O falso começo do Desenrola

Oba! O programa Desenrola finalmente vai começar!

Só que não.

Nesta primeira etapa, o que vai acontecer é um perdão de dívidas para quem deve, nos bancos, até R$ 100, e uma “renegociação voluntária” de dívidas para quem tem renda de até R$ 20 mil.

Com relação à primeira parte, estamos falando de um perdão de, no máximo, R$ 150 milhões (1,5 milhão de pessoas devendo até R$ 100), divididos entre todo o sistema financeiro. Dinheiro de pinga, que os bancos graciosamente irão doar para fazer um bonito com o governo.

É a segunda parte que nos interessa aqui, que totalizaria, segundo estimativas do governo, algo como R$ 50 bilhões de renegociações, mais ou menos 1/6 dos R$ 300 bilhões atualmente negativados, segundo a Serasa. A questão é: o que os bancos irão fazer agora que não têm feito desde sempre? Essa é a própria essência da atividade bancária: emprestar dinheiro e cobrar de volta. Já existe um mercado secundário de dívidas de difícil recuperação, não precisa de um Desenrola para isso. A grande novidade do programa, e que deverá ficar para setembro, se não chover, é um fundo público de garantia. Esse fundo servirá para cobrir a inadimplência das dívidas renegociadas. Em outras palavras, o dinheiro público substituirá o dinheiro dos bancos, com a viúva ficando responsável pelos novos calotes.

Ainda não se sabe qual será o tamanho desse fundo, mas como tudo nesse circo de pulgas que é esse governo, deverá ser algo microscópico anunciado como o maior espetáculo da Terra. E, a exemplo do que ocorreu com o programa dos carros baratos, os negativados também devem estar aguardando pela redenção do Desenrola, o que deve estar dificultando as renegociações normais dos bancos. O efeito disso é menos espaço nos balanços dos bancos para novos empréstimos no curto prazo, a exemplo das vendas menores de carros às vésperas do anúncio do programa do carro popular.

Ideias são commodities

Anos atrás, trabalhava em um grande banco americano, que passava por mais uma de suas várias crises. Em determinado momento, os funcionários recebemos uma comunicação do novo CEO, com a visão dele sobre o negócio. De tal modo me chamou a atenção um determinado ponto, que lembro até hoje. O ponto era este: dizia o CEO que a parte mais difícil de tocar um negócio é fazer um check numa tarefa e avançar para a próxima.

Alguém já disse que ideias são commodities. Pode parecer uma frase injusta, dado que ter ideias é muitas vezes considerado o ápice do gênio humano. Mas, se pensarmos bem, qualquer um tem ideias. Na verdade, ter ideias é a coisa mais fácil. Difícil mesmo é tirá-las do papel.

O governo anunciou com pompa e circunstância a ideia do Desenrola. Seria uma plataforma onde credores atuais e futuros credores se encontrariam em um grande leilão, em que os devedores teriam o seu nome limpo na praça com a garantia do Tesouro Nacional. Lindo. O problema é, como sempre, tirar a ideia do papel.

Cheguei a comentar aqui a reunião em que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou a Lula o projeto. Segundo relatos na imprensa, o secretário responsável pelo projeto chegou a sair da sala no meio da reunião para verificar o tempo de entrega do “sistema”. Um pequeno detalhe, claro.

Em toda reportagem que leio sobre o assunto, menciona-se que o Serpro e a Dataprev estarão envolvidos no desenvolvimento do “sistema”. Na reportagem de hoje no Valor, o repórter procurou as duas agências governamentais. O Serpro afirmou que “não tinha informações sobre o Desnrola”. Já a Dataprev disse que “não está envolvida, até o momento, na elaboração do programa”. Bem, se o pessoal que escreve os programas ainda não foi envolvido, isso significa que o tal sistema não foi sequer especificado.

A capacidade de execução de governos normalmente é abaixo da média. Quando se trata de um governo do PT, a coisa complica ainda mais. E quando é Fernando Haddad o responsável pelo projeto, podemos puxar um banquinho.

Reportagem de hoje no Estadão nos informa que o governo Lula, até o momento, já revogou 231 decretos de governos anteriores, uma média de quase 2,5 revogações por dia útil de governo. Está mais para um governo de desconstrução do que de reconstrução nacional. Construir dá trabalho. Não tem coisa mais difícil do que dar um check em uma tarefa e passar para a próxima. O Desenrola que o diga.

De onde vem o crescimento

A manchete principal do Estadão tem duas imprecisões. A primeira refere-se ao “recorde”. Achei estranho, dado que já enfrentamos períodos muito piores de inadimplência. Somente no miolo da reportagem ficamos sabendo de que se trata de uma seria do Serasa que teve início em 2016. Do jeito que está, parece que o recorde é desde Cabral.

A segunda imprecisão é mais sutil. A inadimplência não “trava o crescimento”. A inadimplência sinaliza que aquele crescimento que achávamos que existia, na verdade nunca existiu de verdade, era apenas uma ilusão de ótica. Explico.

No final de todo o qualquer processo produtivo, seja de bens, seja de serviços, estão as pessoas físicas com sua renda para comprar esses produtos e serviços. O PIB nada mais é do que a soma de todos os lucros (valores agregados) nesse processo, até chegar no cliente final, pessoa física, que vai comprar aquele produto ou serviço, produzindo o lucro final dessa cadeia para o comerciante ou prestador de serviço. A pessoa física não vai empregar aquele produto ou serviço para ela mesma produzir lucro, ela vai simplesmente consumir, sendo o último ela da cadeia de geração do PIB.

Digamos, então, que a D. Maria vai comprar um liquidificador de R$ 100 na Magalu. Ela será o elo final de uma longa cadeia de agregação de valor, cada elo contribuindo com o PIB, sendo que os R$ 100 são a soma de todos os lucros ao longo da cadeia de produção do liquidificador.

No entanto, ao invés de comprar à vista, D. Maria entra no “carnezinho gostoso” da D. Luiza. O que aconteceu aqui? Na verdade, quem “comprou” o liquidificador foi a financeira por trás do carnezinho gostoso, não a D. Maria. A financeira é mais um elo da corrente que vai lucrar em cima do consumo da D. Maria. Enquanto o carnezinho gostoso não for quitado, aquele PIB, de fato, não existe. O PIB só existe de verdade quando a D. Maria e o seu José compram produtos e serviços com o seu bom e honesto dinheiro.

Quando e se o tal do Desenrola sair, digamos que a dívida da D. Maria seja comprada por R$ 20 por alguma empresa. Esse desconto é o reconhecimento de que o liquidificador não valia R$ 100, mas apenas R$ 20. Essa diferença de R$ 80 nunca existiu, e havia sido somado ao PIB inadequadamente. A financeira vai reconhecer esse prejuízo em seu balanço, e isso vai subtrair do PIB.

Portanto, não é que a inadimplência esteja “travando o crescimento”. A inadimplência é apenas o sinal de que o crescimento que achávamos que existia era pura ilusão, só existia porque a D. Maria podia comprar o liquidificador sem ter renda suficiente. Ao limpar o nome da D. Maria, o Desenrola vai reconhecer o PIB que não existia no passado e, ao mesmo tempo, vai abrir espaço para novos financiamentos, produzindo novamente um PIB fictício, que será objeto de outro Desenrola no futuro.

Crescimento econômico é uma máquina que se move com segurança jurídica, capacitação da mão de obra e barreiras baixas à integração com economias mais desenvolvidas. O crédito serve apenas como uma graxa dessa engrenagem. Não adianta querer usar a graxa como combustível. O máximo que se vai conseguir é emperrar ainda mais a máquina.

O Desenrola está enrolado

No início de março, escrevi um post sobre o Desenrola, programa do governo de alívio das dívidas. Naquele post, comentava que o programa havia sido apresentado ao presidente, e que “só faltava” um “sistema” para implementá-lo. O secretário de Política Econômica até havia saído antes de a reunião com o presidente terminar, em busca de uma estimativa de tempo para a confecção do tal “sistema”, tal era a urgência da coisa.

Hoje, um mês depois, o ministro da Fazenda afirma que há um “problema operacional”: falta o tal “sistema” para que ”o credor encontre o devedor”.

Confesso que não entendi direito o problema. Um programa desses normalmente consiste em os bancos venderem os créditos podres com desconto, limpando assim seus balanços para voltarem a dar crédito. O Desenrola poderia ser uma espécie de ”fundo garantidor” para que os novos credores considerassem aquele crédito pago, e “desnegativassem” os devedores. Assim, se esses devedores não pagassem a dívida, o Tesouro cobriria. Esse mecanismo só funcionaria, claro, se houvesse previsão orçamentária, coisa que não há. Então, deve ser outra coisa, que envolve “o credor encontrar o devedor”, o que quer que isso signifique.

É de chorar o amadorismo dessa equipe do ministério da Fazenda. O Desenrola é só o exemplo mais pitoresco. A apresentação do arcabouço fiscal, em um powerpoint tosco e cheio de furos, é um outro exemplo, esse bem mais sério. Fico cá imaginando como seria essa equipe comandando o Plano Real, desde a concepção e implantação da URV até a transformação na nova moeda. Aliás, não quero nem imaginar.

Só falta o “sistema”

O senso de urgência desse governo me anima. O “desenho” do programa Desenrola, uma das promessas de campanha, foi levado ao presidente Lula ontem, apenas 65 dias após o início do mandato.

Para demonstrar que há muita urgência, o ministro da Fazenda nos informa que o secretário de Política Econômica até saiu no meio da reunião para dar uma previsão de quando um tal “sistema” ficaria pronto. Não, não dava para esperar o fim da reunião. É tanta pressa em resolver o problema dos endividados, que o secretário saiu antes de a reunião terminar para tratar do assunto do “sistema”. E o ministro da Fazenda fez questão de estressar esse ponto, para demonstrar a urgência que o assunto está merecendo por parte do governo.

Pelo visto, o secretário não voltou à reunião com a informação de quando o “sistema” ficará pronto. Pelo menos, a reportagem não traz essa informação. Ficamos todos ansiosos.

Lula já fez saber aos seus auxiliares que sem o tal “sistema”, nada feito. Ele não vai lançar um programa sem um “sistema”, só pra fazer marketing. Mas fiquem tranquilos os endividados do país. O secretário até saiu no meio da reunião para tratar do “sistema” e verificar a sua data de entrega. A coisa é urgente. Só falta o “sistema”.

Para não esquecer

Estou lendo o excelente livro de Marcos Mendes, “Para Não Esquecer: Políticas Públicas Que Empobrecem o Brasil”, em que o autor compila artigos de economistas com críticas qualificadas a várias políticas públicas adotadas nas últimas duas décadas.

Acabei de ler o capítulo sobre Fundos Garantidores de Crédito, que usa como exemplos o Fundo de Garantia da Construção Naval, que garantiu as operações da Sete Brasil, e o Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo, que garantiu as operações do FIES. Com relação a este último, o programa custou, entre 2010 e 2017, R$ 117 bilhões aos cofres públicos. E mais: o Relatório de Riscos Fiscais do Tesouro prevê, para este ano de 2023, custos de R$ 2 bilhões e subsídio implícito (dado pelo diferencial de taxas de juros) de R$ 4 bilhões. Isso porque o programa, nos moldes antigos, terminou em 2017! Ou seja, continuamos a pagar a conta ainda hoje.

A ideia do Desenrola é justamente essa: um fundo de garantia de crédito. Ou seja, substituir os bancos e financeiras que já fecharam a torneira do crédito. O mecanismo seria o seguinte: o banco ou financeira venderiam o crédito com desconto para um banco operador do Desenrola (provavelmente BB ou Caixa), e este passaria a cobrar a dívida descontada do devedor, a juros módicos. Se o devedor não pagar nem essa dívida com desconto, o preju seria coberto pelo Tesouro, por meio de um fundo garantidor de crédito.

Tem moral hazard para todos os gostos aqui. Primeiro, em relação aos bancos, que provavelmente aproveitariam para vender seus créditos podres por um preço maior do que obteriam em operações desse tipo no mercado. Sim, porque esse tipo de operação (venda de créditos com deságio) já existe. A entrada do governo neste mercado, com o viés político de “fazer a coisa funcionar” certamente distorceria os preços, para a alegria dos bancos e financeiras.

Outro moral hazard é dos próprios devedores. Ao ter suas dívidas praticamente perdoadas, provavelmente sua propensão a tomar empréstimos aumentaria, sem necessariamente ser acompanhada de um aumento de capacidade de pagá-los. Trata-se apenas de dar mais uma volta na roda da bicicleta, para voltar a emperrar logo mais à frente, quando a inadimplência dos novos empréstimos voltar a aumentar. Já prevejo um Desenrola II – A Missão.

O FIES, apesar de suas muitas falhas de implementação, ao menos tinha um fim nobre, qual seja, aumentar a capacitação profissional dos brasileiros. Este programa, Desenrola, nem isso. A ideia é manter a roda da economia girando a qualquer preço. E aqui vai a nota cômica da reportagem: a preocupação do ministro é com a contração do crédito por conta da Selic muito alta.

Ora, o BC aumenta a Selic justamente para contrair o crédito, esse é um dos efeitos esperados para esfriar a economia e, assim, trazer a inflação de volta para a meta. Ao, candidamente, afirmar que quer expandir o crédito, o ministro da Fazenda admite que está remando na direção contrária ao da autoridade monetária. O Desenrola, ao onerar o Tesouro, significará expansão fiscal, o que poderia levar o BC a manter a taxa de juros alta durante mais tempo.

Daqui a alguns anos, quando Marcos Mendes estiver compilando o segundo volume do seu “Para Não Esquecer”, certamente o Desenrola estará ocupando um lugar de honra.