira no caderno de economia. Vejamos.

Em primeiro lugar, a reportagem trata a notícia como se fosse uma mudança de política cambial, mas preservando o câmbio flutuante. Seria como que a terceira marca do novo governo na gestão macroeconômica, depois do arcabouço fiscal e da nova metodologia da meta de inflação, supostamente completando uma reforma do bem no tripé macroeconômico. Bem, seria assim se fosse assim. O “novo” arcabouço fiscal é um teto de gastos mas chama diferente (não é à toa que os petistas estão loucos da vida com o Haddad), a mudança de metodologia da meta de inflação é inócua, não muda nada, e este “seguro cambial” não muda em uma vírgula a política cambial, é só uma molezinha para empresários amigos. Vem comigo.

Seguros cambiais não são propriamente uma novidade. Aliás, bem longe disso. Todo exportador e importador têm à disposição uma gama imensa de instrumentos financeiros para se protegerem da variação cambial. A matéria diz (certamente repercutindo o que disse alguém do governo) que a volatilidade cambial é um dos principais entraves pelos quais o investidor estrangeiro não vem ao Brasil. Mentira. O investidor tem instrumentos para se proteger das variações do câmbio, mas, infelizmente, lhe faltam instrumentos para se proteger da insegurança jurídica, do pesadelo tributário, do baixo nível de preparo da mão de obra nacional e do ambiente de corrupção.

A reportagem afirma que um montante de US$ 3,4 bilhões estará disponível para fazer o seguro cambial daqueles interessados em investir na “agenda verde”. (Aliás, a mistificação não estaria completa se não envolvesse o combate às mudanças climáticas. Fecha parênteses). Uau, R$ 3,4 bilhões! Foram negociados em contratos futuros de dólar (o instrumento mais simples de proteção cambial) na B3 mais de US$ 10 bilhões. No ano passado? Não. Só no último dia 04/01, em uma semana meio morta para o mercado financeiro. US$ 3,4 bilhões? Sério?

Então, pra que serve isso? Simples. Como qualquer seguro, o seguro cambial custa alguma coisa. Não é de graça que você compra uma proteção. Para segurar o seu automóvel, por exemplo, você paga um prêmio. É assim que funciona. Os contratos futuros na B3 têm o custo da diferença entre as taxas de juros locais e as taxas de juros lá fora, enquanto swaps e opções têm, além disso, o spread cobrado pela instituição financeira que estrutura essas operações. Ao entrar na jogada, o BID vai baratear esse custo. Não se trata de oferecer um instrumento que não existe, mas de oferecer algo que já existe, só que mais barato. Soa familiar? Imagine quem vai ter acesso a esse dinheiro “mais barato”…

Enfim, mais um exemplo de como esse governo não passa de um circo de pulgas, em que coisas minúsculas são apresentadas como o maior espetáculo da Terra. O triste é ver o Estadão dar palco para esse tipo de coisa.

A anaconda da insegurança jurídica

Reportagem de hoje chama a atenção para o número de apelações ao Supremo por conta de decisões da Justiça Trabalhista contrárias à Lei. Jurisprudências firmadas pelo STF não são respeitadas pelas instâncias inferiores, e mesmo o pleno do TST tem colocado óbices para cancelar súmulas que vão contra a lei trabalhista. Os juízes trabalhistas, ao invés de aplicarem a lei, fazem “justiça social”. Por quê?

Essa situação me faz lembrar de um filme bem antigo, Anaconda. Na história, um grupo de pessoas está em uma floresta onde vivem as anacondas, cobras gigantescas, capazes de engolir um ser humano adulto com uma bocada. Os personagens concluem que a única forma de acabar com as anacondas é destruir o seu ninho, onde as cobras gigantescas ainda não estão tão gigantescas. Da mesma forma, a única forma de dar um fim ao “justiceiro social” de toga é ir até o seu ninho, as faculdades de direito. É lá que são criadas as anacondas que espalham o terror da insegurança jurídica brasileira.

Muitos juízes beberam na faculdade a água da “justiça social”, e vão levar consigo para sempre essa missão. Tivemos um exemplo recente na própria Corte Suprema, em que o ministro Edson Fachin brandiu o argumento da “grande injustiça” de se retirar uma pessoa de sua própria moradia, no caso da execução extra-judicial de garantia fiduciária, quando o uso dessa faculdade está explícita na lei. No caso, Fachin foi voto vencido, mas em outros casos a história foi empurrada para frente pelos magistrados ao arrepio da letra da lei. O próprio uso do termo “estado de coisas inconstitucional” se presta como capa para fazer “justiça social”, independentemente daquilo que os legisladores previamente decidiram.

No caso específico da justiça trabalhista, a lei já prevê inúmeras salvaguardas aos trabalhadores. Aliás, todas essas salvaguardas são incompatíveis com o nosso grau de desenvolvimento econômico, o que acaba produzindo um enorme grau de informalidade na economia brasileira. Mas isso é discussão para outra hora. O fato é que o legislador decidiu proteger o trabalhador, mas permitindo um certo grau de flexibilidade na relação com o capital. É essa flexibilidade o alvo dos justiceiros sociais vestidos de toga. O resultado é a insegurança jurídica, que acaba por limitar o crescimento do emprego, o justo oposto pretendido pelos justiceiros.

O juiz deve aplicar a lei, não fazer justiça. Por mais que seja frustrante para o juiz idealista, “justiça” é um conceito absoluto somente no âmbito divino. No mundo dos Homens, a “justiça” sempre será relativa. Arvorar-se em “justiceiro social” só fará do juiz um semeador do caos, que acaba tendo como consequência a insegurança jurídica e, no campo econômico, o empobrecimento de todos.

O custo dos direitos humanos

A execução de contratos livremente celebrados entre as partes é um dos pilares da eficiência econômica. Desde o direito de entrar em um clube no qual somos sócios (e o direito de o clube barrar a entrada por inadimplência) até contratos bilionários entre empresas, a execução rápida e sem burocracia do contrato impulsiona a oferta de produtos e serviços, ao permitir a segurança jurídica da transação.

Imagine que, para barrar a entrada de um inadimplente, o clube precisasse iniciar um processo na justiça. O resultado seria, certamente, uma seletividade maior na escolha dos seus sócios. O custo de barrar sócios inadimplentes seria rateado entre todos os aspirantes a sócio, que teriam que pagar a sua entrada com mais burocracia, e correriam maior risco de receber bola preta.

Note que a justiça não está fechada para o sócio barrado. Se se sentir injustiçado, o sócio pode entrar na justiça para garantir eventuais direitos fraudados pelo clube. O mesmo ocorre com o mutuário que, eventualmente, se sinta defraudado pelo banco.

Mas há quem possa dizer que o direito à moradia não pode ser comparado ao direito de ser sócio de um clube, e que, nesse caso, o ônus do processo judicial deveria ser dos bancos, e não do mutuário. Foi o arrazoado do ministro Edson Fachin, que abriu divergência em relação ao relator desse julgamento. Segundo o ministro, o “direito à moradia” se sobrepõe ao direito do banco de executar o contrato, e caberia ao banco o ônus de acessar a justiça para cumprir o contrato.

O problema dessa tese é justamente considerar o “direito social” desconsiderando o custo econômico desse direito. Sim, como seres humanos, temos direito à alimentação, moradia, saúde, educação. Mas isso não significa que as pessoas possam, por exemplo, entrar em um supermercado e pegar o que precisam para sobreviver. O resultado do exercício desse “direito” seria o fim dos supermercados, por absoluta inviabilidade econômica. Onde mais os famintos exerceriam o seu “direito humano”?

Observe que a execução facilitada de contratos beneficia, inicialmente, o lado da oferta do produto ou serviço, justamente para garantir a perenidade dessa oferta. Mas, ao garantir a perenidade, o lado da demanda também é beneficiado no longo prazo. Por isso, a expressão usada pela reportagem, “a decisão beneficiou os bancos” é incorreta: a decisão beneficia também todos aqueles que precisam de oferta perene de financiamento imobiliário e que enfrentariam restrição de oferta caso houvesse dificuldade em executar contratos de garantia.

É sempre tentador colocar o ônus sobre os bancos, o belzebu da economia, aquele agente econômico parasita que não cria valor. Muitos pensam como o ministro Edson Fachin, que os bancos têm o “dever moral” de emprestar dinheiro para as pessoas exercerem o seu “direito humano” de ter uma moradia. O único problema dessa equação é que não se sustenta no tempo. No final, o direito à moradia dos inadimplentes se dá às custas do direito à moradia dos adimplentes. Os bancos são só os intermediários nessa equação econômica.

Perdeu, mané

O ministro Luis Roberto Barroso afirmou que a empresa que não provisionou impostos a serem pagos no futuro porque o STF poderia derrubar decisão transitada em julgado, “fez um aposta”.

Sim, essa empresa definitivamente fez uma aposta.

Apostou que cobrança de impostos não poderia ser retroativa à lei (ou ao julgamento) que a determina.

Apostou que havia alguma segurança jurídica no País.

Apostou, enfim, que o Brasil era um país sério.

Perdeu, mané.

Duas histórias, um destino

Os dois recortes abaixo se referem a julgamentos no STF que teriam lugar ontem. No momento em que escrevo, não sei a quantas anda a agenda, se algum magistrado pediu vista, essas coisas. Mas não importa. O importante é entender de que barro somos feitos e porque nosso subdesenvolvimento é uma obra escrita a várias mãos.

Vejamos. O primeiro julgamento refere-se a contribuição previdenciária sobre o terço de férias. Como sabemos, os empregados com carteira assinada têm direito a receber um terço de seu salário por ocasião de suas férias. Há uma disputa sobre a natureza dessa remuneração: se faz parte do salário (hipótese em que a contribuição previdenciária patronal seria devida) ou indenizatória (hipótese em que aquela contribuição não seria devida).

Julgamento no STJ deu ganho de causa às empresas, razão pela qual muitas não estavam recolhendo a contribuição. Mas a coisa foi parar no STF e, até o momento, havia quatro votos a zero contra as empresas. A situação, como diria o Galvão, era dramááática.

Neste primeiro caso, o que temos? Em primeiro lugar, uma discussão bizantina sobre a natureza de uma parte do salário. Essas coisas que não fazem o mínimo sentido no mundo real (afinal, dinheiro é dinheiro), mas que se convertem em brechas a serem exploradas por teses jurídicas. Esse, no entanto, não é o principal ponto. O principal é o STF funcionar como casa revisora do STJ. Na prática, temos dois tribunais superiores, um superior ao outro, julgando as mesmas coisas. O STJ decide uma coisa e o STF decide outra. Pra quê, então, existe o STJ? Sustentamos uma máquina inútil que custa caro e atrasa o fim dos processos. E, o que é pior: dando a falsa impressão de que suas decisões valem algo.

O segundo caso refere-se ao julgamento de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da lei de patentes. O artigo diz que a patente tem validade de 20 anos a partir do pedido, enquanto o parágrafo único diz que esse tempo será de, no mínimo, 10 anos a partir da efetiva concessão da patente. Ou seja, o parágrafo permite a extensão da validade da patente pelo tempo em que o INPI sentou em cima do processo. Do barulho em torno desse parágrafo depreendemos que não é anormal o INPI demorar mais de 10 anos para a concessão de uma patente! Se demorasse menos do que isso, o parágrafo seria inócuo, a patente valeria por 20 anos e ponto.

Não vou aqui discutir a justeza do pleito, mas sim, a sua natureza. Não se está discutindo o pedido em si da patente, mas o tempo de sua validade. O STF decidirá sobre a constitucionalidade do parágrafo único. Ora, tanto o parágrafo quanto o artigo versam sobre o mesmo fenômeno: o tempo de validade da patente. Por que seria inconstitucional conceder 10 anos de validade a partir da concessão e não seria inconstitucional conceder 20 anos a partir do pedido?

Na verdade, o que temos aqui é o STF sendo chamado a modificar arbitrariamente uma lei que, se incorreta, deveria ser modificada pelo Legislativo. Trata-se claramente de uma chicana jurídica inventada pelos lobbies das companhias farmacêuticas locais para “driblar” a legislação. Foi o legislador que determinou o prazo de validade da patente, é ao legislador que cabe modificá-lo. Até entenderia o STF cancelar o direito a patente como um todo, com base em sabe-se lá qual princípio constitucional. Não concordaria, mas entenderia a decisão. No caso em tela, no entanto, qualquer decisão do STF, a não ser dizer que não tem nada a ver com isso, seria incompreensível. Depois ficamos todos a reclamar que o STF legisla no lugar do legislativo, quando são os próprios grupos de interesse que provocam o STF nesse sentido.

O que une os dois casos analisados? Um sistema jurídico (aqui entendido de maneira ampla, envolvendo operadores e legisladores) gerador de incertezas que minam a atividade produtiva. Como disse no início, a nossa pobreza não é improvisada.