O recado de Damares Alves

Pouca gente deu importância a essa notícia. Eu guardei. A senadora Damares Alves, bolsonarista raiz e incorruptível, não teria motivo para elogiar Zanin, a não ser que fosse um elogio sincero.

Em qualquer teste de alinhamento ideológico, temos 4 quadrantes, divididos em posicionamentos sobre economia e sobre costumes. O sujeito pode ser conservador em termos de costumes e estatista em termos econômicos, por exemplo. Ou, ao contrário, ser progressista em termos de costumes e liberal em termos econômicos. Esse é o caso de Luís Roberto Barroso, por exemplo.

Zanin, em seu papo com Damares, deve ter deixado claro seu posicionamento conservador em matéria de costumes. De outro modo, não teria merecido um elogio público da senadora. Claro que ele poderia ter defendido posições conservadoras apenas da boca para fora, mas o voto dos bolsonaristas não eram realmente necessários para a sua aprovação. Então, desconfiei que o posicionamento era sincero. As duas votações de Zanin na seara de costumes até agora confirmaram minha desconfiança. E desconfio também que ele está no time de Barroso e Fux no campo econômico, mas isso só saberemos ao longo das votações sobre temas correlatos.

De qualquer modo, os petistas estão pistola com a indicação de Lula. E se eles estão tristes, eu estou contente.

O que precisa ser estudado

O editorial do Estadão dá voz à perplexidade que tomou conta de alguns círculos bem-pensantes do país diante dos resultados eleitorais, particularmente para o Legislativo. Por ”razões ainda a serem estudadas”, os eleitores escolheram ministros completamente ineptos para representá-los no Congresso.

Vou dar aqui minha humilde contribuição para os “estudos” a serem feitos.

Comecemos com Damares e Salles. A questão, talvez, não é que tenham sido incompetentes. Pelo contrário. Esses dois ministros foram vistos como muito competentes na implementação da agenda vencedora das eleições de 2018, o que inclui valores conservadores da família e o uso da floresta para o desenvolvimento econômico. Para desgosto do Estadão, existe uma parcela da população que endossa essas agendas e viu em Damares e Salles seus legítimos representantes.

Já o caso de Pazuello é outro. As centenas de milhares de mortes causadas pela Covid certamente não fazem parte da agenda de ninguém. A perplexidade aqui é outra: como pode a população premiar com um mandato parlamentar um “negacionista”? O editorial reconhece que não dá para colocar 100% das mortes por Covid nas costas do governo, mas atribui à dupla Bolsonaro/Pazuello a transformação de uma calamidade em uma tragédia.

Será esta mesmo a percepção de toda a população? Creio que não. Para uma parcela dos eleitores, a Covid foi o que foi, ceifou vidas no mundo inteiro, e mesmo países com governos “responsáveis” sofreram muito com a doença. Bolsonaro deve ter perdido votos preciosos com seu discurso anti-vacina, mas não o suficiente para evitar que seu lugar-tenente fosse eleito. Aliás, pelo contrário: o discurso anti-vacina agrada uma parcela dos eleitores, o suficiente para eleger um seu representante no Congresso.

Por outro lado, o editorial constata, perplexo, que Bolsonaro obteve mais de 50% dos votos em Manaus, o epicentro da CPI da Covid. Aqui já não se trata de uma parcela da população, mas de sua maioria. Como explicar? Já tive oportunidade de escrever sobre isso aqui: os eventos de Manaus se encaixam em um contexto em que a população já está acostumada a não ter assistência decente de saúde. A população, em grande parte, simplesmente não ligou o que aconteceu com o governo federal, dado que os hospitais são estaduais ou municipais. A CPI tentou fazer essa ligação, mas só teve sucesso com quem não mora em Manaus.

Por fim, a simples ligação com Bolsonaro não foi o suficiente para eleger parlamentares. Queiroz e Wasseff não foram eleitos, por exemplo. O que reforça a tese de que não basta ser bolsonarista, é preciso trabalhar pela agenda que ele representa. O bolsonarismo é maior do que Bolsonaro. É isso que precisa ser estudado.

O Ministério da Verdade

Fake News. Esse assunto tem me incomodado de maneira especial.

Venho acompanhando esse affair do vídeo em que a ministra Damares Alves afirma que o governo Lula produziu uma cartilha que ensinava os jovens a usar crack. O PT entrou na justiça eleitoral pedindo a remoção do vídeo.

Eu não vi a cartilha, mas pelo que a imprensa informou, parece que a abordagem é a de “redução de danos”. Conhecemos essa abordagem: o melhor é você não usar drogas, mas se resolver usar, utilize seringas descartáveis, não compartilhe o cachimbo e coisas do tipo. Damares afirma que são orientações para o uso de drogas. O PT se defende dizendo que se trata de saúde pública.

A Procuradoria Geral Eleitoral diz o óbvio: não se trata de fake news. A cartilha existiu. A cartilha ensina como usar crack. Se isso é apologia ao uso ou redução de danos, cabe a cada um julgar. Damares inseriu a cartilha em seu discurso político, afirmando que é um absurdo tentar “reduzir danos” neste caso. Absolutamente legítimo. Trata-se de um posicionamento político, com o qual podemos concordar ou não. Mas ela não inventou nada, está lá, à disposição da interpretação de todos.

O TSE se meteu em uma armadilha que não tem saída honrosa. Será inundado de pedidos de anulação de propaganda alegando-se “fake news”, quando não passam de discurso político, em que adversários procuram aumentar seus próprios atributos e os defeitos de seus adversários, interpretando fatos concretos à luz de suas próprias percepções. O problema de querer substituir a inteligência dos eleitores por um suposto critério objetivo é acabarmos dependentes de uma verdade estatal. O TSE se transformou no Ministério da Verdade, e isto não é nada bom.