Rent-seeking na veia

O Senado brasileiro aprovou projeto que dificulta a entrada de concorrentes em linhas intermunicipais, além de proibir o chamado “Uber dos ônibus”, que não passa de um fretamento feito através de aplicativos. Ou seja, ao invés de a empresa de fretamento ficar esperando demanda de um determinado grupo para encher um ônibus, pode contar com um aplicativo que junta a demanda de indivíduos independentes entre si. Este sistema, obviamente, traz uma eficiência que concorre com as linhas regulares. Mas existe mercado para os dois: sempre haverá pessoas que não podem esperar pela formação do grupo e pagarão a mais pela passagem do ônibus regular.

Não deveria soar como novidade, mas sempre é bom apontar esses pequenos movimentos que, acumulados ao longo do tempo, contribuem para a concentração vergonhosa de renda no país. Sim, porque esse dinheiro a mais gasto em uma passagem de ônibus faltará no orçamento das famílias mais pobres e agregará uma riqueza aos empresários de linhas de ônibus sem a devida contrapartida de geração de valor para o usuário. Trata-se de mais um rent-seeking.

Os nossos parlamentares estão entre os primeiros a encherem a boca para defender a “justiça social”. Fazem-me lembrar a estátua da Dinamarca, Survival of the fattest, que já citei aqui e citarei várias outras vezes, em que uma mulher gorda se equilibra sobre os ombros de um homem esquálido, segurando a balança da justiça. Na base da estátua está escrito: “Estou sentada nas costas de um homem. Ele afunda sob o peso. Eu faria qualquer coisa para ajudá-lo. Menos sair de suas costas”.

A Lei de Responsabilidade Social

Juntei três notícias para escrever meu post de hoje.

A primeira é o acordo no Congresso para votar a PEC do Pacto Federativo, que incluirá fim de subsídios e inclusão de gatilhos para congelamento de salários do funcionalismo e de concursos. Mas o mais importante é que essa PEC não inclui a continuidade do auxílio emergencial em 2021. Ou seja, continua o velho e bom Bolsa Família, e só. O que fez o jornalista que escreveu a matéria, no meio das informações, a dar a sua abalizada opinião: “o governo não tem uma solução para os milhões de brasileiros que ficarão desamparados… em 2021”.

A segunda notícia, no mesmo jornal (Valor) é a austeridade fiscal adotada pelo governo esquerdista de Lopez Obrador, no México.

O contraste com o Brasil é gritante:

  • O México gastou 0,6% do PIB com auxílios, enquanto o Brasil gastou 8,3% do PIB. Foi o país que mais gastou dentre os emergentes, com a África do Sul ficando em um distante segundo lugar, com 5,3% do PIB.
  • Em termos de dinheiro, o México gastou, NO TOTAL, US$ 1,7 bilhões, contra US$ 10 bilhões do Brasil. AO MÊS.
  • Resultado: enquanto o déficit público do México será de 4% do PIB em 2020, no Brasil vai alcançar 17%. Nossa dívida pública acabará o ano sendo o dobro da mexicana, em proporção ao PIB.

Com esses números, como alguém pode, em sã consciência, dizer que “o governo não tem uma solução para os milhões de brasileiros desamparados”? Pelo contrário: o governo brasileiro apoiou os milhões de brasileiros desamparados como nenhum outro país o fez. Só que concentrou tudo em 2020. Não sobrou nada para 2021. Acabou o dinheiro. O México pode pensar em continuar suas políticas compensatórias. O Brasil, não. Como a cigarra da fábula, gastamos tudo hoje.

Aí vem a terceira notícia, que é a manchete principal do Estadão de hoje: o Senado prepara uma Lei de Responsabilidade Social, com metas de redução pobreza. Haveria “gatilhos” se certas metas de redução de pobreza não fossem alcançadas. Não está claro na matéria se esses gatilhos se sobreporiam à regra do teto de gastos.

Nem vou comentar os problemas metodológicos para se definir o que é “pobreza” (lembram quando o governo Dilma comemorou o “fim da miséria no Brasil”? Então…). Dado o tamanho do orçamento (muito próximo ao que se gasta hoje com o Bolsa Família), parece-me que não será suficiente para ultrapassar os resultados que o BF já atinge hoje, o que, como sabemos, está muito longe de “acabar com a pobreza” no Brasil.

Esse tipo de projeto, assim como o BF, é bem-intencionado, e realmente melhora a distribuição de renda, se bem focado. Mas o nome grandiloquente (Lei de Responsabilidade Social) pode passar a impressão de que, finalmente, as necessidades sociais do Brasil se sobreporão à gestão fiscal, que tem uma lei própria, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Duas más notícias para quem pensa que é isso o que vai acontecer:

1) desde o “tudo pelo social” de Sarney, todos os governos vêm prometendo erradicar a miséria. Só a Dilma “conseguiu”, na base da tortura das estatísticas;

2) uma Lei de Responsabilidade Social não tem o condão de suspender as leis básicas da economia, sendo uma delas a de que não se distribui o que não se tem. Prova disso é o estado de petição de miséria em que terminarão as contas públicas esse ano, quando fizemos um programa que realmente acabou com a miséria no país durante 6 meses.

A desigualdade como construção

A constitucionalidade do contrato intermitente de trabalho está em julgamento no STF. Para quem não lembra, o contrato intermitente permite registrar empregados sem uma jornada fixa de trabalho. O funcionário pode ser chamado a qualquer tempo, dentro de certas regras. Como todo empregado registrado, terá direito a férias, 13o e FGTS proporcionais.

Pois bem. O relator da ação, ministro Edson Fachin, votou contra, alegando que “o modelo não se coaduna com a dignidade da pessoa humana”. E o ministro específica: essa incerteza sobre se vai trabalhar ou não deixaria o trabalhador “sem as condições de gozar de direitos sociais fundamentais”, mais especificamente, “sem conseguir a renda mínima que LHE DEVERIA SER ASSEGURADA” (grifo meu).

Onde vive esse ministro do STF? Do que se alimenta? Como se reproduz? Tudo isso, no Globo Repórter.

No habitat do ministro, ali na linda Praça dos 3 Poderes, a Constituição garante trabalho para todos com uma remuneração justa assegurada. Que país feliz!

Já aqui no Brasil, a coisa é um pouco diferente. O sujeito que não é contratado de forma intermitente, tem, de fato, uma renda mínima assegurada: zero. E há certeza sobre quando vai trabalhar: nunca. Para surpresa de ninguém, a ação foi proposta por um sindicato. Assim como o ministro, o sindicato está preocupado com os peixinhos do seu aquário. Uma vez tendo o privilégio de ser registrado, o contrato deve dar ao trabalhador todas as garantias possíveis e imagináveis, para que “se coadune com a dignidade da pessoa humana”. Que se danem os peixinhos que não têm a sorte de estarem no aquário, que são a imensa maioria.

No planeta onde o ministro e o sindicato vivem, deveria ser possível colocar todos os peixinhos no aquário. Não lhes ocorre que o aquário é tão cheio de garantias de “dignidade humana”, que acaba se tornando muito pequeno para caber todo mundo, dadas as limitações econômicas. Resultado: uma minoria privilegiada com garantia de acesso a todos os “direitos sociais”, cercada de uma imensa massa largada no oceano da pobreza.

A desigualdade social no Brasil não é um acidente de percurso. É um estado de espirito.

A verdadeira riqueza

Você vai no caixa eletrônico eletrônico e saca R$ 600 reais do seu cartão de crédito. Pergunta: você ficou mais rico?

Qualquer pessoa sensata dirá que não. Mas é justamente isso que sugere análises do tipo que vemos na manchete abaixo.

Na verdade, as pessoas não ficaram mais ricas quando receberam o auxílio emergencial. Portanto, agora não estão ficando mais pobres. Sempre foram.

O auxílio emergencial, assim como o saque no cartão de crédito, cria uma ilusão de riqueza. Do outro lado, no entanto, resta uma dívida, que terá que ser paga. No balanço, ativo e passivo se anulam, deixando a pessoa exatamente onde estava. Na verdade, mais pobre, porque terá que pagar os juros.

Claro que a comparação com o cartão de crédito é limitada. A dívida para conceder o auxílio emergencial não precisa ser paga na fatura do mês que vem. Mais do que isso: ela pode ser paga por outros que não receberam o auxílio. Mas é aí que está a armadilha.

Se a sociedade brasileira realmente fizesse uma revolução distributiva, eliminando privilégios e subsídios de funcionários públicos, profissionais liberais e assalariados com carteira assinada, a grande massa de brasileiros que não se encaixa em nenhuma dessas categorias poderia sonhar em alguém pagando essa conta. Mas não, isso não vai acontecer. Portanto, a dívida será paga por esses mesmos que receberam o auxílio emergencial, seja na forma de mais impostos sobre itens de consumo, seja na forma de mais austeridade que estrangula serviços públicos, seja na forma de inflação.

Não, o povo não fica mais rico quando pode consumir mais. O povo fica mais rico quando PRODUZ mais. Endividar-se para consumir sem ter produzido um alfinete a mais é, ao contrário, a receita certa para o empobrecimento.

Educação e mobilidade social

Meu pai cursou até o colegial (hoje ensino médio), minha mãe, até o ginásio (hoje fundamental 2). O pai de minha esposa cursou até o primário (hoje fundamental 1) e a mãe dela nem isso. Eu e minha esposa temos pós-graduação.

Somos exceção em um país com mobilidade social muito reduzida. Tivemos sorte, eu e minha esposa, de nascermos em lares onde a educação sempre foi valorizada e de termos tido a oportunidade de conviver com pessoas de nível universitário em nossa juventude. Porque a questão da formação superior não se restringe à renda. Há também, e talvez principalmente, o que chamo de “ambição”: para um rapaz ou uma moça que não têm, em seu círculo de convivência, pessoas que cursaram a faculdade, esta parece ser uma meta inatingível, uma espécie de monte Everest. Falta o exemplo de que aquilo não só é possível, mas é para você. Trata-se de um circulo vicioso de difícil superação.

Paulo Tafner foi o apóstolo da reforma da Previdência. Armado de uma montanha de dados e perseverança inabalável, pregou no deserto durante anos, até a sua doutrina tornar-se o pensamento dominante. Reformar a Previdência não é fácil em lugar nenhum do mundo, é necessário mudar o mindset da sociedade, e Paulo Tafner fez grande parte desse trabalho.

Agora, Tafner dedica-se a estudar a mobilidade social no Brasil. A sua entrevista abaixo merece ser lida. Se há um assunto importante no Brasil, é este. Sorte do Brasil ter uma pessoa como Tafner dedicada a isso.

Igualistão ou Crescimenistão: onde você gostaria de viver?

Este é o primeiro de dois posts sobre crescimento econômico. Neste primeiro, farei a defesa do crescimento econômico como estratégia principal para melhorar o padrão de vida dos mais pobres. No segundo, discorrerei sobre as condições necessárias para acelerar o crescimento econômico.

Estamos em uma era em que a distribuição de renda é o “zeitgeist” do debate econômico. A má distribuição das riquezas fere os espíritos mais sensíveis, e a falta de condições mínimas de subsistência de uma parcela significativa da população global clama por soluções.

Neste contexto, falar de crescimento econômico soa quase que como uma heresia. Delfim Netto, quando era ministro da Fazenda de Médici, cunhou a frase que resume o pensamento que hoje merece a fogueira: “é preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. Esta frase veio em um contexto que nos é familiar: as críticas ao modelo econômico do Brasil (“o milagre econômico brasileiro” do início da década de 70), que deixava uma parcela significativa da população de fora dos benefícios do crescimento acelerado.

Se discutir crescimento econômico já era pouco simpático na década de 70, hoje temos o ambientalismo como o novo ingrediente que faz do crescimento econômico o grande vilão. Afinal, em um planeta à beira de uma catástrofe ecológica, com recursos cada vez mais escassos, o crescimento “a todo custo” ou “desordenado” trabalha para levar o mundo para o caos. Confesso que não consigo definir o que seja “a todo custo” ou “desordenado”, mas são adjetivos frequentemente encontrados em discursos para qualificar o crescimento econômico nocivo.

Por outro lado, os que defendem a primazia do crescimento econômico, afirmam que os mais pobres são também beneficiados no processo. Podemos resumir o raciocínio utilizando um exemplo fictício. Sejam dois países, o Igualistão e o Crescimenistão, ambos com o mesmo número de habitantes. O PIB do Igualistão é de 100 moedas, enquanto o PIB do Crescimenistão é de 300 moedas. Portanto, o PIB/capita do Crescimenistão é três vezes maior que o PIB/capita do Igualistão. No entanto, o índice de Gini do Igualistão é igual a zero, enquanto o índice de Gini do Crescimenistão é igual a 0,5.

O índice de Gini mede o grau de desigualdade de renda de um país. Gini igual a zero significa distribuição perfeita de renda. Ou seja, não existem mais ricos ou mais pobres, todos têm a mesma renda. Por outro lado, quanto mais próximo de 1 for o índice de Gini, mais desigual é a distribuição de renda. Um índice de 0,5 pode ser construído da seguinte forma: os 10% mais ricos da população possuem 55% da renda do país, enquanto os outros 90% da população vivem com os restantes 45% da renda do país, sendo que a renda desses 90% está igualmente distribuída. Ou seja, somente os 10% mais ricos ganham mais do que todos os outros.

Com essas informações, podemos facilmente calcular a renda da população do Igualistão e do Crescimenistão. No Igualistão, os 10% mais ricos têm renda equivalente a 10% da renda do país (10 moedas), os 10% seguintes também têm renda de 10% da renda do país (10 moedas), e assim por diante. Ou seja, todos os habitantes do Igualistão têm a mesma renda. Deste modo, no final somamos as 100 moedas, que é a renda total do país.

Já no Crescimenistão, os 10% mais ricos representam 55% da renda do país, que é de 300 moedas. Portanto, a renda dos 10% mais ricos soma 165 moedas. Já os 90% restantes têm renda de 145 moedas. Como todos ganham a mesma coisa, cada estrato de 10% ganha 15 moedas. Temos então que os 10% mais ricos ganham 165 moedas, os 10% seguintes ganham 15 moedas, os 10% seguintes também ganham 15 moedas, e assim por diante, até completar a renda total do país, que é de 300 moedas.

Note que os cidadãos mais ricos do Crescimenistão têm renda/capita 11 vezes maior que o restante da população. Uma bela desigualdade. No entanto, o país é tão mais rico, que os mais pobres do Crescimenistão são 50% mais ricos que os cidadãos do Igualistão (15 moedas contra 10 moedas). Em outras palavras, mesmo em um país desigual, os mais pobres podem ter qualidade de vida superior ao de países mais igualitários. Basta que sejam mais ricos.

Obviamente, o ideal seria que tivéssemos o melhor dos dois mundos: a renda do Crescimenistão combinada com a igualdade do Igualistão. É possível? Sim. Não só é possível, como é o que normalmente acontece. No gráfico a seguir, mostramos a relação entre índice de Gini e renda/capita (conceito PPP) de 144 países. (A fonte para o índice de Gini é o Banco Mundial e para a renda/capita é o FMI).

Observe como a linha de tendência é levemente decrescente. Ou seja, quanto maior a renda/capita, menor tende a ser o índice de Gini. Em outras palavras, os países mais ricos tendem também a ser mais igualitários. Uma notável exceção são os Estados Unidos, que têm um Gini muito alto se considerarmos sua renda/capita. Voltaremos a este ponto mais à frente.

Fosse para encontrar alguma correlação, poderíamos dizer que uma forma de aumentar a igualdade seria simplesmente enriquecer, dado que os países mais ricos tendem também a ser mais igualitários. No entanto, podemos observar que também países muito pobres possuem índices de Gini baixos. Ou seja, é possível ser pobre e igualitário também. Em outras palavras, aparentemente, a igualdade não tem a ver com o nível de renda do país para os países mais pobres.

Para tentar inferir quais outros fatores poderiam afetar a distribuição de renda, fiz o ranking dos países mais desiguais (Gini mais alto) e países mais igualitários (Gini mais baixo).

Observe que, entre os países mais igualitários, temos uma predominância de países do Leste Europeu, além da Escandinávia. Mesmo países com renda mediana, como Moldávia e Ucrânia, apresentam Gini muito baixo. Será que o sistema socialista criou, de fato, igualdade nesses países? Ou será que a homogeneidade de suas populações levou naturalmente a uma igualdade maior de renda? Difícil dizer, sem termos acesso a uma série histórica. Mas o ranking dos países mais desiguais nos dará insights mais interessantes.

Podemos observar que, dos 10 países mais desiguais, 8 se encontram na África e 2 na América Latina. Sim, o Brasil faz parte desse ranking. Observe que Brasil, Botswana e África do Sul possuem mais ou menos a mesma renda/capita da Moldávia e Ucrânia, mas uma desigualdade muito maior. Ou seja, a pobreza não explica a desigualdade.

Será que o processo de colonização e o histórico de escravidão levaram às grandes desigualdades na África e na América Latina? A escravidão como fator de desigualdade também explicaria o alto índice de Gini nos EUA, muito acima da média dos países mais ricos. Além disso, é um país que recebe muitos imigrantes, o que torna sua população mais heterogênea em termos de condições iniciais, pelo menos em um primeiro momento.

Se isto é verdade, a forma de diminuir as desigualdades é tornando a população mais homogênea do ponto de vista das suas condições iniciais. E a forma de fazer isso de maneira estrutural é através da capacitação da mão-de-obra e do fomento de instituições que permitam o emprego dessa mão-de-obra capacitada. Não adianta de nada formar mão-de-obra e dificultar a vida das empresas que poderiam empregá-la. A mão-de-obra formada irá vazar para o exterior.

Por outro lado, se a preocupação não for com a igualdade, mas com as condições de vida dos mais pobres, o crescimento econômico talvez seja uma solução mais adequada. Como vimos acima, os pobres do Crescimenistão vivem melhor que os pobres do Igualistão.

Vou além: em países como o Brasil, as políticas que visam melhorar as condições iniciais dos mais pobres e, assim, aumentar a homogeneidade da população, são sequestradas pelas elites em seu próprio benefício. As escolas são sequestradas pelas corporações de funcionários públicos, as faculdades atendem os filhos das elites, o sistema de aposentadorias (tanto privado quanto público) suga os poucos recursos que poderiam estar sendo investidos na melhoria das condições iniciais da população mais pobre, os incentivos fiscais atendem empresas que poderiam andar com as próprias pernas, etc, etc, etc.

Temos décadas de políticas empilhadas visando tirar o Brasil do vergonhoso ranking dos países mais desiguais do mundo. O último é o Fundeb permanente, que provavelmente será sequestrado para pagar salários dos professores sem relação com a eficiência do processo educativo. Desconfio que daqui a 20 anos vamos ainda fazer parte desse ranking.

Para países como o Brasil, sequestrado pelas elites, a forma mais eficaz de melhorar a vida dos mais pobres é enriquecendo. Focar na redução das desigualdades é insistir nas mesmas ações que fracassaram nas últimas décadas. Qualquer ação nesse sentido acaba beneficiando as elites em detrimento dos mais pobres. Sem contar que estas ações exigem uma carga tributária mais alta, que acaba por pesar justamente sobre os mais pobres, além de prejudicar o crescimento econômico potencial do país. Acabar com essa hipocrisia já seria um bom começo.

Porque 1% deve ser muito mais rico que o restante 99%

Olhe o mundo ao seu redor. Olhe com atenção. Enumere as coisas que você vê. Enumere as coisas que você usa no seu dia-a-dia. Responda:

  1. Quantas dessas coisas você fez com as suas próprias mãos?
  2. Quantas dessas coisas foram feitas por indivíduos solitários (artesãos)?
  3. Quantas dessas coisas foram feitas por pequenos grupos de indivíduos, organizados em pequenas empresas?

Sou capaz de apostar que a sua resposta seja zero, ou algo muito próximo, para estas três perguntas. O mundo ao nosso redor é produzido por grandes empresas. Grandes empresas são organizações que congregam muitas pessoas, cada uma realizando um trabalho muito específico.

Adam Smith, no início do seu “A Riqueza das Nações”, destaca a diferença entre o que ele chama de “nações selvagens” (o que hoje chamaríamos de subdesenvolvidas) e “nações civilizadas” (as que hoje seriam as economias desenvolvidas):

“Entre as nações selvagens de caçadores e pescadores, todo indivíduo que está apto para trabalhar está mais ou menos empregado em algum trabalho útil, e procura prover, tão bem quanto possa, as necessidades e conveniências da vida, para si próprio, para sua família ou tribo, seja ele muito velho, ou muito novo para caçar ou pescar. Estas nações, entretanto, são tão miseravelmente pobres que, às vezes, são reduzidas à necessidade de eliminar ou, pelo menos, abandonar suas crianças, seus idosos e aqueles afetados por doenças, a perecer pela fome, ou serem devorados por bestas selvagens.

Entre as nações civilizadas, ao contrário, apesar de um grande número de pessoas não trabalhar de maneira alguma, muitas dessas pessoas consomem a produção equivalente a dez vezes, frequentemente a cem vezes o trabalho daqueles que produzem; mas a produção do trabalho de toda a sociedade é tão grande, que todos são abundantemente atendidos; e um trabalhador, mesmo o mais baixo e mais pobre, se ele é frugal e trabalhador, pode aproveitar uma parcela muito maior das necessidades e conveniências da vida que seria possível para qualquer selvagem obter.”

Tenha em mente que Adam Smith escreve este texto no final do século XVIII. Portanto, suas categorias e linguajar podem causar um pouco de estranheza, como quando, por exemplo, ele chama as nações mais atrasadas de “selvagens”. É a forma da época. Mas o centro da ideia de Adam Smith é que as nações desenvolvidas conseguem, de alguma forma, ser mais produtivas que as nações menos desenvolvidas. Nas nações menos desenvolvidas, apesar de todos trabalharem mais, a produtividade é muito baixa, e a produção não é suficiente para todos. Já nas nações desenvolvidas, mesmo que nem todos trabalhem, a produção é tão abundante, que sobra conforto até para os trabalhadores mais pobres.

Ao longo do livro, Adam Smith vai desenvolvendo esta ideia, começando justamente pelo conceito de empresa: várias pessoas trabalhando em conjunto, com a especialização de tarefas. Smith demonstra que a produtividade aumenta exponencialmente quando existe organização do trabalho.

Olhe novamente à sua volta. Praticamente tudo o que você vê e usa no dia-a-dia é fruto do trabalho de uma extensa cadeia de produção, formada por trabalhadores organizados em torno de grandes empresas. Graças a isso, podemos usufruir de um nível de conforto simplesmente inimaginável para nossos ancestrais de, digamos, 200 anos atrás.

Para que tudo isso seja possível, são necessárias ao menos duas coisas:

  1. A genialidade do indivíduo que inventa novas coisas ou novas formas de fazer as mesmas coisas e
  2. A genialidade do indivíduo que consegue organizar o trabalho de outros indivíduos da forma mais produtiva possível.

Uma coisa não existe sem a outra. Quantas pessoas geniais não existem no mundo, e que morrem anônimas com suas geniais invenções nas gavetas de suas casas? E, claro, o contrário também é verdadeiro: não existe empresa que fabrique algo que antes não tenha sido inventado.

Se o papel do inventor parece indubitavelmente muito precioso, o papel do CEO de uma empresa já é um pouco mais polêmico. Esta é uma percepção comum: por que o salário do manda-chuva tem que ser 20, 50 ou até 100 vezes maior do que o salário de quem realmente põe a mão na massa e produz?

Vou fazer uma outra pergunta antes de responder a esta: quando a Wal Mart começou suas atividades (e o mesmo vale para McDonalds, Magazine Luiza, Microsoft, e todas as outras grandes empresas em que você possa pensar), havia milhares de outras lojinhas no mundo. Por que a Wal Mart se tornou a Wal Mart e outras lojinhas permaneceram outras lojinhas, ou morreram e deram lugar a outras lojinhas? Será porque os trabalhadores da Wal Mart, aqueles que põem a mão na massa, trabalhavam mais duro do que a média? Ou será porque o CEO da Wal Mart estava disposto a apostar em sua visão, e tinha liderança para fazer com que outros o seguissem em sua visão?

Jogadores de futebol, há milhares no mundo inteiro. Mas Messi, há um só. As pessoas vão ao estádio não para ver o Barcelona jogar. As pessoas vão ao estádio para ver Messi jogar. Os outros jogadores se esforçam, e suam a camisa durante os mesmos 90 minutos. O treinador, o massagista, o roupeiro, todos trabalham muito, até mais do que Messi. Aliás, Messi não jogaria sozinho, ele precisa dos seus companheiros e de toda a infra-estrutura do clube. Mas as pessoas vão ao estádio para ver Messi.

A GM não inventou o automóvel, mas Alfred Sloan fez da GM a maior fabricante de automóveis do mundo durante muitos anos. O Facebook não inventou as redes sociais, mas Mike Zuckerberg fez do Facebook a maior rede social do mundo. O Google não inventou os mecanismos de busca na Internet, mas Larry Page e Sergei Brin fizeram do Google o maior mecanismo de busca na Internet do mundo. Não foram os trabalhadores mais capacitados da GM, do Facebook ou do Google que fizeram dessas empresas as líderes de seus setores. Foram Sloan, Zuckerberg e Page/Brin. Se dependessem dos trabalhadores, todas essas empresas seriam do tamanho de seus talentos: lojinhas de esquina.

Assim como as “nações civilizadas” se diferenciam das “nações selvagens” pela forma como organizam a sua produção, as empresas de sucesso se diferenciam das lojinhas da esquina pela forma como organizam a sua produção. No caso dos países, entenda-se por “organizar a produção” todas as instituições que permitem o livre empreendimento e a acumulação de capital físico e humano ao longo do tempo. No caso das empresas, entenda-se por “organizar a produção” desde ter uma estratégia de longo prazo, até a habilidade de atrair e reter os melhores talentos.

– Mas Guterman, há muito CEO incompetente que ganha rios de dinheiro!

Sem dúvida. Assim como há muitos trabalhadores incompetentes que continuam ganhando os seus salários regularmente. Mas não confunda a fotografia com o filme. Ninguém consegue se segurar eternamente em uma determinada posição se não tiver o talento necessário. Isso vale tanto para CEOs quanto para trabalhadores. Quando se está iniciando na carreira, esta afirmação parece um pouco forçada. Depois que se vai ganhando experiência, vamos percebendo que as pessoas, cedo ou tarde, são “marcadas a mercado”.

Assim, chegamos ao cerne da questão: são poucas, muito poucas pessoas mesmo, que fazem a diferença no mundo. 1% é muito generoso. Provavelmente, estamos falando de 0,001%. Estes 0,001% agregam mais valor ao mundo do que os restantes 99,999%. Valor aqui, bem entendido, material. Não me ocupo aqui de outras dimensões, tão ou mais importantes. Para um filho, a mãe agrega muito mais valor do que qualquer outra pessoa no mundo. Para um aluno, o professor certamente agrega mais valor. Acho que já me fiz entender.

Sendo assim, parece ser natural que existam bilionários no mundo. E, em um segundo escalão, milionários. Estas pessoas, ou seus ascendentes, agregaram valor equivalente. E, na medida em que os benefícios criados por estas pessoas atingem cada vez mais pessoas em um mundo globalizado, não é de se estranhar que as fortunas sejam maiores do que no passado.

A concentração de renda, preocupação de 10 em cada 10 governantes na atualidade, não deveria causar espanto: é o resultado natural da lógica capitalista. Os governantes, com seu viés populista, querem vender a ideia de que todos podem ser iguais. E não podem. Nem em países comunistas isso aconteceu: a Nomenklatura contava com privilégios vetados ao povo em geral.

A única forma de diminuir a concentração de renda é diminuir a o gap entre a capacidade das pessoas. Programas sociais desacompanhados de melhoras substantivas na educação e saúde do povo somente diminuem o crescimento potencial do país (via aumento de impostos), sem melhorar em uma vírgula a concentração de renda. Programas como o Bolsa Família são meritórios na medida em que exigem uma contrapartida (manter os filhos na escola), diminuindo o gap educacional. O benefício em si pode ter efeitos conjunturais, passageiros, mas não estruturais.

Mas por mais que se diminua a diferença de capacidade produtiva entre as pessoas, o 0,001% sempre existirá. E é essencial que exista e seja muitíssimo bem remunerado. Caso contrário, a civilização, tal qual a conhecemos, não existiria.

O encontro de dois luminares

Luciano Huck entrevista o economista francês Thomas Piketti, hoje, no Estadão.

Quando o badalado Capitalismo do Século XXI foi lançado em 2013, a Amazon tinha uma estatística (não sei se ainda tem) de “marcação de livros”. Essa estatística mostrava quais os trechos dos diversos livros disponíveis na plataforma Kindle eram mais marcados pelos leitores. Esses trechos nos dariam uma ideia das principais ideias do livro, na visão dos leitores.

Pois bem, no caso da bíblia de Piketti, as marcações eram muito numerosas no início, passando a ser mais esparsas na medida em que o livro avançava, o que indicava que poucos realmente tinham lido o livro até o final. Eu fui um deles, de modo que posso dizer que sou um especialista em Piketti. O mesmo não posso dizer de Huck, pois se assisti a dois trechos de seu programa, foi muito.

Bem, na primeira parte de sua obra, Piketti faz um trabalho soberbo de compilação de dados com base nos informativos das receitas federais de diversos países. O problema vem na 2a parte, onde o autor francês envereda pela ideologia: ele conclui, com base em sua própria cabeça (os dados não lhe permitem chegar a essa conclusão) que o problema do crescimento econômico é um problema não somente de desigualdade, mas da existência de grandes fortunas. Essa é a sua fixação. O trecho que destaco abaixo sobre Bill Gates está ipsis literis na pg 444 da versão em inglês do seu livro. Este trecho merece outro post.

Abaixo, destaco um trecho em que ele dá uma amostra da sua desonestidade intelectual, que permeia a 2a parte do seu livro. Uma alíquota de imposto sobre um bem não pode ser nominalmente comparada com a alíquota sobre o estoque de riqueza. São coisas completamente diferentes. É como comparar o valor das empresas com o PIB dos países, coisa que já critiquei aqui.

Por fim, gostaria de saber o que Piketti pensaria se soubesse que Huck financiou seu jatinho com juros subsidiados do BNDES, uma espécie de imposto negativo sobre fortunas. Não deixa de ser muito irônico.

Não mexam no meu queijo!

A Reforma Tributária ainda vai ocupar muito espaço por aqui.

Não é de hoje que o setor de serviços está chiando com a proposta de reforma que está sendo discutida no Congresso. Há algum tempo, cheguei a comentar um artigo do ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, que foi um dos primeiros a erguer o tacape.

Sim, a exemplo da Confederação Nacional dos Serviços, que defendeu a CPMF para fugir da reforma, também a OAB está pintada para a guerra.

Não é à toa: como diz Pedro Fernando Nery em seu tuíte, os advogados pagam pouco imposto, assim como médicos e outros prestadores de serviços. A reação do presidente da OAB só corrobora o tuíte.

O presidente da OAB sabe do que está falando: a carga tributária sobre os advogados e profissionais liberais em geral vai aumentar com a reforma. Como a carga tributária geral deve continuar onde está, outros agentes vão pagar menos impostos. Estes outros agentes são a indústria e, em menor medida, o comércio. E adivinha quem consome os serviços de advogados e quem consome os produtos da indústria e comércio? Pois é.

Estamos novamente falando de distribuição de renda. O presidente da OAB é o primeiro a se alinhar a causas nobres e populares, sempre defendendo os fracos e oprimidos da sociedade. Desde que não mexam com o dele.

A desigualdade de renda é uma construção

Para você, que lamenta e não consegue entender porque o Brasil é um país tão desigual, preste atenção porque a história está se desenrolando diante dos seus olhos. Seus filhos e netos se farão a mesma pergunta, e você poderá contar um pequeno capítulo.

Estamos em meio às discussões sobre a Reforma Tributária, um dos dois palcos onde se define o papel do Estado na distribuição de renda do país (o outro é a discussão do orçamento).

Pois bem. O setor de serviços, por meio do seu lobby, se pintou para a guerra e afirmou que vai brigar pela nova CPMF para desonerar a folha.

Desonerar a folha parece algo nobre porque, em tese, fomenta empregos. Mas este é somente o lado bonito da história.

A CPMF é um imposto que “pega todo mundo”. E quando eu digo todo mundo, é todo mundo mesmo. Por ser um imposto em cascata, que incide em cada transação financeira, onera tanto mais os produtos produzidos quanto mais longa for a cadeia de produção/distribuição. Trata-se de um imposto concentrador de renda, e eu vou explicar porque.

Eu trabalho no setor de serviços. Minha alíquota de contribuição ao INSS vai diminuir, assim como a de meu empregador. Nem por isso vou deixar de receber a minha aposentadoria oficial. Quem vai financia-la?

Na outra ponta, temos os compradores de produtos onerados pela CPMF. Como cidadão da classe média, minha cesta de consumo é dominada por serviços. Quem compra preponderantemente produtos são os mais pobres. Produtos onerados pela CPMF. Estes, mais uma vez, pela zilionesima vez desde que Cabral aportou em nossas praias, estarão subsidiando os mais ricos. No caso, quem tem carteira assinada.

A desigualdade social não é um imperativo do capitalismo. É, antes de tudo, fruto do crony capitalism (capitalismo de compadres), onde governo e elites empresariais se unem para arrancar benefícios dos mais pobres, enquanto, com a outra mão, distribuem migalhas em forma de “bolsas” para tranquilizar suas consciências.