Casa sobre areia

Gosto de pensar em crescimento econômico como criação de valor. O PIB de cada país é calculado com base no valor agregado de cada atividade: depois de descontados todos os custos de produção daquele bem ou serviço, o que sobra é o valor agregado, o Produto Interno Bruto.

O PIB é calculado somando-se o valor, em reais, dos produtos e serviços finais, comprados pelos consumidores. O próprio IBGE, aqui, explica de maneira didática como é calculado o PIB. O exemplo dado pelo Instituto é o do pão: se o trigo foi vendido a R$ 100, a farinha de trigo a R$ 200 e o pão a R$ 300, o PIB terá sido de R$ 300, que é o valor pago pelo consumidor final.

No entanto, como disse acima, gosto de pensar no PIB como valor agregado em cada uma dessas etapas. Vamos imaginar, apenas para fins didáticos, que o produtor de trigo não tenha tido custo na sua produção. Seu lucro foi, então, de R$ 100. O produtor de farinha de trigo comprou o trigo a R$ 100 e vendeu a farinha a R$ 200, tendo também um lucro de R$ 100. E o produtor de pão comprou a farinha de trigo a R$ 200 e vendeu o pão a R$ 300, tendo lucro de R$ 100. A soma dos lucros em cada passo (do produtor de trigo, do produtor da farinha e do produtor de pão, R$ 100 em cada etapa) perfazem o total do PIB.

Observe que este “valor agregado” em cada etapa está dividido entre lucro para o capitalista e salários. Funciona como se os empregados de cada empresa fossem, eles mesmos, capitalistas de si mesmos, obtendo “lucro” do aluguel de sua mão de obra. Chamamos esse “lucro” de salário. Assim, esses R$ 300 obtidos na venda do pão não são exatamente a soma dos lucros dos capitalistas ao longo do processo. Inclui também os salários pagos à mão-de-obra utilizada em cada etapa.

Ah, e o PIB inclui também os impostos. Afinal, é preciso que todo esse processo remunere também o nosso “sócio oculto”.

Então, como estava dizendo, o crescimento econômico, o aumento do PIB, é, no final do dia, um processo de agregação de valor. Pode não parecer para você, que é um consumidor insaciável, mas a coisa mais difícil que existe no mundo é tirar dinheiro do bolso de alguém. Este alguém só vai tirar dinheiro do bolso para comprar algo que lhe agregue valor. Este contínuo esforço para agregar valor ao longo de todo o processo produtivo até chegar no consumidor final é que produz o crescimento econômico. Por definição.

Este conceito é de extrema importância. Muitas vezes nos envolvemos em debates sobre o papel do Estado na economia, sobre como gastos do governo poderiam estimular o crescimento econômico e esquecemos esta verdade básica: não existe crescimento econômico permanente sem agregação de valor.

Hoje, o Estadão traz uma entrevista com o colunista do Financial Times, Martin Sandbu, que defende a ideia (e não está sozinho) de um novo consenso se formando, e que se destina a substituir o chamado “Consenso de Washington”. Neste “novo consenso”, o Estado tem um papel central no desenvolvimento econômico, ao investir em áreas ou em momentos que não interessam à iniciativa privada, mesmo que, para isso, tenham que aumentar as suas dívidas.

Martin Sadbu dá o exemplo da austeridade fiscal que corta investimentos em saúde. Investir em saúde resulta em uma mão-de-obra mais produtiva, o que impulsiona o crescimento econômico. Mas isto estaria sendo negligenciado pelas políticas de austeridade. Parece ser um bom argumento. Mas, vejamos.

Digamos que o governo invista 1.000 moedas em “saúde”. Este termo genérico, “saúde”, envolve escolhas. Muitas escolhas. O que é “saúde”? Mais ambulâncias? Mais hospitais? Salários melhores para os médicos e enfermeiros? Financiamento de um seguro-saúde? Como fazer com que essas 1.000 moedas sejam investidas de modo a realmente agregar valor para a economia como um todo? Lembre-se sempre: estamos procurando políticas que fomentam o crescimento econômico, e o crescimento econômico se alcança, no longo prazo, somente através da agregação de valor.

Digamos que o governo, que opera os recursos do Estado, tome as decisões corretas, maximizando o valor agregado do investimento em saúde. Ainda cabe a questão: este teria sido o melhor investimento para este dinheiro, tendo como objetivo o crescimento econômico? Note que não estamos fazendo considerações de outras ordens, como justiça ou distribuição de renda. A discussão, da forma como está colocada, se refere ao estímulo ao crescimento econômico. Voltando: terá sido este o melhor investimento para as 1.000 moedas? Será que se estas 1.000 moedas permanecessem nas mãos da iniciativa privada, este dinheiro não poderia ser melhor investido? Quem disse que o investimento em saúde é a melhor alternativa para agregar valor para a sociedade como um todo?

Para quem se choca com esse tipo de discussão (sim, eu sei, saúde é algo sério, discutir economicamente o custo de uma vida humana é chocante), vamos usar outro exemplo, aliás muito em voga: o investimento em infraestrutura.

Biden está patrocinando um megapacote de investimentos em infraestrutura. Estes investimentos poderiam ser feitos pela iniciativa privada, desde que o preço cobrado dos usuários permitisse remunerar o capital, tanto financeiro quanto humano. Lembre-se, esta é a medida de criação de valor. Como o Estado vai investir, depreende-se de que se trata de obras que não agregam valor suficiente para os seus usuários diretos, aqueles que deveriam pagar pelo uso. Portanto, o governo faz uma vaquinha, passando o chapéu entre todos os cidadãos, usuários ou não daqueles serviços, para pagar pela sua construção e manutenção. A ideia é de que aquele investimento agrega valor para todos, mesmo para aqueles que não usam diretamente os serviços. Uma estrada, por exemplo: se fosse cobrado pedágio, este custo seria cobrado dos consumidores finais dos produtos que passam por esta estrada. Como estes consumidores não estão dispostos a pagar por isso (não reconhecem o valor agregado), outros consumidores que não consomem estes produtos são chamados a pagar por eles. De alguma forma, estes outros consumidores estariam sendo, teoricamente, beneficiados pelo fato de estarem pagando, indiretamente, por produtos que não estão consumindo. Essa história de “externalidade positiva” é quase um ato de fé.

Veja: não estou negando que gastos governamentais estimulem o crescimento econômico no curto prazo. Todas aquelas obras, pessoas contratadas, gente trabalhando, e depois uma bela obra sendo utilizada, tudo isso “faz a roda da economia girar”, como dizem. O problema não é o curto prazo. O problema é o longo prazo.

Keynes, em resposta à crítica de que a solução de gastos públicos contra o desemprego levaria à inflação no longo prazo, dizia que, no longo prazo, estaríamos todos mortos. No entanto, esta afirmação de Keynes somente seria verdade se um meteoro atingisse a Terra extinguindo a humanidade. Neste caso, poderíamos gastar como se não houvesse amanhã, dado que não haveria mesmo. A verdade é que nem todos estaremos mortos. A dívida pública é uma transferência de renda intergeracional. A nossa geração estará morta no longo prazo, mas a dívida ficará para os nossos filhos e netos. Toda dívida é um saque a descoberto sobre a geração futura.

No longo prazo, é preciso que os investimentos feitos pelo governo agreguem valor. Somente dessa maneira o crescimento econômico será sustentável. Senão, é só fogo de palha, que se extingue rapidamente, deixando não mais que cinzas. Vejamos o que nos mostra a história.

O gráfico abaixo mostra uma série longa (desde 1947) de crescimento do PIB no Brasil e investimento público. As barras vermelhas são o crescimento do PIB em cada ano (escala da esquerda), enquanto a linha azul mostra o investimento público como percentual do PIB (escala da direita).

Podemos observar três momentos de elevação abrupta do investimento público. O primeiro não tem a ver com investimentos produtivos, mas com a construção de Brasília: os investimentos públicos passaram de 3% do PIB em 1956 para 5,5% do PIB em 1958. A ressaca deste que talvez tenha sido o investimento mais improdutivo da história (e olha que a concorrência é forte) veio a partir de 1963, quando o crescimento do PIB se desacelerou de maneira abrupta: de uma média de 9% de crescimento entre 1958 e 1962, o crescimento em 1963 foi de apenas 0,6%. Se alguém acha que o golpe de 64 não tem nada a ver com economia, talvez tenha que refazer seus conceitos. O crescimento no triênio 63-65 foi de apenas 2,1% ao ano, cerca de 7 pontos percentuais abaixo dos 5 anos anteriores. Ou seja, o crescimento do investimento público foi capaz de gerar crescimento de curto prazo, mas que não se sustentou com o tempo.

O segundo momento é a saída do milagre econômico do início da década de 70. Percebendo que o crescimento estava perdendo ritmo, e sem querer admitir o fim da festa, o governo de Ernesto Geisel pisou fundo no acelerador dos investimentos públicos, de uma média de 7% do PIB na primeira metade da década para uma média de 9,5% no triênio 76-78. Até conseguiu sustentar algum crescimento no curto prazo, mas depois o país mergulhou na crise da dívida externa, dando origem à década perdida dos anos 80.

O terceiro momento é a saída do “superciclo das commodities”, causado pelo crescimento acelerado da China. No quinquênio 2004-08, o Brasil cresceu a uma média de 4,8% ao ano. Com a grande crise financeira de 2008, o governo colocou o pé no acelerador dos investimentos públicos para levantar o PIB, elevando de uma média de 2,5% do PIB nos cinco anos anteriores para 4,5% em 2010. A recuperação do crescimento foi rápida no curto prazo, mas a ressaca foi grande, dando origem à década perdida dos anos 10.

O problema desses ciclos de investimentos públicos é justamente encontrar atividades que agreguem valor e que, por algum motivo, não atraem o investimento privado. Haja externalidade positiva!

Mas não é só de investimentos públicos que vive a expansão de gastos públicos em busca do santo graal do crescimento econômico. Como afirmou o colunista Martin Sandbu, os investimentos sociais, que não entram nessa conta de investimentos públicos, agregam valor ao longo do tempo. A austeridade seria, então, contraproducente.

Bem, talvez o colunista do Financial Times não esteja familiarizado com a questão brasileira. Nós  aderimos, de corpo e alma, ao novo consenso que está desbancando o Consenso de Washington. Vejamos o gráfico a seguir, em que mostramos a evolução dos superávits primários e da dívida pública nos últimos mais de 20 anos:

Observe como, a partir de 2014, começamos a produzir déficits primários, depois de 15 anos produzindo superávits. Primeiro, de maneira envergonhada, varrendo os números pra debaixo do tapete da contabilidade criativa. Depois, em plena luz do dia. E a dívida pública, como não poderia deixar de ser, cresceu desde então. Em 2020 produzimos a espetacular marca de 9,5% do PIB de déficit primário, de longe o maior número entre as economias emergentes e somente comparável ao déficit dos EUA entre os países desenvolvidos. Ou seja, já estamos muito à frente de todo mundo nesse “novo consenso”, em que os gastos do governo devem sustentar o crescimento econômico.

Mas este gráfico tem outro trecho interessante: observe o crescimento da dívida entre 1998 e 2002, apesar da produção de superávits primários. Por quê? Simples: a taxa de juros, na época, era gigantesca. O menor nível da Selic nesse período foi de 15,25%, mas foi comum convivermos com taxas acima de 20% ao ano. Então, mesmo produzindo superávits primários, os juros pagos sobre a dívida faziam aumentar essa mesma dívida. Este é o risco que corremos agora, com a dívida acima de 90% do PIB: se a taxa de juros subir, o gasto com juros será muito maior, dificultando a estabilização da dívida.

Perguntado sobre o que nós, um país altamente endividado, deveríamos fazer para nos juntar ao “novo consenso”, o colunista do Financial Times sacou o seguinte:

Em primeiro lugar, temos muito espaço para melhorar como o governo gasta o dinheiro público. Puxa, isso sim é uma descoberta, como não havíamos pensado nisso antes. Basta gastar o dinheiro melhor! Fácil.

Mas o último conselho é que vale ouro: o Brasil deveria encontrar modos de fazer empréstimos de forma segura, com prazos longos, para que não tenha de se refinanciar de repente quando as taxas de juros subirem. Uau, isso é que é conselho! Claro, basta fazer encontrar financiadores de longo prazo para que possamos aderir ao “novo consenso” de “maneira segura”.

Estou sendo sarcástico, claro, mas quando colocados diante do problema concreto, aquele que os gestores públicos enfrentam, todos esses palpiteiros não conseguem se sair com nada mais do que platitudes desse tipo. Quer outro exemplo? Na mesma edição de hoje, o ex-diretor do Banco Central, Luís Eduardo Assis, em sua coluna, também prescreve gastos públicos como a solução de todos os seus problemas. E, óbvio, o abandono do teto de gastos. Mas é o conselho final que vale a pena ler:

Sim, é tempo de pensar em soluções inteligentes e criativas. Estamos esperando. Em todo o artigo que leio criticando o teto de gastos, fico ansioso por encontrar soluções inteligentes e criativas que substituam esse burro e sem imaginação teto de gastos. Saio sempre de mãos vazias.

Resumindo alguns pontos para encerrar este artigo:

1. Crescimento econômico não se improvisa. Crescimento econômico é fruto de produtividade, agregação de valor para o consumidor final. Quanto mais valor se agrega com menos recursos, mais a economia cresce. A destruição de uma economia se dá pelo desperdício de recursos em atividades que não agregam valor.

2. A austeridade não é um fetiche. Quem não gosta de gastar, não é mesmo? O problema está na sustentabilidade da dívida gerada pelo gasto governamental. Se o gasto fosse investido em atividades que agregassem valor, o crescimento econômico resultante pagaria a conta. Mas isto requereria um grau de clarividência dos governos muitas vezes acima do que normalmente observamos. Além disso, parece pouco provável que só o governo encontre atividades que agregam valor, vendo oportunidades onde a iniciativa privada não vê. As externalidades positivas são de difícil mensuração e, como a história mostra, normalmente não compensam o gasto.

3. Este “novo consenso” não tem nada de novo. É o bom e velho keynesianismo, que levou à estagflação da década de 70. O articulista do Financial Times, perguntado sobre a diferença deste “novo consenso” para o keynesianismo, respondeu o seguinte:

O “novo consenso”, portanto, ultrapassaria o keynesianismo por incluir a desigualdade e a desregulamentação financeira como obstáculos ao crescimento econômico. Ou seja, não basta o governo gastar. Precisa gastar distribuindo renda e amarrando as mãos do sistema financeiro, limitando o crédito. Junto com uma boa política de fomento a determinados setores escolhidos pelo seu “efeito multiplicador” (política industrial sofisticada), a mistura disso tudo resultaria em agregação de valor para o consumidor final. Bem, quem sou eu para dizer que vai dar errado.

4. A austeridade não é garantia de crescimento econômico. Nem tem a pretensão de ser. A austeridade é apenas o alicerce da casa, não a casa em si. Seria néscio achar que somente o alicerce resolve. Assim como seria igualmente néscio tentar construir a casa sem o alicerce. Vimos que esse tipo de estrutura não se sustenta. O articulista do Financial Times insiste, em vários pontos de sua entrevista, que a austeridade diminuiu o crescimento econômico no curto prazo e, por isso, foi uma política equivocada. O que ele está sugerindo, no fundo, é trocar o alicerce por uma casa construída sobre areia.

O moto-perpétuo da economia

Luis Eduardo Assis, ex-diretor do BC, nos brindou com um artigo no Estadão de 26/10/2020, em que defende que não há problema em um governo se endividar na própria moeda, pois não haveria risco de calote. Em outras palavras, comprar títulos de um governo na moeda local não teria risco.

A lógica é a seguinte: “um aumento de gastos públicos equivale à criação de depósitos bancários, que elevarão as reservas dos bancos, que serão utilizadas para a compra de títulos da dívida pública, que financiarão o gasto inicial”. O trecho segue abaixo.

Se perdeu? Eu explico: os gastos públicos vão, de uma maneira ou de outra, parar no sistema bancário (as empresas ou pessoas destinatárias dos gastos públicos acabam depositando esse dinheiro nos bancos). Os bancos não tem outra alternativa a não ser comprar títulos públicos com esse dinheiro, o que financiará os gastos do públicos. Fecha-se o círculo. Qual o problema com esse raciocínio?

O problema é que, se fosse assim, estaria inventado o moto-perpétuo. Como sabemos, o moto-perpétuo é aquele aparelho imaginário que funciona com a própria energia que gera. Por exemplo, um motor que gera energia elétrica e usa essa energia para o seu próprio funcionamento, não necessitando de fonte externa. Já imaginou? Seria o fim de qualquer crise de energia. Mas não, infelizmente o moto-perpétuo não existe.

Se os governos pudessem emitir dívida em sua própria moeda sem que houvesse o risco de calote, não haveria país pobre no mundo. Seria o “moto-perpétuo econômico”: o governo emite dívida, faz os gastos públicos, e esse mesmo dinheiro volta para os cofres do governo, que inicia novamente o processo. Onde está o furo?

O furo está em que os gastos do governo normalmente destroem valor. E é a criação de valor que gera crescimento econômico, não o dinheiro criado do nada pelo governo através da emissão de dívida pública. O lucro, no final, é que é a medida do valor criado.

Se os negócios obtêm menos dinheiro do que investiram para produzir o que quer que seja, se inviabilizam e morrem. O único ente que “não morre” é o governo. Os países não morrem porque podem emitir dinheiro e dívida e podem forçar o recolhimento de impostos. De modo que o prejuízo do governo é coberto pelo aumento do dinheiro em circulação (inflação), pelo aumento da dívida e pelo aumento dos impostos. Mas, toda vez que faz isso, na verdade o governo está distribuindo o seu prejuízo pela sociedade que o financia.

Poderíamos pensar no exemplo mais extremo de contratar operários para cavar buracos e depois tapá-los, mas vamos usar um exemplo mais real e indiscutível de gasto do governo: investimentos em educação. É óbvio que o investimento em educação é essencial. Mas é preciso que seja bem feito, de modo que o valor criado pela mão de obra formada seja maior do que o investimento realizado. Caso contrário, o governo terá prejuízo, da mesma forma que teria se tivesse remunerado pessoas para cavar buracos e depois tapá-los. E esse prejuízo será distribuído pela sociedade que financia o governo. Afinal, como sabemos, governos “não morrem”.

Voltando ao artigo, o autor se pergunta o que podem fazer os financiadores da dívida pública a não ser continuar financiando a dívida pública. Ao lembrar que os donos do capital podem simplesmente ir embora com o dinheiro, Assis considera que o câmbio flutuante seria um antídoto mais do que suficiente para evitar esta fuga. O câmbio desvalorizado funcionaria como um pedágio absurdamente caro para quem quisesse transitar por essa estrada que leva o dinheiro para o exterior. Afinal, quem iria retirar o seu dinheiro do país se tivesse que comprar dólar, por exemplo, a R$ 10,98? (Veja o trecho abaixo – aliás, este número está incorreto, pois não considerou a inflação nos EUA. O correto é corrigir pelo diferencial da inflação entre Brasil e EUA, o que daria algo próximo a R$ 7,60. Mas, segue o jogo.)

Esta é outra falácia. Se esta mesma pergunta fosse feita há um ano, usando R$5,00 como valor do dólar, certamente a resposta seria “haveria menos interesse” em enviar dinheiro para fora. No entanto, o capital continua saindo não com o dólar a R$ 5,00, mas a R$ 5,80. Ocorre que os investidores não querem saber o nível atual do dólar, mas se este nível vai ficar por aí ou vai subir ainda mais.

Estive na Argentina há quase 7 anos, quando o dólar estava sendo negociado a 10 pesos. Era o dólar Maradona. Hoje, o câmbio oficial está em 75 pesos e o paralelo está o dobro disso. Se os investidores avaliarem que R$ 10 é um nível daí para cima, vão continuar saindo do mesmo jeito. E, convenhamos, contar com o dólar a R$ 10 para evitar a saída de capitais é o mesmo que quebrar as pernas de um menino para que ele pare de correr. Se chegar nesse nível, é que muita coisa deu errado antes. E se continuar errado, não há motivo para achar que o dólar pare em R$ 10. Assim como não há motivo para achar que o dólar vai parar em R$ 5,80 se não fizermos a lição de casa.

Economistas como Luis Eduardo Assis põem a ênfase no crescimento econômico, e chamam de “fundamentalistas” os que estressam a questão fiscal. De fato, somos “fundamentalistas”, no sentido de que colocamos a ênfase nos fundamentos. Quando vamos construir uma casa, colocamos primeiro os alicerces. O equilíbrio fiscal é o alicerce da casa. A casa é o crescimento econômico. Assim como não há casa sem alicerce, não existe crescimento sem equilíbrio fiscal. Ninguém é maluco de achar que colocar os alicerces é o suficiente para ter uma casa. Nem ninguém são tentará construir uma casa sem alicerces. Uma coisa depende da outra. Essa dicotomia entre equilíbrio fiscal e crescimento econômico é simplesmente falsa.

Biden vai precisar de uma equipe heterodoxa? Podemos ajudar.

Este artigo foi publicado no Financial Times, e reproduzido no Valor Econômico. Faz parte do acervo cada vez mais abundante de artigos que apontam os males do capitalismo, oferecendo soluções que requerem um ser humano, digamos, especial, para darem certo.

A editora especial do FT em Nova York começa o artigo apontando o grande mal a ser combatido: “a distância histórica entre a sorte das companhias e a dos trabalhadores americanos”. Segue-se então uma peroração bastante típica sobre o contraste entre o valor das companhias em Wall Street e o salário dos trabalhadores (e o desemprego) em Main Street.

A autora até resvala no motivo principal do aumento deste distanciamento, ao reconhecer que grande parte da valorização recente da bolsa se deve à valorização das empresas de tecnologia, que empregam pouco e, em grande parte, apenas mão-de-obra muito especializada. Mas escorrega ao dizer que a valorização dessas companhias “nada tem a ver com a atual contribuição dessas companhias para a economia”. Uau, isso é que é entender o papel da inovação para a atividade econômica. Mas, seguimos.

Como, segundo a autora, 84% das ações são detidas por apenas 10% das famílias americanas, a valorização das ações somente interessaria a esses 10%. O fato de as empresas melhor capitalizadas serem capazes de investir mais e criarem mais riqueza para a sociedade como um todo é apenas um detalhe secundário. O que importa tão somente é a valorização das ações para os seus acionistas. Mr. Magoo consegue enxergar mais longe.

Em seguida, a autora desfila toda a sua ignorância sobre o papel das expectativas dos agentes econômicos, ao “acusar” a bolsa de reagir mal a “boas” notícias na economia, quando, na verdade, a bolsa já subiu ANTES da economia reagir, antecipando essa reação. Quando a economia já está se acelerando, a bolsa antecipa o fim da festa, momento em que o Fed vai começar a aumentar a taxa de juros. Isso é tão básico que dá vergonha ter que explicar para uma editora do Financial Times.

Mas o melhor do artigo não é o diagnóstico. Bem ou mal, trata-se da mesma ladainha a que já estamos acostumados. O slogan de Biden, “precisamos começar a recompensar o trabalho, não a riqueza”, é dessas platitudes que fazem o Conselheiro Acácio parecer um intelectual de primeira linha. O melhor, como eu ia dizendo, é a receita para mudar “tudo isso que está aí”, como diria Brizola.

A receita envolve “um grande estímulo fiscal”, pois a política monetária está esgotada. Mas a autora reconhece que há “uma crescente preocupação com o endividamento”. Como resolver a quadratura do círculo? Simples: o setor público deve assumir “dívidas produtivas”.

O que seriam essas tais “dívidas produtivas”? Ora, simples: dívidas que “criem empregos no curto prazo e direcione os investimentos de longo prazo para áreas estratégicas de alto crescimento, como a de tecnologia limpa”. O “limpa” tem que estar na frase, senão não seria uma solução, não é mesmo?

A autora conclui que o plano de Biden de “vários trilhões de dólares” endereça exatamente essa combinação. Seria, então, uma “dívida produtiva”. Mas, e tem sempre um mas, com o diabo metendo o rabo nos detalhes, a autora coloca uma condição: “se executado corretamente”. Quer dizer, o plano é bom, mas precisa ser bem executado. Para isso, será necessária “uma equipe de tecnocratas não apenas dispostos e competentes, mas verdadeiros líderes, com capital político suficiente para impulsionar a mudança”. Afinal, a ambição não é pequena: trata-se de, nada menos, “remodelar toda a economia americana”. Uau! Remodelar toda a economia americana desde os gabinetes da Casa Branca. Isso sim é sonhar alto.

Temos aqui no Brasil uma equipe heterodoxa pronta e acabada de “tecnocratas dispostos e competentes”, coordenados por uma “líder com capital político”, que foram injustamente dispensados em 2016, quando estavam justamente “remodelando toda a economia brasileira” através de “dívidas produtivas”. Poderíamos exportá-los para que ajudassem Biden nessa tarefa titânica.

O problema desses planos mirabolantes não é o fato de não serem bons ou de não partirem de bons diagnósticos. O problema desses planos é que exigem um novo ser humano, um que ainda vai nascer, virtuoso e bom. É o mesmo problema do socialismo: a ideia é boa, o problema é a implementação no mundo real dos seres humanos.

A nossa sina

Hoje, Celso Furtado completaria 100 anos de idade. O Valor Econômico fez uma reportagem especial a respeito, da qual destaquei dois trechos e uma foto.

Celso Furtado, como sabemos, representa para a economia brasileira o que Paulo Freire representa para a educação brasileira. É o seu Norte, a água de onde todos os estudantes brasileiros vão beber.

Uma inteligência brilhante, respeitadíssimo em certos círculos no exterior, desenvolveu a teoria-mãe das causas do subdesenvolvimento brasileiro. O remédio? Intervenção forte do Estado, para dirigir os esforços do mercado em direção ao desenvolvimento. Foi o primeiro Ministro do Planejamento do Brasil (quer coisa mais intervencionista do que “planejamento estatal”?) É o patrono dos chamados economistas desenvolvimentistas.

Nos dois trechos destacados, dois economistas desta escola colocam suas ideias, em sintonia com as de Celso Furtado. Infelizmente, o repórter não fez algumas perguntas que eu gostaria de ter feito. Faço-as aqui, e espero sinceramente que tenham uma boa resposta.

No primeiro trecho, Luciano Coutinho lamenta que o “grande impulso” entre as décadas de 30 e 80 tenha sido perdido, quando a industrialização do país foi impulsionada pela intervenção estatal. Além disso, sente falta de um “projeto de país”.

Minhas perguntas para Luciano Coutinho seriam as seguintes:

  • O que causou a grande dívida que quebrou o país na década de 80?
  • O que causou a hiperinflação da década de 80?
  • Em sua opinião, porque um projeto tão vitorioso como a industrialização entre as décadas de 30 e 70 teve um fim?
  • Se foi vitorioso, porque não nos levou a um patamar superior de desenvolvimento?
  • O senhor foi presidente do BNDES entre 2007 e 2016. O que o impediu de implantar um “projeto vitorioso” de desenvolvimento?

No segundo trecho, Bresser-Pereira, outro expoente da escola desenvolvimentista, defende a intervenção do Estado para regular os “preços básicos” da economia, assim como a China faz.

Minhas perguntas seriam as seguintes:

  • Como seria essa “administração correta” do câmbio, juros e preços? Qual o modelo que seria utilizado?
  • Que outra coisa a China fez nos últimos anos, a não ser explorar a sua vantagem competitiva de ter mão de obra barata e não sindicalizada em um regime de força para se transformar na “fábrica do mundo”? Esse modelo poderia ser replicado no Brasil?
  • O senhor foi ministro da fazenda do governo Sarney em 1987. O que o impediu de “administrar corretamente” os juros e o câmbio?

Por fim, a foto. Trata-se de Celso Furtado ladeado por Maria da Conceição Tavares (a mãe dos desenvolvimentistas) e o então candidato Lula, na campanha de 2002. Não tem imagem que melhor sintetize a nossa sina.

A verdade é que nunca deixamos de ser desenvolvimentistas. Celso Furtado não é o culpado por isso. Ele apenas foi o tradutor mais competente de uma mentalidade enraizada no ethos brasileiro.

O moto-perpétuo, mais uma vez

Monica de Bolle volta a atacar o teto de gastos. Extraí os 3 primeiros parágrafos de sua coluna, que já dão uma boa ideia das ideias da moça.

Primeiro, e talvez principal, De Bolle deixa à mostra sua inclinação autoritária, ao dizer que os técnicos da equipe econômica não estão “pensando no País”. É típico de mentes autoritárias confundir suas ideias com verdades absolutas, ficando os seus opositores com o papel de “inimigos da Pátria” e não simplesmente pessoas honestas que têm ideias diferentes para o bem do País. Combina bem com o seu eterno candidato à presidência, Ciro Gomes. Em uma postura típica do coronel, De Bolle joga a afirmação falsa de que o teto prejudicou o repasse de verbas para o SUS, com uma frase que inicia com um “há quem argumente”. Ou seja, nem para assumir a autoria da inverdade.

Mas vamos à questão em si.

De Bolle se diz a favor da “ideia do teto”, mas não desse que está aí. É uma forma elegante de dizer que não é a favor de teto algum. O mesmo argumento que usavam os mais civilizados que eram contra a reforma da Previdência. E o que De Bolle mudaria no teto? A permissão para fazer investimentos. Bem, se for para isso, o teto já está furado. O governo Bolsonaro descobriu a brecha, ao capitalizar em R$7 bilhões a Emgepron, para que a Marinha pudesse construir seus brinquedos de guerra. Mas De Bolle quer uma permissão oficial, não chicanas.

Há dois problemas com essa ideia, um com relação ao teto em si e o outro com relação ao papel dos investimentos públicos.

Com relação ao teto em si, o problema é que não existe “meio-teto”, assim como não existe “meio-grávida”. Ou o teto existe e serve para tudo, ou não existe. Liberar “investimentos” é liberar tudo, no país do jeitinho. Por onde passa um boi, passa uma boiada, como diz o ditado. E o mercado sabe disso. Um teto furado não segura a chuva.

Em relação aos investimentos públicos, temos duas questões: a qualidade do investimento público e o seu papel no crescimento do país. Com relação à qualidade, é público e notório que o investimento público deveria se chamar “desperdício público”, pela sua incapacidade de seguir cronogramas e orçamentos. Isso, sem contar a roubalheira. Em relação ao seu papel no crescimento do País, acho que já tivemos exemplos suficientes de como isso não funciona. Sempre repito isso: fosse fácil assim, não existiria país pobre: bastaria se endividar até as tampas, investir o dinheiro, e depois recolher os impostos para pagar a dívida. Pena que ainda não inventaram o moto-perpétuo.

Não por outro motivo, De Bolle ficou indignada com as comparações que fizeram entre o programa Pró-Brasil e o PAC ou o PND. Esses programas demonstraram todos os pontos acima: desperdício de dinheiro público e incapacidade de fomentar o crescimento, com efeitos perversos sobre o endividamento. Mas, por alguma misteriosa razão, o Pró-Brasil seria diferente. É sempre aquela ilusão de que é possível construir um Estado nórdico no Brasil-sil-sil.

A história se repete

Uma História do Brasil de bolso.

Na década de 50, o Estado brasileiro era capaz de construir uma cidade do nada. E assim o fez. Brasília nasceu às custas de endividamento e emissão de moeda. Resultado: inflação descontrolada e crise da dívida na década de 60, e a queda do governo alguns anos depois.

Na década de 70, o Estado brasileiro não era mais capaz de construir cidades, mas ainda podia fazer grandes obras. E assim o fez. Itaipu, Transamazônica e outras obras gigantescas nasceram às custas de endividamento externo. Resultado: inflação e crise da dívida na década de 80, precipitando o fim do regime militar.

Na década 2000, o Estado brasileiro já não podia mais construir cidades ou grandes obras. Mas ainda era capaz de capitalizar seu banco de desenvolvimento (uma forma de driblar as agruras de um orçamento limitado), e alavancar o retorno de acionistas privados em grandes obras. Assim nasceram Belo Monte, Sete Brasil e os campeões nacionais. Resultado: inflação e descontrole das contas públicas na década de 10, precipitando o fim do governo.

Aprendemos?

Não.

O custo das decisões ideológicas

A Petrobras está estudando o que fazer com a Comperj, que era para ser o maior complexo petroquímico da América Latina, mas virou um elefante branco.

Alguém pode estar se perguntando: mas por que raios não termina a obra? Já está 80% pronta e já foram gastos 13 bilhões (de dólares, não de reais), não seria melhor terminar de uma vez?

A resposta é não. O empreendimento simplesmente não para em pé. Daria prejuízo. Por que alguém investiria um real que seja em uma obra para gerar prejuízo lá na frente? Fosse um empreendimento viável, choveria investidor para terminar o projeto. Os chineses da CNPC foram os últimos a declinar gentilmente o convite.

Tem muita corrupção envolvida na Comperj, sem dúvida. Mas enquanto a corrupção é responsável pelo desvio de algumas centenas de milhões, as decisões empresariais feitas com base em ideologia e projetos nas coxas foram responsáveis pelo desperdício de bilhões. É outra ordem de grandeza.

O que quebrou o Brasil não foi a corrupção, mas a ideologia do “Brasil Grande”, parido a fórceps a partir de incentivos estatais. Lembre-se disso quando ouvir algum “economista” reclamar que falta um “plano do governo para incentivar o crescimento da economia”. O último grande plano quebrou o País.

O jovem economista heterodoxo

Para a nossa total não surpresa, Alberto Fernandez nomeou um “jovem ministro heterodoxo” para a Economia, discípulo de Joseph Stiglitz, um dos dois prêmios Nobel da área (o outro é o Krugman) que defende que imprimir dinheiro faz as pessoas ficarem mais ricas.

Uma das primeiras ideias do “jovem economista” é a óbvia “reestruturação” da dívida da Argentina, nome mais bonito para calote. Essa é uma medida que qualquer governo, de qualquer coloração, tomaria, dada a completa impossibilidade do país continuar pagando uma dívida impagável. O problema é o que vem depois.

Como bom discípulo de um desenvolvimentista raiz, o “jovem economista” deverá aplicar a cartilha já conhecida: gastos governamentais para “estimular” o crescimento econômico. Daí, o crescimento geraria as receitas para o governo pagar as suas dívidas. É a velha ilusão do moto-perpétuo fiscal, que só funciona, segundo os próprios proponentes da Moderna Teoria Monetária, se o governo fosse “eficiente” nos seus gastos. Aí é que mora o problema, como todos sabemos.

O “jovem economista”, no entanto, vai enfrentar um pequeno problema: convencer o FMI a continuar a financiar déficits primários. Segundo dados do FMI, o déficit primário da Argentina chegou a 4,8% do PIB em 2016! Só para comparar, o déficit primário brasileiro atingiu o pico de 2,5% do PIB no mesmo ano, e já foi um Deus-nos-acuda. Macri, com sua abordagem “vamos devagar com o andor”, reduziu o déficit para 4,2% em 2017 e, com a piora da crise e o acordo com o FMI, teve que acelerar o ajuste, fechando 2018 com um déficit de 2,2%. Para este ano, a previsão é de um déficit de 0,6% (menos negativo que o brasileiro).

Um país que gera déficits não tem capacidade de pagar suas dívidas. A matemática, neste ponto, independe de ideologia. O que os heterodoxos propõem é que se deixe a geração de superávits mais para frente, quando a economia voltar a crescer. Muito lógica essa abordagem anti-cíclica, desde que se acreditasse que governos populistas vão realmente economizar quando a economia estiver crescendo. Aliás, qual o nível de crescimento que seria o “suficiente” para começar a gerar superávits primários? São só pequenos “detalhes”.

Stiglitz sempre foi crítico aos termos desse acordo com o FMI. Para ele, essa abordagem ortodoxa não levaria a Argentina a lugar nenhum. Bem, agora teremos a oportunidade de ver o “jovem economista heterodoxo” aplicando as ideias de Stiglitz na vida real. Na minha bola de cristal, caso o FMI continue dando suporte, vejo um surto de crescimento econômico de curto prazo, seguido de nova crise da dívida, com empobrecimento geral da população. Esse é o verdadeiro moto perpétuo dos heterodoxos.