Um verdadeiro democrata

Não deixa de ser paradoxal este post de Marcel Van Hattem. O deputado usa de sua liberdade de expressão e de sua imunidade parlamentar para tecer pesadas críticas ao STF, afirmando que os magistrados supremos não respeitaram a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar de um colega. Bem, se fosse essa a conduta, Van Hattem poderia esperar a mesma reação do STF com relação a si mesmo.

Mas Marcel Van Hattem sabe bem a diferença entre o que vai escrito neste post e o que disse o deputado Daniel Silveira. Aqui, temos uma crítica democrática e republicana. Lá, uma ameaça de agressão física e incitação à violência.

Cansei de tecer críticas ao STF nesta página. Não preciso de imunidade parlamentar para isso. Vivo em uma sociedade democrática, em que o exercício da livre opinião não é criminalizado. O STF, no entanto, entendeu que a manifestação de Daniel Silveira extrapolou o direito à crítica, tão bem exercido por Marcel Van Hattem. Entenderam os juízes (10 de 11) que as falas de Daniel Silveira foram mais que “desprezíveis”. Foram criminosas. E acho que aqui está o busilis da questão.

Nenhum direito é absoluto. Ninguém tem o direito, por exemplo, de cometer crime. Portanto, a questão envolvida aqui não é o “direito à liberdade de expressão”, tão bem exercido por Marcel Van Hattem, mas se a fala de Daniel Silveira constitui ou não crime. Se constitui crime, o deputado não tem o direito de exercer a sua liberdade de expressão. É exatamente a mesma discussão quando se debate sobre o “direito” ao aborto. A questão principal é se o feto é ou não um ser humano. As questões de “liberdade sobre o próprio corpo” ou “problema de saúde pública” são secundárias quando está em jogo o principal, o direito à vida de um ser humano. Do mesmo modo, o “direito à liberdade de expressão” se torna secundário quando se trata de usar esse direito para cometer um crime. Portanto, é isso que deve ser debatido, e não uma pretensa “agressão à livre manifestação”, assim como o direito ao aborto não se resume a um pretenso “direito da mulher ao próprio corpo”.

E aqui chegamos ao julgamento de anteontem. Eu, particularmente, acho que a fala do deputado Daniel Silveira extrapolou o simplesmente “desprezível”, incorrendo em crime. Tenho amigos que, ouvindo a mesma fala, acharam que foi só bravata. No entanto, o que eu ou você achamos é irrelevante. Na democracia, quem julga é o juíz constitucionalmente constituído. É como em um jogo de futebol: podemos ficar debatendo horas sobre um determinado lance, mas a decisão do juíz é soberana. Por ocasião do impeachment, os petistas chamaram de “golpe” todo o processo, desrespeitando a decisão dos juízes constitucionalmente constituídos para julgar a ex-presidente. No caso, os parlamentares.

Aliás, há questionamento, inclusive, sobre se o STF poderia estar julgando um caso em que o próprio STF foi o agredido. No caso, como há foro privilegiado, não há outra Corte possível. E, se não for o STF a julgar, os deputados ficariam completamente inimputáveis. Imagine a seguinte situação: um deputado entra no STF e atira em um ministro. Segundo essa tese, o STF ficaria de mãos atadas pelo simples fato de ter sido o agredido. E, ademais, quem apresentou a denúncia foi a PGR, a Câmara (como bem lembrou Van Hattem) permitiu que o deputado continuasse preso e 10 de 11 ministros, inclusive André Mendonça, avaliaram que houve crime na fala de Daniel Silveira. Portanto, estamos longe de uma decisão arbitrária.

O deputado Marcel Van Hattem, combativo como é, inicia seu post dizendo que o STF usou a democracia para golpear a democracia. Bem, o entendimento do STF foi o justo inverso: o deputado Daniel Silveira teria usado a democracia para golpear a democracia. Independentemente de quem esteja com a razão, Van Hattem se mostra um verdadeiro democrata, ao reconhecer que é na arena política que se resolvem essas questões. Muito diferente da fala de Daniel Silveira.


Aqui, o post de Marcel Van Hattem

NÃO SE DEFENDE A DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO ATACANDO A PRÓPRIA DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO

Não se trata apenas da condenação inconstitucional de um parlamentar: é uma decisão do STF que afronta a própria democracia e as instituições sob o pretexto de defendê-las. Temos agora um preso político no país em plena democracia: não há maior contradição e injustiça possível.

As falas gravadas em vídeo por Daniel Silveira no ano passado foram reprováveis. A perseguição desproporcional e ilegal que ele tem sofrido, porém, tem obliterado até mesmo o conteúdo de sua manifestação, transformando o suposto algoz em vítima.

Ser julgado por seus acusadores é autoritarismo que não cabe no Estado de Direito. É bom lembrar que tudo começou com o torto inquérito fake contra a apuração sobre Toffoli da Revista Crusoé, num claro atentado da mais alta Corte do Judiciário contra a liberdade de imprensa.

O corporativismo do STF foi se sobrepondo às garantias constitucionais e a defesa das liberdades no país à medida que foi centrando fogo em inimigos rejeitados pelo establishment. Quando foi contra a imprensa livre ainda houve alguma reação. Agora, grande apatia.

Pior: a própria Câmara dos Deputados errou ao manter Daniel preso, com meu voto e manifestação contrária, abrindo o precedente perigosíssimo da cassação e prisão inconstituiconal de parlamentares por manifestação verbal. O foro é a Comissão de Ética da Câmara, jamais o STF.

Na prática o que temos é um STF condenando a prisão por 8 anos um parlamentar por uma manifestação repugnante enquanto atos e ações repugnantes e até mesmo hediondos como estupros, homicídios e assassinatos seguem em larga escala impunes no Brasil.

Infelizmente a Suprema Corte não fez Justiça. Fez política. Agiu de forma vingativa, não com a serenidade e imparcialidade requerida de magistrados. Quis dar resposta à fala de um parlamentar mas a desproporção e ilegalidade ferem a própria democracia e o Estado de Direito.

Muitos perguntam: o que fazer? Pois bem: assim como defendo que não se pode justificar defesa da democracia sendo autoritário nem a defesa da Constituição com atos ilegais, também digo claramente que a resposta está na ação POLÍTICA contundente mas equilibrada de cada um.

Você pode não gostar dos deputados e senadores com mandato, mas não pode ignorar o fato de que chegaram em Brasília com o voto do povo. Se Câmara e Senado permanecem apáticos com raras exceções é porque seus membros refletem a qualidade dos votos dados a eles na eleição passada.

Você pode optar por não resistir e não reagir. Pode optar por desgostar de política e não se envolver para melhorar a qualidade dos seus representantes. Pode. O que você não pode é depois achar que tem o direito de só reclamar.

Dar opinião tem ficado cada vez mais perigoso no país, especialmente a depender sobre quem você está falando. É claro que de forma nenhuma subscrevo a fala de Silveira – a repudio. Mas repito: não é sobre ele. Lembrem-se da Crusoé: é sobre a quem a crítica é dirigida.

Não importa o quão elegante e politicamente correto seu argumento seja: o recado da votação de do STF de ontem é um “cala-boca” a quem ousar contrariar os neoiluministas do STF, que se arrogam o direito de estarem acima de quaisquer suspeitas.

Não estou na política, porém, para me calar ou submeter-me a ameaças de me calarem. Continuarei sempre na trincheira da defesa das liberdades contra a tirania de quem quer que seja, de onde quer que venha. Minha maior missão é atrair à política mais pessoas com esta determinação.

A despeito do que tem feito de forma autoritária o STF, é apenas com mais democracia, mais liberdade e mais defesa do Estado de Direito e correta aplicação das leis que se defende verdadeiramente a democracia, garantem-se as liberdades, e solidifica-se o Estado de Direito.

Os limites da imunidade parlamentar

“Daniel Silveira usou o seu mandato como escudo protetivo. Ele usou o Parlamento como esconderijo”. Estas foram as palavras que Alexandre de Morais usou para afastar a hipótese da imunidade parlamentar na defesa do deputado.

De fato, a imunidade parlamentar não cobre a possibilidade de que o titular de mandato parlamentar cometa crime. Parece-me que esta premissa pode ser razoavelmente aceita por todos. Se um parlamentar, por exemplo, assassina um colega em plenário, trata-se de um crime. Portanto, o titular do mandato não está imune ao longo braço da lei neste caso.

O caso do deputado Daniel Silveira, portanto, deve ser analisado do ponto de vista do suposto crime cometido. Se crime houve, sua imunidade parlamentar não pode ser usada para protegê-lo de seus atos.

Uma segunda questão que se coloca é a seguinte: pode-se cometer crime através do uso da palavra? Com certeza. Há crimes tipificados no Código Penal que envolvem somente o uso da palavra: calúnia, difamação e ameaça de violência física. O próprio ato de falar, neste caso, constitui crime.

É neste ponto que as pontas do caso Daniel Silveira se unem: a atividade parlamentar se desenvolve principalmente pelo uso da palavra. Pode um parlamentar ser condenado pelo uso do que caracteriza o seu mandato, ou seja, o uso da palavra? Estariam aqueles crimes mencionados acima suspensos pela imunidade parlamentar? Pode um parlamentar caluniar, difamar ou ameaçar com violência física pelo simples fato de ser parlamentar?

O caput do artigo 53 da Constituição é claro como a luz do dia: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Os parágrafos deste artigo apenas estabelecem as condições nas quais os parlamentares podem ser julgados e condenados: fórum privilegiado, regras para a prisão em flagrante, licença da respectiva Casa Legislativa para o processo etc. Em nenhum dos parágrafos se diz que o uso da palavra pode ser fonte de processo criminal, hipótese afastada pelo caput.

O ministro Alexandre de Morais, na Petição 9456 DF, de abril/2021, deixava clara a sua interpretação deste artigo: “A jurisprudência da CORTE é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Ou seja, já haveria jurisprudência no STF de condenações em virtude de manifestações no âmbito parlamentar. Realmente, não lembro de outro deputado que tenha sido condenado pelo fato de ter falado que cometeria um crime ou incitado a outros a cometerem crimes. Parece-me que foi estabelecida uma nova jurisprudência.

Óbvio, estou longe de ser especialista em interpretação de leis. Sou apenas uma pessoa letrada, que entende razoavelmente bem o que lê. E a Constituição é um conjunto de palavras inteligíveis, assim como o discurso do deputado Daniel Silveira. Se a frase “o povo entre dentro do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele e sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue dentro de uma lixeira” significa claramente uma instigação à violência física contra membro de outro Poder (temos aqui ao menos dois crimes), a frase “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” significa claramente que quaisquer palavras, mesmo que configurem crime, como é o caso, não deveriam servir de base para a condenação civil ou penal do parlamentar.

O constituinte, quando elaborou este artigo, tinha em mente justamente a proteção das garantias democráticas fundamentais, entre as quais, a liberdade de discurso e de voto por parte do parlamentar. Não custa lembrar que o Congresso Nacional foi fechado em dezembro de 1968 justamente porque a Câmara dos Deputados recusou-se a permitir o processo do deputado Marcio Moreira Alves, que havia chamado o exército de “valhacouto de torturadores” e instigado os brasileiros a boicotarem os desfiles de 7 de setembro e às mulheres que se recusassem a se relacionar com militares. Diríamos que, guardadas as devidas proporções, Marcio Moreira Alves era o Daniel Silveira da época, instigando a subversão através de palavras. Claro, os dois casos não são simétricos e nem comparáveis, um estava defendendo valores democráticos, o outro defende o uso da força para impor suas ideias. A semelhança está apena na arma utilizada: a palavra.

Daniel Silveira usou palavras chulas, fez ameaças e instigou a violência contra os membros de outro Poder da República. São crimes, sem sombra de dúvida. O diabo é que o artigo 53 da Constituição não abre exceção à imunidade parlamentar. Se houvesse um parágrafo dizendo algo do tipo “a imunidade estabelecida no caput será suspensa caso as opiniões, palavras e votos atentem contra os artigos x, y e z desta Constituição”, então teríamos base legal para a sua condenação. Mas o constituinte não quis prever tal situação, justamente porque qualquer limitação à palavra do parlamentar cheira a arbítrio.

Por outro lado, e talvez seja este o ponto, legítimo por sinal, a que se apegam os que concordam com a decisão quase unânime do Supremo, o deputado Daniel Silveira usou da palavra que o regime democrático lhe garante para atacar um dos Poderes que constituem a base material do regime. Não estou aqui afirmando que o STF que temos seja um exemplo de valorização dos ideais democráticos, mas a ideia de uma Corte Suprema imune à influência dos outros poderes é central nos regimes democráticos. Há formas, dentro das regras democráticas, de garantir a isenção do STF. Por exemplo, através da cassação de juízes. Ao defender que o “povo” invada o STF e expulse os ministros na base da força, o deputado está dando razão aos que pensam estar defendendo a democracia ao prendê-lo. A ideia de atuar fora da lei para fazer prevalecer a lei não parece ser muito coerente. Apesar de o artigo 53 lhe garantir o direito de falar o que bem entender, parece ser contraditório usar este direito justamente contra o regime que lhe garante este direito.

Então, por um lado, a letra da lei garante o direito de manifestação do parlamentar. Por outro lado, este direito é garantido justamente pelo tipo de regime atacado pelo parlamentar. E qualquer regime atuará no sentido de defender os seus pilares, como foi o caso. Por isso, entendo quem ache um absurdo a decisão do STF, e entendo também quem concorde. Cada um olha a realidade de um determinado ponto de vista. E poucos admitem que sua opinião, muitas vezes, é influenciada e antecedida pelas suas opções políticas.

As palavras têm poder

Ontem escrevi sobre os jogos de poder envolvidos na prisão do deputado Daniel Silveira. Hoje, depois de pensar e organizar um pouco o tema na minha cabeça, vou escrever sobre o assunto em si: a questão da liberdade de expressão.

Começarei por um tema absolutamente estranho ao assunto que trataremos: o aborto. É interessante como, neste tema, os papéis se invertem: os conservadores, sempre tão ciosos em relação ao tema “liberdades individuais”, defendem um regramento do Estado para cercear a liberdade da mulher. E os progressistas, sempre prontos a estabelecer regras de comportamento, defendem com unhas e dentes a opção livre da mulher.

Vamos analisar a coisa do ponto de vista do conservadorismo, que é o que nos interessa neste momento. Por que, afinal, no caso do aborto, se quer proibir a mulher de fazer uma opção livre? Simples: porque, neste caso, há um terceiro envolvido, o feto. O debate sobre o aborto passa pela desagradável discussão sobre a natureza humana do feto. Os progressistas normalmente não querem saber sobre essa discussão. A liberdade da mulher vem antes.

Ernesto Araújo chegou a afirmar que preferiria ser pária entre as nações por defender a liberdade. No entanto, no caso do aborto, tenho certeza que o nosso chanceler defende uma “limitação” na liberdade da mulher. Porque, afinal, a minha liberdade termina onde começa a do outro. E, neste caso, há um outro envolvido.

Não existe liberdade absoluta. Não existe liberdade de expressão absoluta. Assim como no caso do aborto, é preciso analisar se o exercício daquela liberdade constitui um crime. Temos liberdade para fazer o bem, não para fazer o mal. Portanto, não há como escapar da análise da fala do deputado, por mais que essa análise seja espinhosa.

Os deputados, vez por outra, a depender do seu nível de educação, chamam uns aos outros de canalhas, bandidos, corruptos. Coisas que podem gerar, inclusive, processos por injúria. Por que, então, neste caso específico, o deputado foi preso, enquanto, nos outros casos, há todo um processo antes? Não vou entrar aqui na tecnicalidade do flagrante, se o delito é contínuo ou não, enfim, se há elementos para a prisão em flagrante. Não é minha praia. Vou me concentrar na fala em si.

Para essa análise, é interessante observar os trechos destacados por Alexandre de Moraes em sua ordem de prisão (integra nos comentários). Não foram destacadas injúrias como o tamanho do bilau do Fachin ou as preferências sexuais do Barroso. Há dois tipos de falas destacadas: 1) ameaças, veladas ou não, à integridade física dos magistrados e 2) ameaças, veladas ou não, à integridade do STF e do próprio Congresso.

A coisa foi, portanto, além da injúria pessoal. As falas do deputado, se transformadas em realidade, significariam o fim das atuais instituições democráticas e sua substituição por uma “ditadura do bem”. Alguém já disse que o melhor regime de governo é uma ditadura que concorde comigo. O segundo melhor, ou o menos pior, é essa democracia que temos, com todos os seus evidentes defeitos. E o terceiro pior é uma ditadura com a qual não concordamos.

Daniel Silveira, na prática, usa sua liberdade de expressão para defender um regime político que, uma vez instalado, a primeira coisa que faz é acabar com a liberdade de expressão. Trata-se de uma contradição em termos. O regime democrático, em qualquer país, restringirá esse tipo de discurso sem medo de ser feliz. Injúria e difamação não atentam contra o regime. Discursos pelo fechamento do STF e do Congresso, sim. Por isso, entenderam os magistrados que o deputado, no mínimo, merecia uma prisão preventiva (figura prevista em nosso código penal, diga-se de passagem) mesmo antes do julgamento.

Termino com uma pequena digressão. Há quem diga que palavras, por pior que sejam, não têm o poder de criar realidades. Talk is cheap, dizem os americanos. Não é verdade. Os grandes líderes, aqueles que moveram seus povos em uma determinada direção, o fizeram através de suas palavras. Não é à toa que são famosos os discursos de Lincoln, Churchill e Hitler. Uma revolução começa no mundo das ideias, e se torna realidade através das palavras.

“Se pomos um freio na boca do cavalo para que nos obedeça, conseguimos controlar o seu corpo todo. Reparai também nos navios: por maiores que sejam, e impelidos por ventos impetuosos, são, entretanto, conduzidos por um pequeníssimo leme, na direção que o timoneiro deseja. Assim também a língua, embora seja um membro pequeno, se gloria de grandes coisas. Comparai o tamanho da chama com o da floresta que ela incendeia! Ora, também a língua é um fogo! É o universo da malícia! Está entre os nossos membros contaminando o corpo todo e pondo em chamas a roda da vida, sendo ela mesma inflamada pelo inferno!” (Tiago 3, 2-6)

O STF e a Realpolitik

Em entrevista na TV Bandeirantes em 1999, o então deputado federal Jair Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso, o fuzilamento de “uns 30 mil”, incluindo o então presidente FHC, e a sonegação de impostos. Na época, estudou-se um processo de quebra de decoro no âmbito do Congresso, que acabou não ocorrendo. E ficou tudo por isso mesmo. Não houve, por suposto, qualquer ação do STF a respeito, muito menos uma ordem de prisão.

O que mudou de 1999 para 2021? Por que o STF ordenou hoje a prisão de um deputado que ameaçou ministros do STF e elogiou o fechamento do Congresso? E convém observar que uma decisão inicialmente monocrática foi acompanhada por unanimidade por todos os ministros. Não consigo lembrar a última vez em que houve unanimidade no plenário do STF.

Não somente isso. A reação do Congresso foi morna, pra dizer o mínimo. Difícil achar que a decisão do STF tenha sido tomada sem um mínimo de articulação com o alto clero do Parlamento.

E o silêncio ensurdecedor do presidente? Definitivamente, não é mais o deputado de 1999.Kissinger, em sua monumental obra Diplomacia, faz um resenha histórica das duas grandes correntes filosóficas que permeiam as decisões diplomáticas ao longo do tempo. De maneira muito simplificada, a primeira corrente é a das esferas de poder, que prevaleceu na Europa ao longo do tempo. Nessa linha, os diversos países se alinham com base nas vantagens mútuas que podem obter. É a realpolitik. A segunda corrente é a da cooperação virtuosa, em que os países deveriam cooperar com base em uma ideia de bem comum. Woodrow Wilson, presidente dos EUA durante a 1a Guerra Mundial foi o grande patrocinador dessa corrente, que inspirou a criação da Liga das Nações.

O governo Bolsonaro iniciou wilsoniano (desculpe-me Woodrow, sei que é uma comparação pobre) mas rapidamente migrou para a realpolitik. A prisão do deputado bolsonarista-raiz deve ser entendida neste contexto. Há um claro desconforto dos poderes em Brasília com a face bolsonarista-raiz do governo Bolsonaro. E não é de hoje. Vários episódios se acumularam, dando inclusive origem ao inquérito das fake news. Weintraub foi embora por conta disso.

Se em 1999 Bolsonaro era um exército de um homem só, hoje é formado por um conjunto fornido de deputados e alto staff do Executivo, alinhado a uma ala do Exército e uma rede de apoiadores não desprezível. Quando o deputado desbocado ameaça os ministros do STF e lembra o fechamento do Congresso em 1968, está dando voz a essa ala. Não foi somente Moraes que mandou prender o deputado. Foi o conjunto de todos os poderes em Brasília, incluindo o Executivo. Acabou. A realpolitik venceu. Não há virtude, há espaços de poder dentro de certas regras de convivência, a que chamamos de democracia. O bolsonarismo desafiou essas regras e está sendo enquadrado. Hoje, nem Jair Bolsonaro é bolsonarista mais.

PS.: note que não entrei no mérito da liberdade de expressão ou da imunidade parlamentar. Eu particularmente penso que ambas não são salvo-conduto para cometer crimes, mas aí teríamos que analisar se o que o deputado falou é ou não crime. Aliás, os 11 ministros do Supremo decidiram que é crime. De qualquer modo, para entender o que ocorreu, esse é um dado irrelevante.