Corre uma disputa de narrativas entre economistas liberais e desenvolvimentistas a respeito das políticas de incentivos governamentais à indústria. Muito espertamente, os desenvolvimentistas estão colocando a discussão no campo temporal, identificando a “nova política industrial” como boa por ser moderna, enquanto os críticos estariam cheirando a naftalina, só faltando usarem perucas do século XVIII a lá Adam Smith. Podem notar: não é só Mercadante que se refere aos críticos como “anacrônicos”. Toda a turba dos desenvolvimentistas se refere aos liberais, de uma forma ou de outra, como “atrasados”. Eles estariam na vanguarda, fazendo políticas que estão agora mesmo sendo adotadas pelos países mais avançados.
Esse tipo de narrativa só serve para desviar o foco do essencial. Não importa realmente se uma política é nova ou velha, mas se funciona ou não. E não é pelo fato de Estados Unidos ou os europeus estarem agora inundando as suas economias de subsídios que torna esse tipo de política correta. O curioso é que os desenvolvimentistas fazem uma espécie de cherry picking de políticas dos países mais avançados, escolhendo somente aquelas que lhes interessam para corroborar as suas teses. Quando se tratava, por exemplo, das políticas de redução de impostos de Reagan e Trump, da austeridade fiscal de Clinton ou da desregulamentação de Bush, imitar tais políticas significava ser “subserviente a uma cartilha neoliberal”.
A questão não é se a política é nova ou velha, ou se está sendo adotada por outros países. A verdadeira questão é se a política funciona ou não. Ao se referir às políticas de subsídios como “coisa velha”, os liberais não querem dizer que tudo o que seja velho não funciona. O ponto é que essas políticas já foram testadas no passado e foram um fiasco, porque não contavam com os elementos necessários para funcionarem. Essa nova edição é mais do mesmo, razão pela qual não funcionará novamente.
A atividade de um banco de desenvolvimento se justifica em dois casos: 1) países onde o mercado de capitais não consegue suprir as necessidades de financiamento das empresas e/ou 2) fomento de atividades cujo retorno do capital seja baixo mas que gere externalidades positivas que compensem o custo de empréstimos subsidiados para a sociedade.
O Brasil claramente não se encaixa no primeiro caso. Nosso mercado de capitais é desenvolvido o suficiente para atender a demanda por financiamento das empresas. Além disso, o Brasil não tem controle de capitais, o que permite às empresas acessar livremente o mercado de capitais externo. Portanto, sob este aspecto, um banco de desenvolvimento é dispensável no Brasil.
Resta o segundo caso. E é aí que a porca torce o rabo. É muito difícil medir externalidades, a ponto de cravar a conveniência de um financiamento subsidiado. Um caso clássico de externalidade positiva são os investimentos em energia limpa, que não param em pé sem subsídios, mas que supostamente compensam o seu custo fiscal com menos catástrofes climáticas no futuro. Esta conta é mais uma questão de fé do que de economia, assim como quase tudo o que se refere a externalidades.
Mas, vamos por um momento admitir que é possível obter externalidades positivas. Aparentemente não é este o objetivo do BNDES. Em entrevista de hoje, o diretor do BNDES, José Luís Gordon, afirma que o banco abrirá o seu balcão para qualquer empresa que venha com um “bom projeto”. Sua justificativa poderia ser a mesma que qualquer um de nós daria em uma mesa de bar: “os empregos gerados pela indústria tirarão as pessoas dos programas sociais”. Explicação simplória, e que ignora o custo de cada um desses empregos gerados, conta que ninguém nos governos do PT faz muita questão de fazer. Aliás, Lula sempre justificou o Bolsa Família como sendo um fomento para o crescimento econômico, pois “o pobre vai comprar na vendinha, que por sua vez vai precisar comprar da indústria e assim por diante, girando a roda da economia”. No mínimo, deveríamos medir qual desses dois estímulos é mais eficaz.
Mas o ponto não é esse. A questão é que, se é para atender “todo bom projeto que vier”, por que raios precisamos de um BNDES? Lembre-se, temos um mercado de capitais que pode atender toda a demanda por financiamento. A única justificativa chama-se SUBSÍDIO.
Ninguém disse nada por enquanto, mas o próximo passo será rever a TLP, a taxa de juros cobrada nos empréstimos pelo BNDES. Hoje, essa taxa segue mais ou menos as taxas de juros do mercado, mudança feita pelo governo Temer depois do desastre fiscal do governo Dilma. É questão de tempo para que se coloque em discussão a TLP, senão o alcance do programa ficará muito limitado. Sem dinheiro barato, a neoindustrialização não decola. Governo e empresários sabem disso, e o único entrave é o maldito mercado financeiro, que insiste em medir o risco de crédito de todo esse arranjo.
Esses R$ 300 bilhões serão, em última instância, fornecidos pelo mercado em troca de dívida pública. Ou seja, ao invés de emprestar para as empresas diretamente, o sistema financeiro emprestará para o governo, que repassará para o BNDES, que emprestará para as empresas. No fim, teremos mais dívida pública, aumentando as taxas de juros para quem não teve a sorte de ter o seu “bom projeto” escolhido pelo BNDES. Já vimos esse filme antes.
Mercadante desafia: “por que a China é o país que mais cresceu nos últimos 40 anos?”, subentendo-se que foi pela ação decisiva do Estado chinês.
Que a China tem uma economia dirigida pelo Estado não há dúvida. O problema dessa correlação é ignorar todo o resto. A China foi palco do maior processo de urbanização da história humana. Essa migração dos campos para as cidades em poucas décadas proporcionou um aumento de produtividade excepcional, o que permitiu o aumento do PIB potencial do país. O mesmo fenômeno ocorreu no Brasil entre as décadas de 30 e 70, o que fez do Brasil um dos países de maior crescimento do mundo no período (sim, já fomos a China). Além disso, com a política do “filho único”, a China antecipou o bônus demográfico, potencializando os ganhos de produtividade. Por fim, a China investiu pesado em formação de sua mão de obra, o que se reflete, por exemplo, em seus resultados no PISA.
A comparação com os EUA é ainda mais risível. A maior e mais produtiva economia do planeta pode brincar de subsídios por um certo tempo. Afinal, os EUA imprimem o dólar, o que lhes dá algum fôlego. Aqui, como na China, os estímulos governamentais são concedidos em um ambiente propício para o crescimento econômico. E, no caso dos EUA, estão longe de serem os responsáveis pelo sucesso da economia norte-americana.
Mercadante olha apenas para os subsídios e “esquece” de todo o resto. Ele acha que basta dar capital barato para as empresas e a mágica acontecerá. Já tentamos isso (R$ 440 bilhões em 6 anos), resultando na maior recessão da história brasileira. Mas sabe como é, agora vamos fazer “do modo certo”, com o auxílio de luxo de uma economista italiana. Dessa vez, nossa debacle será de grife.
Mariana Mazzucato é a nova musa dos economistas desenvolvimentistas brasileiros. Depois de décadas do domínio inconteste de Maria da Conceição Tavares, e preenchendo o vácuo que a professora da Unicamp deixou, a professora italiana vem dar um novo brilho às velhas ideias de sempre.
Mazzucato embala a sua teoria com o papel de embrulho do conceito de “missão”. O Estado seria o indutor do desenvolvimento ao determinar “missões” em torno das quais os agentes econômicos trabalhariam harmoniosamente, alavancando o crescimento econômico. Neste artigo no Valor (e em outro que já tinha lido), Mazzucato cita como exemplo a “missão” de colocar um homem na Lua, dada por John Kennedy em 1963, e que levou ao desenvolvimento das muitas tecnologias necessárias para o bom termo do empreendimento. Assim, um “pequeno” investimento do Estado (via NASA) alavancou muitos setores econômicos, multiplicando em muitas vezes a sua potência.
A ideia, como todas as ideias às quais se agregam uma narrativa ex-post, é muito sedutora. O problema é achar que o investimento estatal em uma “missão” é condição suficiente para que a mágica aconteça. É o mesmo que ver alguém riscando um fósforo e colocando fogo em um tanque de combustível, e tentar fazer o mesmo com um tanque de água. O ambiente empresarial e acadêmico dos EUA é um tanque de combustível, pronto a responder a qualquer estímulo, enquanto o ambiente brasileiro é um tanque de água. Pode riscar quantos fósforos quiser, a água não vai pegar fogo.
Vou listar aqui alguns problemas que a indústria enfrenta, e que não há “missão” que dê jeito:
– carga tributária que incide principalmente sobre o setor. A reforma tributária vai melhorar isso, mas vai levar alguns anos de transição.
– complexidade tributária (a reforma vai ajudar aqui também)
– insegurança jurídica, apesar do que possa dizer o presidente do STF
– ambiente de corrupção em vários níveis, sem punição
– protecionismo, que dificulta a atualização tecnológica
– falta de mão-de-obra bem formada
Além disso, a professora sugere usar as compras governamentais para “induzir” o crescimento. A fórmula é batida: o governo privilegiaria a compra de produtos nacionais, beneficiando o empresário local em detrimento da eficiência dos seus gastos. Como isso contribuiria para o crescimento permanece um mistério.
Enfim, as ideias da professora Mazzucato soam como música aos ouvidos de nossos burocratas e políticos. Afinal, ela passa a impressão de que finalmente encontramos a fórmula que garantirá a eficiência dos investimentos públicos. Nos nossos vários ciclos de planejamento central e investimento estatal (JK, ditadura militar, Lula/Dilma), a coisa começou com festa e terminou em um desastre profundo de recessão e dívidas impagáveis. Agora não! Agora temos “missões”, que é o que faltou nos ciclos anteriores. Assim é se assim lhe parece.
Não foi à toa que a bolsa caiu hoje, na contramão do mundo. Só não é pior porque, como sabemos, este é o governo Circo de Pulgas, em que se anuncia o maior espetáculo da Terra para depois entregar algo minúsculo e que não vai fazer muita diferença, a não ser para os amigos de sempre.
O crescimento econômico está ao alcance da mão, sua fórmula é conhecida, basta nos livrarmos de amarras ideológicas para a sua implementação. Esta é a tese dos professores da FEA-USP autores deste artigo. As amarras ideológicas seriam, grosso, modo, o Consenso de Washington, que preconizaria, segundo os autores, taxas de juros altas para combater a inflação e equilíbrio fiscal. E qual a fórmula defendida pelos professores? Do ponto de vista macroeconômico, taxas de juros baixas e câmbio administrado. Do ponto de vista microeconômico, aumento do crédito via aumento da competitividade do sistema financeiro e retomada da capacidade de investimento do Estado. Tudo isso levaria a um modelo de exportação de manufaturados, a chave para a retomada do crescimento. Ouvi a palavra “neoindustrialização” aí?
Vamos nos ater às recomendações macroeconômicas dos professores. Para entender seus efeitos, vamos lembrar da “trindade impossível”, um modelo proposto pelo prêmio Nobel Robert Mundell. Segundo este modelo, as seguintes três coisas são impossíveis de acontecer ao mesmo tempo:
– Fluxo livre de capitais
– Câmbio fixo
– Política monetária independente
Volte lá na proposta dos professores. Note que eles propõem câmbio fixo (para manter a indústria competitiva no mercado global) e política monetária independente (para fixar a taxa de juros em níveis “baixos”). Portanto, essa proposta não funciona se o fluxo de capitais for livre. Essa é a parte feia da proposta, e que os professores não mostram. Em outras palavras, para seguir este modelo, o Brasil precisaria fechar suas fronteiras para a saída do capital, tanto estrangeiro quanto dos nacionais.
É fácil de entender porquê: com juros baixos, inflação alta e câmbio fixo, que idiota manteria seu dinheiro no país? Quer um exemplo prático, que está acontecendo agora, enquanto falamos aqui? É só dar uma olhada para o nosso vizinho ao sul, que enfrentará eleições nesse fim de semana em meio a uma grave crise macroeconômica. Câmbio fixo, juros baixos, Estado investidor, o pacote completo.
Mas claro, essa políticas só não foram adotadas por “birra ideológica”, mesmo depois de mais de uma década de governos do PT.
PS.: existe um fetiche pela “exportação de manufaturados”. Austrália e Nova Zelândia exportam basicamente commodities, e são países desenvolvidos. O desenvolvimento de um país se faz com instituições desenvolvidas, e não pela exportação de parafusos.
Um diretor da CNI e um diretor do BNDES nos oferecem um artigo sobre o tema candente do momento: neoindustrialização. Fui ler, já sabendo o que encontraria, e não me decepcionei. Em artigo de 5.000 caracteres, os autores conseguem elencar apenas duas ideias que, teoricamente, nos levarão ao próximo patamar: o reestabelecimento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Nacional, ligado à presidência da República, e novas linhas subsidiadas do BNDES. (Suspiro).
Para preparar o terreno, os articulistas nos informam que EUA e Europa recém aprovaram subsídios para fomentar a indústria de semicondutores em suas regiões. Ora, se eles estão fazendo, o índio aqui também pode fazer. É como o pobretão que vê os ricaços jogando golfe, e conclui que, para ser rico, precisa comprar o equipamento e treinar umas tacadas. Quando, na verdade, é o oposto: primeiro fica rico, depois vai jogar golfe. Subsídios para fábricas de semicondutores é uma política cara, que diminui a produtividade das economias desenvolvidas, e só está sendo feito por razões geopolíticas, que justificam seu custo.
A pergunta é: se não foi o golfe, o que levou as economias desenvolvidas a terem indústrias pujantes? O que levou a Coreia, e agora a China, a terem indústrias pujantes? Bem, a lista do que é preciso ser feito para chegar lá é de amplo conhecimento, mas nada disso aparece no artigo. Aliás, pelo contrário. Por exemplo, sabemos que, para aumentar a produtividade da indústria, é necessário abrir para a importação de maquinário. Pois bem, uma das linhas subsidiadas do BNDES citadas é dedicada a financiar a aquisição de maquinário NACIONAL. Ou seja, na direção oposta ao que é preciso ser feito.
Enfim, esse tipo de miopia foi a responsável pelo encolhimento da indústria brasileira. Ao que tudo indica, ainda estaremos falando de desindustrialização daqui a 20 anos.
O Estadão nos traz a tradução de uma reportagem da AP, sobre as dívidas de países pobres com a China. Não é a primeira matéria que leio sobre o assunto. O foco é no garrote chinês, que se utiliza de métodos escusos, como empresas de fachada, para esconder uma parte da dívida. Mas gostaria de chamar a atenção para o outro lado da questão, os países que tomaram a decisão de se endividarem.
Invariavelmente, as dívidas foram tomadas para a construção de infraestrutura. A reportagem cita portos, aeroportos, ferrovias. É o típico investimento que os economistas desenvolvimentistas amam de paixão, pois, em tese, formam a base para o crescimento futuro da economia. No entanto, por algum estranho motivo, o crescimento não veio, e sobraram os juros e a amortização da dívida. Com isso, alguns países tiveram, inclusive, que parar de pagar salários dos funcionários públicos e aposentadorias.
O que aconteceu? A reportagem nos dá algumas pistas. Por exemplo, um aeroporto construído em Sri Lanka, na cidade do presidente, está às moscas, com a sua pista de pousa tomada por elefantes. Este é um caso prosaico, mas longe de ser único. Representa a malversação de recursos em obras de infraestrutura sem base em lógica econômica, apenas para atender necessidades políticas. Alô refinaria Abreu e Lima, aquele abraço!
Esses países foram sequestrados por elites extrativistas, que revestem suas ambições pessoais com a capa de “investimentos para o desenvolvimento econômico”. O resultado são empreendimentos sem a mínima lógica econômica, com o objetivo de faturarem politicamente a construção de “grandes obras” e se locupletarem através de esquemas de corrupção. A matéria não chega a citar esse último aspecto, que certamente está presente.
Investimentos estatais em infraestrutura são sempre ruins? De maneira alguma. Está aí Itaipu como contraexemplo. Mas, para cada Itaipu, há dez Transamazônicas que sugam recursos sem a correspondente contribuição para o crescimento econômico. O resultado é estagnação econômica, um roteiro que conhecemos bem.
Hoje, o Brasil sofre sob o peso de sua dívida. Não há recursos para nada, a não ser para pagar aposentadorias, funcionários públicos e juros da dívida. No entanto, ao contrário dos países reféns da China, o Brasil é refém dos seus próprios “rentistas”, o que pode passar a falsa impressão de que está em uma situação melhor. Isso é uma ilusão. Credor é credor, qualquer que seja a sua cor. O fato de dever em sua própria moeda não alivia em nada, a não ser pela alternativa de poder dar calote via inflação.
O presidente e o vice-presidente da República fizeram publicar um artigo no Estadão de hoje. Trata-se de importante peça, que deve ser lida com atenção. Muito se reclamou que Lula não explicitara seu programa econômico antes da eleição. Pouco menos de 5 meses após a posse, aí está. Neste artigo, Lula descreve o que de mais importante pretende fazer na seara econômica durante o seu governo. Essa é a boa notícia. A má, é que, depois de ler, não me ocorre outro ditado do que “a ignorância é uma benção”.
Optei por comentar trecho por trecho, pois trata-se de artigo em que o presidente e o vice-presidente desfilam, parágrafo após parágrafo, todas as suas várias ideias equivocadas sobre como funciona a economia.
O primeiro parágrafo já começa com uma imprecisão e uma mistificação. A imprecisão está no uso da palavra “anos” para caracterizar o período de encolhimento da indústria no PIB. A palavra correta seria “décadas”. O pico da participação da indústria no PIB foi na década de 80. A partir de então, só fez diminuir, inclusive durante os “anos de ouro” do governo PT, em que abundaram “políticas de incentivo à indústria”, as mesmas que estão sendo apresentadas agora como grande novidade. A mistificação é o termo “emprego de qualidade”. Aqui vou fazer uma pequena digressão.
Quando se defende a indústria por criar “empregos de qualidade”, ou se demoniza os aplicativos por “precarizar os empregos”, o foco está na DEMANDA por mão de obra. O raciocínio é sempre esse: precisamos criar demanda por “empregados de qualidade” e suprimir a demanda por “empregados precários”. O problema, no entanto, está na OFERTA de mão de obra. O Brasil simplesmente não cria suficiente mão de obra de qualidade. Pergunte a qualquer empresário a dificuldade de se encontrar mão de obra com a qualificação necessária, principalmente em áreas de exatas. Formamos psicólogos, advogados e sociólogos a rodo, enquanto faltam engenheiros e técnicos. Quando, por outro lado, empresas como o Uber oferecem uma opção de fonte de renda para essas pessoas sem qualificação, são demonizadas, como se fossem elas as culpadas pela vergonhosa falta de qualificação da nossa mão de obra. Nunca se discute produtividade da mão de obra, mas somente os seus “direitos sociais”, que serão pagos por alguém, independentemente da geração de valor do trabalho.
Continuemos. A seguir, os autores afirmam, corretamente, que o Brasil está perdendo a corrida da sofisticação tecnológica, e citam o exemplo da China, que fez o caminho inverso. Seria interessante que explorassem um pouco mais esse exemplo. Lula/Alckmin afirmam que a China foi capaz de levantar centenas de milhões de trabalhadores da pobreza. O que eles não contam é que o trabalhador chinês está longe, muito longe, do tal “emprego de qualidade” que eles sonham para o brasileiro. Eles têm uma fração dos “direitos sociais” com que os trabalhadores daqui contam, além de enfrentarem jornadas de trabalho que fariam um entregador do iFood parecer um bon vivant. Não tem dúvida de que o trabalhador chinês hoje está muito melhor do que há 3 ou 4 décadas. Mas isso aconteceu também no Brasil, entre as décadas de 30 e 70 do século passado, quando houve uma urbanização intensa do país. O próximo passo é que é o complicado, que é a formação dessa mão de obra. Nisso a China se saiu muito melhor, basta ver os exames internacionais de proficiência. Mas, certamente, Lula olha para a “política industrial” da China, não para a sua “política social” ou mesmo sua “política educacional”. Como se uma coisa prescindisse das outras.
A seguir, nossa dupla dinâmica entra na seara que mais lhes interessa, que é montar o seu país no Sim City. Então, devemos ser “criteriosos” em estimular que setores em que já tenhamos know how caminhem para produzir mais “valor adicionado”. Acho graça quando ouço esse termo, como se fosse algo mágico, uma espécie de varinha de condão, e não o resultado de muito capital de risco e mão de obra especializada. Claro, e não poderia deixar de haver a menção ao “conteúdo nacional”, como “até” os países desenvolvidos estão fazendo. Ou seja, continuaremos a ser um país fechado, reinventando a roda com nossos parcos recursos.
Mas é a seguir que Lula/Alckmin revelam o plano em todo o seu esplendor. Um tal de Conselho Nacional de Desenvolvimento Nacional vai dar “missões” para a indústria brasileira! Uau! Não consegui deixar de lembrar do agente 86, recebendo uma missão do Controle. Como pode, depois de décadas de “políticas industriais” que alguém ainda defenda que o governo pode dirigir investimentos produtivos de maneira eficiente. E já sabemos que há um programa novo de incentivos na praça, o Padis, para estimular a produção de semicondutores, hoje uma commodity. Quando vejo uma nova sigla, já sei que, daqui a alguns anos, será a plaquinha na porta de um armário onde estará guardado um esqueleto em decomposição. Não falha.
Ah, e tem a política comercial também. Porque, sabiamente, Lula&Alckmin nos informam que, além de produzir, precisa vender. Vender para quem? Para quem tem dinheiro? Naaaao! Para os pés rapados dos nossos vizinhos e da África. Essa é a “nova política comercial”. Que, claro, deverá envolver “linhas de financiamento” do BNDES. Afinal, como você vende para alguém que não tem dinheiro? Outro dia, comentei aqui que a China está passando por problemas de calote, principalmente na África. Queremos tomar o lugar dos companheiros chineses nessa missão.
Em seguida, vem o mambo jambo dos “investimentos verdes”. O Brasil estaria posicionado para receber investimentos porque tem “energia limpa”. É a versão moderna do “aqui, em se plantando tudo dá”, de Pero Vaz de Caminha. Todo dirigente brasileiro, e uma parcela relevante do povo brasileiro, acredita piamente que as nossas “riquezas naturais” (e nossa matriz de energia é limpa porque fomos abençoados com uma quantidade imensa de rios, sol abundante e ventos) são suficientes para nos fazer ricos. Segundo Lula&Alckmin, ter “energia limpa” seria condição suficiente para atrair investimentos, quando, na verdade, é condição apenas necessária, e talvez nem isso.
Para o agronegócio, haverá um Plano Nacional de Fertilizantes (PNF, outra sigla). Não custa lembrar que as maiores minas de produção de potássio estão no Amazonas, perto de terras indígenas. Mais um embate titânico no governo à vista?
Quase no final, como quem havia esquecido o assunto e foi lembrado, a dupla Lula&Alckmin faz menção a “medidas horizontais”, citando a reforma tributária como o elixir mágico que curará a sua unha encravada e todos os males da economia brasileira. É nesse parágrafo que os autores mencionam, pela única vez em todo o artigo, o “custo Brasil”. Um único parágrafo para endereçar o que realmente é o problema brasileiro e deveria ser o foco e o guia para todo o resto. É sintomático.
Claro, não poderia deixar de haver menção à “redução do custo do capital”, deixando claro que o governo já fez a sua parte com a aprovação do novo arcabouço fiscal. Só pode ser piada, não é possível que acreditem que esse arremedo de teto de gastos seja suficiente para reduzir o alto custo de capital no Brasil, que tem várias origens, sendo a insegurança jurídica a não menor delas. Óbvio que Lula&Alckmin querem jogar a bomba no colo do BC, nesse caso.
Ah sim, e tem o “investimento nas pessoas”. Afinal, como dissemos acima, sem mão de obra qualificada, nada feito. E quais são esses investimentos? Bolsa Família e aumento do salário mínimo! Não sei se choro de rir ou choro de chorar mesmo.
O último parágrafo encerra com a tese inicial, para que ninguém tenha dúvida do que estão falando: a indústria será o condutor da política econômica. O Brasil retomará a linha de produção de esqueletos e zumbis que ainda hoje assombram as contas públicas sem terem movido um milímetro sequer o ponteiro da industrialização brasileira. Está aí, escrito, preto no branco, para que ninguém possa alegar ignorância depois.
Entrevista de página inteira, hoje, no Valor Econômico, do embaixador da Argentina no Brasil e pré-candidato à presidência, Daniel Scioli. Destaco abaixo dois trechos de interesse.
Antes de comentar, devo dizer que, ao ler a entrevista, não pude deixar de lembrar o caso de um grande amigo meu, sempre, sempre, sempre em dificuldades financeiras. Esse meu amigo sempre está envolvido em “grandes negócios”, que vão dar a receita mais do que suficiente para ele sair da enrascada em que se encontra. É um eterno otimista, o pote de ouro está ali na esquina, sem risco. Vive do favor de amigos e da família (que é abastada), e só a muito custo corta despesas incompatíveis com sua renda. Essa é a Argentina de Scioli.
No primeiro trecho, o embaixador afirma que não há “nenhum risco” de as empresas argentinas não conseguirem pagar pelas importações de produtos brasileiros, pois “ano que vem” a safra será maravilhosa e todos os problemas do país, que são apenas conjunturais, terão ficado para trás. É ou não é o meu amigo? Cita o exemplo da China, que tem aceitado yuans no comércio. Como se o problema fosse a moeda em que a importação é paga, e não o risco de não arrumar yuans (ou dólares, ou euros ou reais ou qualquer outra moeda que não seja o peso argentino) para pagar pelas importações.
No segundo, Scioli dá a sua receita para a Argentina sair da crise: “desenvolvimento”. O crescimento econômico dará jeito em tudo, inclusive na crise fiscal, pois o aumento da receita evitará o corte de “direitos sociais”. Novamente, temos o meu amigo dizendo que a solução para os seus problemas é “fechar o próximo grande negócio”, e tudo vai dar certo.
A Argentina é problema dos argentinos. O mundo é grande, e se nossos empresários tiverem dificuldades para vender seus produtos para os nossos vizinhos, certamente encontrarão outros mercados neste vasto mundo. O que realmente me preocupa é que essas ideias de Scioli são exatamente as mesmas que agora nos presidem, a nós, brasileiros. A diferença é que estamos com a casa mais bem arrumada, então ainda demorará para que este tipo de mentalidade nos leve ao poço onde hoje estão los hermanos. Mas o caminho é este, sem dúvida: disciplina fiscal frouxa, política monetária frouxa, desenvolvimento via incentivos do Estado ao invés de reformas microeconômicas. Não vamos virar uma Argentina amanhã. Mas o caminho é este.
Para quem quiser entender o que nos espera no Banco Central e, de resto, no governo Lula 3, recomendo ouvir este podcast de set/2021, em que Gabriel Galipolo é o entrevistado. Fica claro para todos qual o mindset do futuro presidente do BC.
Para quem não tiver estômago, resumo abaixo em 3 pontos:
1) Somos reféns de um pensamento único na economia, em que os economistas confiam cegamente em modelos preditivos.
2) A economia não é como a física, os resultados dependem de como as pessoas se organizam para construir o seu futuro. O passado não é capaz de predizer o futuro, dado que as pessoas podem se organizar para fazer o futuro diferente, por isso os modelos econômicos não funcionam.
3) Depois de desconstruir todo o arcabouço econômico sobre o qual funcionam as decisões dos principais bancos centrais e governos do mundo, Galipolo coloca no lugar um prosaico “o gasto de um é a renda de outro”, defendendo que os governos precisam gastar para criar demanda e, assim, fomentar o crescimento econômico.
Sobre o primeiro ponto, Galipolo defende uma espécie de “ciência econômica alternativa”, como se a economia fosse uma ciência menor, que se pode discutir em uma mesa de bar, e não um assunto que também precisa ser tratado com rigor científico. Isso a que Galipolo chama de “sequestro” é, na verdade, o resultado de décadas de artigos que tiveram que passar pelo crivo de pares, em um processo altamente seletivo. Galipolo, no fundo, nega a aplicação do método científico à economia.
Sobre o segundo ponto, é claro que a economia não é como a física. Aliás, Galipolo cita um episódio da Netflix em que cientistas (entre os quais Stephen Hawking) fazem uma espécie de “votação” sobre qual seria a melhor imagem de um buraco negro. Ele usa este exemplo para afirmar que nem a física é assim, tão certa, que depende de uma espécie de “consenso social”. Gzuis! Como dizia, claro que a economia não é como a física, trata-se de uma ciência humana. Mas não deixa de ter suas regras, algumas coisas funcionam, outras não. Dizer que o resultado das políticas econômicas depende do que “nós” quisermos que seja traduz um voluntarismo que não costuma dar bom resultado. Tivemos uma presidenta que acreditava piamente que poderia dobrar as regras da economia com a sua vontade, e deu no que deu.
Finalmente, o terceiro ponto é o de sempre: o governo precisa gastar, senão não haverá demanda. Como se o governo fosse o único agente que pudesse “criar” demanda. Na verdade, como sabemos, quando o governo “cria” demanda, expulsa a demanda privada, em um processo chamado de “crowding out”. No final, ficamos todos mais pobres, porque, para criar demanda, o governo precisa taxar hoje (impostos) ou taxar no futuro (dívida), diminuindo a renda disponível na sociedade.
Enfim, está aí. Galipolo tem sido bastante cuidadoso em suas declarações, de modo a não levantar suspeitas. Seu passado, no entanto, não o nega. Galipolo, além de outros que o seguirão, tomarão conta do BC e implementarão as suas “ideias”. Por exemplo, a de que os modelos de predição de inflação são inúteis, de que o próprio sistema de metas é inútil, e o que importa é praticar uma taxa de juros que permita acelerar o crescimento econômico. Curioso para ver o resultado desse experimento.