As quatro opções intragáveis de Israel para o futuro de Gaza

Vou transcrever aqui uma tradução de um artigo da Economist publicado hoje, sobre as opções de Israel. É um pouco longo, mas vale a leitura de cada linha, para finalmente entender um pouco da política de Gaza/Cisjordânia e de como não há opções óbvias para Israel.

“As declarações públicas que Joe Biden fez durante a sua visita relâmpago a Israel em 18 de Outubro não sugeriram muitas dúvidas sobre a iminente invasão da Faixa de Gaza por Israel. Contudo, em privado, os conselheiros do presidente americano esperavam pressionar os líderes de Israel sobre uma questão urgente: o que deveria acontecer depois da guerra?

As autoridades israelenses dizem que estão concentradas em derrubar o Hamas do poder, em retribuição pelo massacre que cometeu no sul de Israel em 7 de Outubro. “Gaza não será mais uma ameaça para Israel”, afirma Eli Cohen, o ministro das Relações Exteriores. “Não concordaremos que o Hamas mantenha qualquer poder em Gaza.” Mesmo depois de os riscos de combate num local tão densamente povoado terem sido ilustrados por uma explosão mortal no dia 17 de Outubro no hospital Ahli Arab de Gaza, que Israel atribuiu a um foguete palestino sem direção, os objetivos de guerra declarados por Israel não mudaram.

Uma encruzilhada de quatro caminhos

Mas os planos pós-guerra de Israel permanecem incertos. Existem quatro opções principais, todas ruins. A primeira é uma ocupação prolongada de Gaza, como a que empreendeu entre 1967 e 2005. As tropas israelenses teriam de proteger o enclave e, na ausência de um governo palestino, poderiam ter também de supervisionar os serviços básicos.

Isto poderia agradar a um segmento da direita religiosa de Israel, que ainda se irrita com a retirada, em 2005, de todos os soldados e colonos israelenses de Gaza, interpretada como o abandono de uma fatia da pátria bíblica dos judeus. Mas ninguém mais quer ver Gaza reocupada, dados os pesados encargos financeiros e a probabilidade de uma interminável má reverberação na mídia e de um fluxo constante de mortes. Biden alertou em 15 de outubro que uma ocupação duradoura seria um “grande erro”. A maioria dos estrategistas israelenses concorda.

A segunda opção é travar uma guerra que decapite o Hamas e depois abandonar o território. Este é sem dúvida o pior caminho a seguir. Alguns dos líderes e apoiadores do Hamas provavelmente surgiriam para reconstituir o grupo. Mesmo que não o fizessem, alguma outra força indesejável tomaria o seu lugar. O Oriente Médio tem uma história de grupos radicais que aproveitam esses vácuos.

O melhor resultado, na perspectiva de Israel, seria o regresso da Autoridade Palestiniana (AP), que governa partes da Cisjordânia em coordenação com Israel. Mas esse caminho está repleto de obstáculos. A primeira é que Mahmoud Abbas, o presidente palestino, está relutante em fazê-lo. “Não creio que alguém possa ser tão estúpido e pensar que pode regressar a Gaza nas costas de um tanque israelense”, diz Ghassan al-Khatib, antigo ministro palestino.

Mesmo que Abbas pudesse tomar o poder dessa forma, talvez não o quisesse. Yasser Arafat, o anterior presidente da Autoridade Palestina e figura de longa data do nacionalismo palestino, gostava de Gaza; ele viveu lá durante algum tempo depois de ter sido autorizado a regressar à Palestina, em 1994. Pessoas próximas de Abbas dizem que ele, pelo contrário, vê Gaza como um lugar hostil.

É quase certo que Gaza seria hostil à polícia palestina enviada para protegê-la. A Autoridade Palestina emprega cerca de 60 mil pessoas nos seus serviços de segurança, que têm autoridade em cerca de um terço da Cisjordânia (ver mapa abaixo). Não consegue controlar nem mesmo essa área limitada: partes de Jenin e Nablus, cidades no norte da Cisjordânia, estão tão revoltadas que as forças da Autoridade Palestina não ousam patrulhá-las para não serem atacadas. O moral está baixo. Se a polícia palestina regressasse a Gaza, seria um alvo para os remanescentes do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros militantes. O Hamas e a Autoridade Palestina travaram uma guerra civil sangrenta em Gaza depois que o Hamas venceu as eleições parlamentares em 2006. O Hamas acabou vencendo e expulsou a Autoridade Palestina do território em 2007.

A segurança também não é a única questão. Depois que o Hamas chegou ao poder, Abbas pediu aos burocratas em Gaza que parassem de trabalhar. O Hamas, por sua vez, contratou dezenas de milhares de apoiadores para ocuparem funções públicas, enquanto a Autoridade Palestina continuou a pagar aos seus trabalhadores para ficarem em casa. Manter essa burocracia significaria trabalhar com cerca de 40 mil pessoas contratadas pela sua lealdade ideológica ao Hamas; rejeitá-los seria repetir o erro do programa de “desbaathificação” dos Estados Unidos no Iraque, que lançou legiões de homens furiosos e desempregados nas ruas.

Uma quarta opção seria montar algum tipo de administração alternativa, composta por notáveis locais trabalhando em estreita colaboração com Israel e o Egipto. Israel confiou nesse tipo de acordo até a década de 1990, antes de a Autoridade Palestina começar a assumir funções civis nos territórios ocupados.

Tem-se falado em tentar recrutar Muhammad Dahlan, um antigo chefe de segurança do Paquistão que cresceu em Gaza, para assumir as rédeas depois do Hamas. Mas Dahlan passou a última década em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos. Ele se desentendeu com a AP; em 2016, um tribunal palestino condenou-o por corrupção. Também há desavença entre ele e as famílias em Gaza: ele liderou a luta contra o Hamas em 2007. “Acho que isso é uma ilusão”, diz Michael Milstein, coronel da reserva do exército israelense e analista do Centro Moshe Dayan, um think tank em Tel Aviv. “Eu nem tenho certeza se ele gostaria de voltar. Ele ficaria preocupado que as pessoas o quisessem morto.”

O caso de Dahlan aponta para um problema maior. Os palestinos estão divididos há quase duas décadas. A divisão é em grande parte culpa deles: embora os líderes do Hamas e da Autoridade Palestina se reúnam a cada dois anos para defender a reconciliação da boca para fora, nenhuma das partes quer chegar a um acordo. Mas o cisma também foi exacerbado pela política de dividir para governar de Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense, que a considerou uma ferramenta útil para frustrar o sonho palestino de um Estado independente. “Netanyahu tinha uma estratégia ruim de manter o Hamas vivo e forte”, diz Ehud Barak, antigo primeiro-ministro israelense.

Tanto o Hamas como a AP governam os seus estados como regimes autoritários de partido único. Em 2021, Nizar Banat, um crítico de Abbas, foi espancado até à morte pela polícia palestina na sua casa em Hebron. Aqueles que se opõem ao Hamas em Gaza correm o risco de tortura e execução. A maioria dos palestinos opta por manter o silêncio, evitando a política e concentrando-se nas suas lutas quotidianas.

A sondagem mais recente do Centro Palestino de Estudos Políticos e Pesquisas (PCPSR) concluiu que 65% dos habitantes de Gaza votariam em Ismail Haniyeh, o líder do Hamas, numa corrida presidencial frente a frente contra Abbas (que perderia o Cisjordânia também). O Hamas obteria 44% dos votos em Gaza numa votação parlamentar, enquanto o Fatah, a facção de Abbas, obteria apenas 28%.

Entre a cruz e a espada

À primeira vista, isto sugeriria um apoio duradouro ao Hamas. Mas essas sondagens oferecem apenas uma escolha binária entre militantes e incompetentes. Um total de 80% dos palestinos querem a demissão de Abbas. Horas depois da explosão do hospital, ocorreram protestos em cidades da Cisjordânia, onde os manifestantes gritavam: “O povo exige a queda do presidente”. Ele tem 87 anos e não tem um sucessor claro. Nenhum de seus possíveis substitutos inspira muito entusiasmo.

Numa hipotética corrida entre Haniyeh e Muhammad Shtayyeh, o insípido primeiro-ministro da Palestina, o primeiro venceria por uma margem de 45 pontos em Gaza e 21 pontos na Cisjordânia. Mais uma vez, isto é menos uma prova da popularidade de Haniyeh do que da falta de popularidade de Shtayyeh: uma sondagem realizada em 2019, após os seus primeiros 100 dias no cargo, revelou que 53% dos palestinos nem sequer sabiam que ele era o primeiro-ministro.

Perguntas abertas produzem resultados mais reveladores. Quando o PCPSR pediu aos palestinos que nomeassem o seu sucessor preferido para Abbas, a maioria disse que não sabia. A segunda resposta mais popular, tanto na Cisjordânia como em Gaza, foi Marwan Barghouti, um membro da Fatah que cumpre múltiplas penas de prisão perpétua numa prisão israelense por orquestrar ataques terroristas que vitimou civis. Várias das outras principais escolhas, como Dahlan e Khaled Meshal, antigo líder do Hamas, nem sequer vivem nos territórios palestinos.

Exilados, prisioneiros – ou ninguém: a vida política palestina está moribunda. Os palestinos culpam Israel por esta situação lamentável, argumentando que a falta de conversações de paz significativas privou a Palestina da sua razão de ser. “Acho que Abbas será o último presidente palestino”, diz Khatib. “Toda a ideia da Autoridade Palestiniana é que se trata de uma transição para um Estado palestino. Se não houver horizonte político, a AP se torna irrelevante.”

Os israelitas afirmam que a AP se auto minou através da corrupção desenfreada. Bilhões de dólares em ajuda externa foram desviados ao longo das últimas três décadas para comprar vilas luxuosas na Jordânia e para encher contas bancárias na Europa. Solicitados a nomear os principais problemas da sociedade palestina, mais pessoas citam a corrupção do seu próprio governo (25%) do que a ocupação de Israel (19%).

Há culpas em número suficiente para compartilhar. O resultado, porém, é que a Fatah é provavelmente irredimível aos olhos da maioria dos palestinos, um movimento de libertação que se tornou caucificado e decadente. Nos últimos anos, até mesmo alguns israelenses começaram a questionar-se se o Hamas poderia tornar-se um interlocutor, seguindo o mesmo caminho que o Fatah fez décadas antes, de militantes violentos a burocratas dóceis.

Não só o Hamas parecia concentrado em tentar melhorar a economia de Gaza, como alguns dos seus líderes também pareciam receptivos a uma solução de dois Estados. Isso teria sido uma mudança notável para um grupo cuja carta apelava à destruição de Israel. No ano passado, Bassem Naim, membro da liderança política do grupo em Gaza, disse a um correspondente que estava disposto a aceitar “um Estado nas fronteiras de 1967”. Ghazi Hamad, outra autoridade política, havia dito a mesma coisa um ano antes.

Tais pensamentos agora parecem ingênuos. Milstein foi um dos poucos israelenses proeminentes que alertou, muito antes do massacre, que o aparente pragmatismo do Hamas era apenas um estratagema. A sua opinião, justificada pelos últimos acontecimentos, é agora quase universal em Israel. Mesmo que o Hamas estivesse disposto a participar nas conversações de paz, um público israelense furioso e enlutado não seria um parceiro disposto: a grande maioria dos israelenses quer destruir o Hamas e não recompensá-lo.

Duas outras questões moldarão o futuro de Gaza. Uma delas é o papel que os estados árabes irão desempenhar. Em conversas privadas durante a semana passada, várias autoridades árabes apresentaram a ideia de uma força estrangeira de manutenção da paz para o enclave – mas a maioria rapidamente acrescentou que o seu país não estava ansioso por participar.

O Egito não é popular em Gaza, tanto porque se juntou a Israel no bloqueio do território, como devido à sua história anterior como governante de Gaza de 1948 a 1967. Os Emirados Árabes hesitariam em desempenhar um grande papel. “Não agimos sozinhos”, diz um diplomata dos Emirados. O mesmo provavelmente se aplica à Arábia Saudita.

Israel provavelmente vetaria qualquer papel do Qatar, um dos países com maior influência em Gaza. Durante anos, o emirado ajudou a estabilizar a economia de Gaza com a bênção de Israel, distribuindo até 30 milhões de dólares por mês em pagamentos de assistência social, salários de funcionários públicos e combustível gratuito. Mas o seu apoio ao Hamas – alguns dos líderes do grupo vivem lá – irá agora torná-lo suspeito. “Toda a estratégia de Israel durante a última década foi confiar no Qatar”, diz Milstein. “Uma das lições que deveríamos aprender com esta guerra é que não deveríamos permitir mais envolvimento do Catar.”

Embora os estados árabes não queiram proteger Gaza, podem estar dispostos a ajudar a reconstruí-la. Após a última grande guerra, em 2014, os doadores prometeram 3,5 bilhões de dólares para a reconstrução (embora, no final de 2016, tivessem desembolsado apenas 51% desse montante). A conta será ainda maior desta vez.

A outra questão é o que acontecerá com a AP. As pesquisas dizem que metade dos palestinos acham que deveria ser dissolvida. Fazer isso privaria muitos deles de rendimento (a Autoridade Palestina é o maior empregador na Cisjordânia) e provavelmente levaria a mais violência. Mas também aumentaria os custos da ocupação de Israel e, talvez, forçasse o regresso questão Palestina à agenda política de Israel, depois de duas décadas em que o assunto raramente foi discutido. “É a única carta na manga que lhe resta”, diz um antigo confidente de Abbas.

Não existe uma solução duradoura apenas para Gaza. Apesar do longo cisma, os palestinos ainda se consideram parte de um sistema político mais amplo. De qualquer forma, a faixa é demasiado pequena e desprovida de recursos naturais para prosperar por si só. A sua economia depende de Israel: tudo, desde as plantações de morangos às fábricas de móveis, depende das exportações para o seu vizinho mais rico. Independentemente de quem assuma o controlo, Gaza não será nem estável nem próspera como um pequeno Estado isolado.

A única forma de trazer tranquilidade duradoura a Gaza é através de uma resolução mais ampla do conflito israelense-palestino. Se a perspectiva de uma solução negociada se evaporar completamente, alerta Khatib, “com ela, a liderança moderada desaparecerá”. Israel pode até decapitar o Hamas. Mas é muito menos claro que algo melhor tomará o seu lugar.”

In “centrão” we trust

Tenho bons amigos que realmente acham que, se não estamos em uma ditadura, ao menos estamos caminhando firmemente para nos tornarmos uma, e a inelegibilidade de Bolsonaro seria mais um tijolo dessa construção. Será que é o caso?

Ninguém gosta de ser chamado de ditador. Outro dia, Joe Biden, na sua trocentésima gafe, deixou escorregar que a China é uma ditadura. Foi um Deus nos acuda, com o governo chinês pedindo explicações. Lula diz que Maduro não é ditador, que a Venezuela é até democrática demais. A ditadura militar teria sido uma “ditabranda”, com Supremo e Congresso funcionando normalmente (a não ser por “breves períodos”), rodízio de poder e até eleições! E, claro, as pessoas que acamparam em frente aos quarteis até outro dia estavam implorando intervenção militar de modo a evitar que uma ditadura assumisse o país…

Mas afinal, o que caracteriza uma ditadura? Talvez pudéssemos caracterizá-la como o oposto da democracia, mas daí teríamos que definir o que vem a ser democracia, o que nos deixa com um problema circular nas mãos.

Para fugir das impressões e vieses pessoais, talvez a forma mais objetiva de classificar um regime como mais ou menos demcorático seja através de métricas bem definidas na literatura da ciência política. A Economist Inteligence Unit procura fazer justamente isso, com o seu Democracy Index.

O Democracy Index é calculado anualmente, e se baseia em 5 pilares: 1) Processo eleitoral e pluralismo, 2) Funcionamento do governo, 3) Participação política, 4) Cultura política e 5) Liberdades civis. Cada um desses pilares recebe uma nota de 0 a 10, formando o índice total de cada país. Na última edição, de 2022, os 5 países mais democráticos foram Noruega, Nova Zelândia, Islândia, Suécia e Finlândia. Já os 5 menos democráticos foram Afeganistão, Myanmar, Coreia do Norte, Rep. Centro Africana e Síria. O Brasil ficou em 51o lugar (em um ranking de 167 países), com um score de 6,78 pontos (entre um máximo de 9,81 e um mínimo de 0,32 pontos). O Brasil, segundo este índice, não parece ser uma ditadura, ainda que não seja uma democracia perfeita.

Onde o Brasil perde mais pontos? Vejamos:

– Processo eleitoral e pluralismo: 9,58 pontos (equivalente à Suécia)

– Funcionamento do governo: 5,00 pontos

– Participação política: 6,67 pontos

– Cultura política: 5,00 pontos

– Liberdades Civis: 7,65 pontos

Podemos observar que nossos maiores problemas estão no “funcionamento do governo” e na “cultura política”. O que vem a ser isso?

Para medir o “funcionamento do governo”, a Economist mede coisas como o poder de lobbies sobre o funcionamento do governo, se há “accountability” do governo em relação aos cidadãos, nível de corrupção e a confiança da população nos políticos e nos partidos. Bem, não é à toa que não nos saímos tão bem nesse quesito.

Já a “cultura política” é medida principalmente através de pesquisas de percepção da população em relação a quesitos como “desejo de um líder forte ou militar que se sobreponha às instituições”, ou “desejo de um governo de tecnocratas”, ou a percepção da democracia como insuficiente para manter a ordem. Em países onde governos democraticamente eleitos têm falhado em fazer entregas à população, é natural que desejos desse tipo aflorem na população.

De qualquer modo, parece claro que, de acordo com o índice, em quesitos como “eleições livres” e “liberdades civis” estamos longe de sermos uma ditadura. E é justamente a esses dois quesitos que esses meus amigos se apegam ao afirmar que estamos caminhando para uma ditadura. Essa percepção não encontra respaldo em uma medição imparcial.

Mas o problema não seria o estado atual da coisa, mas a tendência. Como esse índice tem se comportado no tempo? É o que podemos observar no gráfico abaixo.

De fato, houve uma deterioração do índice brasileiro a partir de 2015, com todos os eventos que se seguiram à Lava-Jato. Provavelmente tivemos uma piora significativa sobre a visão que a população tem sobre a classe política e a democracia em geral. Mas note como o índice cai de um pico de 7,4 para o atual 6,8, uma queda de 0,6 pontos. Muito diferente do que um país como a Venezuela (gráfico abaixo) sofreu, de aproximadamente 5 pontos para 2 pontos no mesmo período. Uma queda de 3 pontos, em um movimento de clara deterioração das condições democráticas.

Claro, nada garante que não sigamos o mesmo caminho da Venezuela, mas a magnitude da deterioração é de outra ordem de grandeza.

Minha particular percepção é a seguinte: o Brasil é uma roda-gigante, em que os que estão por baixo estarão por cima em algum momento, e vice-versa. Em cada fase, o lado que está por baixo acusa o lado que está por cima de “anti-democrático”. Foi assim durante o processo de impeachment, e está sendo assim agora, no inelegibilidade de Bolsonaro. Em ambos os casos, as instâncias competentes tomaram decisões que desagradaram uma parcela da população, minando a confiança nas instituições democráticas. Mas, bem ou mal, as instituições mambembes do Brasil estão aí, fazendo a roda gigante girar. O chavismo comanda a Venezuela há 24 anos, e não há a mínima perspectiva de que a coisa vai mudar. Aqui, o “centrão” da política acaba por cortar as asas de quem tem um projeto chavista para o país, seja à esquerda, seja à direita. O Brasil nunca será o suprassumo da democracia, mas é bem difícil que uma força política se torne hegemônica na geleia real que é a nossa democracia. In “centrão” we trust.

O limite para a má gestão sempre chega

A Economist desta semana traz uma pequena matéria sobre as agruras da Bolívia. O Banco Central do nosso vizinho começou a vender dólares diretamente para o público, porque, aparentemente, as verdinhas acabaram nas casas de câmbio. E o BC parou de publicar estatísticas sobre as reservas internacionais, sinal claro de que estão chegando ao fim. Os bonds bolivianos no mercado externo estão pagando apenas 48 centavos por dólar.

A revista lista três fatores para os bolivianos terem chegado nesse estágio:

1) Apostaram que o boom de commodities iria durar para sempre;

2) Atrelaram sua moeda ao dólar e assim ficaram e

3) Foram hostis ao capital estrangeiro, nacionalizando boa parte da infraestrutura do país.

Claro, existem os fatores de curto prazo: taxas de juros altas no mundo e a guerra na Ucrânia são dois deles. Mas estes fatores atingiram igualmente outras economias, sem os mesmos efeitos. O presidente argentino (que desistiu de disputar a reeleição), põe a culpa dos problemas da economia argentina na maior seca do século, além dos dois fatores listados acima. A questão é que toda economia, mais cedo ou mais tarde, sofre choques externos. Se a lição de casa é feita, esses choques externos podem ser absorvidos. É a diferença entre uma família que tem reserva de emergência de outra que não tem. Acidentes acontecem, o que muda é como estamos preparados para enfrentá-los.

Gostaria de chamar a atenção para o timing da coisa: Evo Moralez assumiu a presidência da Bolívia em 2006, surfou a onda das commodities até 2011 e, desde, então, a Bolívia vem em uma longa descendente. Toda crise financeira se desenvolve lentamente e, depois, de repente.

As consequências da má administração de uma economia não aparecem imediatamente. Há maneiras de ir levando com a barriga, até que, de repente, não há mais. Por isso, acho meio ridículo apontarem a bolsa ou o câmbio em determinado dia como prova de que tal e qual medida do governo foi bem ou mal recebida pelo mercado. Não é assim que a coisa funciona. Más políticas serão punidas pelo mercado, mais cedo ou mais tarde. Pode levar anos, mas as consequências sempre vêm depois, como diria o conselheiro Acácio.

No Brasil, já tínhamos caído no precipício (ia dizer que estávamos à beira, mas 8% de queda de PIB em dois anos é um precipício), quando nosso sistema político arrumou um jeito de colocar o país nos trilhos novamente. Hoje, temos um novo governo de esquerda e, como diz a Economist, as dificuldades da Bolívia devem servir como um aviso para a América Latina. Nossa situação é muito mais confortável do que a da Bolívia, tanto em termos de reservas internacionais quanto em termos de política cambial, mas nada é tão bom que sempre dure. Políticas ruins nos levarão novamente para o buraco, mesmo que demore anos. Então, só nos restará o Centrão para nos colocar novamente nos trilhos.

O caminho de volta do politicamente correto

Três textos publicados no Estadão de ontem e hoje estão intimamente relacionados, e demonstram como os americanos já estão voltando pelo caminho que nós aqui ainda estamos percorrendo.

O primeiro é do colunista Fareed Zakaria, publicado ontem, conclamando os democratas a prestarem mais atenção a pautas que realmente fazem a diferença na vida das pessoas e a deixarem de lado os “pronomes neutros”, a imigração ilegal, a demonização da polícia e outras pautas que interessam a minorias minúsculas e irritam uma parcela significativa da população que, de outra forma, estaria disposta a votar nos democratas.

O segundo texto é da Economist, traduzido hoje no Estadão, defendendo exatamente a mesma ideia.

O terceiro texto é de Luiz Sérgio Henriques, acusando a “extrema-direita” brasileira de atacar “valores seculares da modernidade”. Sob esse rótulo, sabemos que se abrigam exatamente as mesmas ideias que Zakaria e a Economist estão agora conclamando os liberais americanos a colocarem em segundo plano para terem alguma chance eleitoral.

Aqui no Brasil, a sorte de nossa esquerda é ter um Lula, e não um Biden, liderando a agenda. Lula pode ser tudo, menos politicamente correto. Isso que Zakaria e a Economist estão defendendo, Lula sabe de velho. Se fosse depender de intelectuais como Luís Sérgio Henriques, Bolsonaro não teria com que se preocupar, venceria todas as eleições com os pés nas costas.

Ativismo judicial no dos outros é refresco

Ativismo judicial. Já ouviu falar neste termo?

Aqui no Brasil, o bolsonarismo tem sido a mais vocal, mas não única, força política a condenar o ativismo do nosso Supremo. Aqui temos um Supremo predominantemente progressista contra um Executivo conservador.

Nos EUA os papeis se invertem: um governo progressista contra um Supremo conservador. O presidente Biden rotulou a decisão da Suprema Corte de anular a Roe vs. Wade de “outrageous”, revoltante. E a Economist faz coro, dizendo que o Supremo não pode ter este tipo de “ativismo”.

No fundo, mais uma vez, não se trata de um problema conceitual sobre as atribuições da Corte Suprema, mas sobre o tipo de decisão que a Corte toma. Se me agrada, está cumprindo o seu papel. Se não me agrada, está sendo ativista. E isso vale para todas as colorações políticas.

A mensagem da Glencore para o planeta

A Economist vem mandando a real sobre a agenda ESG, principalmente no que se refere à sua influência sobre os investimentos. Em reportagem de sua última edição (Glencore’s message to the planet), a revista aborda o estranho caso da empresa suíça Glencore, que vem comprando ativos de produção de carvão na contramão da agenda de preservação ambiental – e com sucesso.

A matéria começa dizendo que o consumo de carvão para a produção de energia bateu recorde em 2021, mesmo depois de anos de pregação contra o seu uso. Esse consumo fez com que os preços da commodity atingissem níveis recordes em outubro deste ano, o que causou a forte alta das ações da Glencore.

A revista então chama a atenção para um pequeno fundo ativista, o Bluebell Capital, que vem tentando forçar a Glencore a vender seus ativos de produção de carvão, com base na agenda ESG. Mas sua iniciativa vem caindo em ouvidos moucos. Ao que parece, segundo a reportagem, os investidores têm mudado a sua visão a respeito do carvão. Não sem ironia, a revista afirma que este “é um sinal de quão ‘flexíveis’ podem ser os investidores quando as metas ESG batem de frente com o objetivo de maximizar retornos financeiros”.

Voltando um pouco no tempo, a reportagem lembra que a mineradora Rio Tinto foi a primeira a abandonar o carvão, isso em 2018. Logo depois, suas concorrentes, incluindo a Glencore, apresentaram planos na mesma direção. Em meados de 2021, a Anglo American separou a sua subsidiária de carvão, Thungela Resources, com o intuito de vendê-la. No entanto, depois de poucos meses, as ações da Thungela haviam quadruplicado de preço. Vendo isso, a Glencore, que havia acabado de aprovar um plano de venda de seus ativos de carvão, comprou a participação nesses mesmos ativos da Anglo American, e a mineradora BHP anunciou que vai segurar a venda de seus ativos de carvão.

A mudança de atitude veio dos próprios investidores, segundo a revista. A Blackrock, maior gestora do mundo e profundamente dedicada à pauta ESG, além de outros investidores, teriam chegado à conclusão de que é preferível que esses ativos permaneçam em mãos de empresas listadas em bolsa do que serem vendidas para fundos opacos de private equity. Novamente usando da fina ironia inglesa, a revista sugere que talvez os investidores não fossem tão benevolentes se os preços das ações estivessem caindo.

O fato é que, e a revista já vem chamando atenção para isso há algum tempo, o uso do carvão não vai sumir do mapa simplesmente porque os ativos foram vendidos pelas grandes mineradoras. Enquanto a demanda estiver aí – e a matéria afirma que a demanda dos países mais pobres continuará existindo durante muito tempo – os ativos continuarão existindo, só que longe dos olhos dos investidores.

A solução? A Economist sugere que somente uma ação concertada dos governos para a taxação das emissões de carbono e o redesenho dos sistemas de geração de energia pode diminuir a demanda pelo carvão. Mas, já falamos sobre isso aqui: taxar carbono significa aumentar o custo da energia. Qual governante está realmente disposto a colocar a mão nessa cumbuca?

O fato é que é mais fácil falar do que fazer. Como diz um desesperançado Nizan Guanaes em recente artigo no Brazil Journal, “acho que estamos mergulhados em um mar de blá blá blá. Se todas as empresas são ESG, quem está desmatando o mundo, emporcalhando os mares, aquecendo a atmosfera?”

Quem deveria policiar a internet?

Eu juro que não li este artigo da Economist antes de escrever o meu último, a respeito do Facebook. Chegamos à mesma conclusão: os políticos não põem o pé no pantanoso terreno da censura na Internet e “simulam estarrecimento” (nas palavras da Economist) e “patrocinam sessões bombásticas no Congresso” (nas palavras do meu artigo) a respeito da falta de ação das redes sociais.

O fato é que fazer censura (e é disso que se trata, por mais feia que seja a palavra) vai contra a própria essência da democracia. É óbvio que há conteúdos que não deveriam estar circulando por aí. A quadratura do círculo é justamente quem define, e com quais critérios, o que não deveria estar circulando por aí. No entanto, uma coisa é certa: se alguém deveria realizar essa tarefa, não deveriam ser empresas privadas, com critérios pouco transparentes. Só estão agindo, segundo a Economist, por omissão do poder público.

E se é o poder público que deveria censurar as redes, fica a questão: um poder público que censura conteúdos poderia ainda ser considerado democrático? Antes de responder, outra questão: pode uma democracia censurar conteúdos em nome da preservação do regime democrático?

Quem vai pagar a conta?

Rindo até 2100, quando o planeta estará 3oC mais quente e o mundo tal qual o conhecemos terá acabado.

A capa da Economist traz, para quem acompanha esta página, exatamente o que venho falando aqui nos últimos anos.

Copiando e colando o início da reportagem:

Since May the price of a basket of oil, coal and gas has soared by 95%. American petrol prices have hit $3 a gallon. Blackouts have engulfed China and India. Britain has turned its coal-fired power stations back on. And Vladimir Putin has just reminded Europe that its supply of fuel relies on Russian goodwill. The panic is testament to how much modern life depends on abundant energy: without it, bills become unaffordable, homes freeze and businesses stall.”

Vou traduzir a última frase, que é chave: “O pânico atesta o quanto a vida moderna depende de energia abundante: sem ela, as contas se tornam impagáveis, as casas congelam e os negócios param”.

Venho chamando a atenção para a impossibilidade prática de transformar a matriz energética sem mudar uma vírgula de nosso estilo de vida. O (triste) fato é que a energia limpa é mais cara que a energia suja, por ser intermitente. Se fosse mais barata, não seriam necessários congressos e mais congressos sobre o clima. Não houve congressos para a substituição das carroças pelos automóveis, nem da máquina de escrever pelo computador. A tecnologia melhor naturalmente substitui a pior. No caso, a energia limpa é economicamente pior que a suja. Claro, sempre se pode dizer que a energia suja é mais cara se forem considerados seus efeitos sobre o clima, mas o seu custo não está sendo corretamente precificado. Pois então, a reportagem da Economist é sobre isso: começamos a precificar corretamente a energia suja. O resultado é o aumento brutal dos preços, afetando a atividade econômica. Um mundo de energia limpa é um mundo mais pobre, pois gastamos mais com energia. Um mundo com uma qualidade de vida pior.

Governos se reúnem em congressos, de onde tiram metas ambiciosas de redução de gases de efeito estufa. Investidores pressionam empresas para que assumam a sua parte nesse bom propósito. No entanto, ninguém ainda teve a coragem de contar para o distinto público que tudo isso significa mais inflação e menos crescimento econômico. Estamos agora todos “descobrindo” isso, e não acho que a maioria esteja gostando do que está vendo.

Aos espíritos mais sensíveis, explico que minha risada que abriu esse post não é, de maneira alguma, de escárnio. Trata-se apenas de uma reação a uma certa ingenuidade que parece perpassar toda essa discussão, como se houvesse um pequeno grupo de governos e empresas muito maus que estivessem segurando as mudanças que beneficiariam a maior parte da humanidade. Estamos descobrindo, horrorizados, que é a maior parte da humanidade que vai pagar a conta da transição.

A escala do politicamente correto

A Economist repercute uma pesquisa interessante, realizada pelo instituto Ipsos, por encomenda do Kings College de Londres. 23 mil pessoas foram questionadas em 28 países. A pergunta era a seguinte (tradução livre minha):

“Algumas pessoas pensam que se deve ter cuidado ao falar com ou sobre pessoas de diferentes origens ou condições. Outras pensam que muitas pessoas simplesmente se ofendem muito facilmente. Onde você se situa nessa escala?”

A escala vai de 0 a 7, sendo 0 se você acha que o mundo está muito chato e toda essa onda de politicamente correto é um porre e 7 se você acha que as pessoas precisam ser respeitadas em seus sentimentos e se devemos tomar cuidado com as palavras usadas.

O resultado está no gráfico abaixo, para alguns países selecionados pela Economist, o Brasil incluído.

Com base nesse gráfico, fiz o seguinte cálculo: subtraí o percentual de notas 6 e 7 do percentual de notas 0 e 1. Escolhi essas notas porque mostra mais convicção nas duas pontas do espectro. Fiz um outro gráfico, onde os resultados mais positivos indicam povos que acham que o mundo está ficando muito chato e resultados negativos indicam povos politicamente corretos.

O Brasil ficou entre os países mais politicamente corretos. Curiosamente, e esta é uma característica para a qual a Economist chamou a atenção, pessoas de países mais democráticos tendem a ser menos politicamente corretos, enquanto pessoas de países mais autoritários tendem a ser mais politicamente corretos, o que pode estar ligado, segundo a revista, ao fato de as pessoas simplesmente terem mais cuidado ao falar, de modo geral. Na verdade, a Economist faz a correlação com a liberdade de imprensa, o que vem a dar na mesma.

E você, onde está nesse espectro?

O preço do ar que respiramos

Os críticos mais acerbos do capitalismo normalmente encrencam com o fato de que tudo tem um preço. “Só falta cobrarem pelo ar que respiramos!”, é a frase que resume a revolta.

Pois bem, a Covid-19 trouxe o incômodo fato de que temos também que pagar pelo ar que respiramos, caso não consigamos, por alguma limitação física, puxar o oxigênio da atmosfera com nossos próprios pulmões.

E, adivinha: para ter disponível esse oxigênio, é necessário investir em fábricas de cilindros de oxigênio, para que a produção atenda à demanda. Além disso, é necessário investir em logística, para que esses cilindros cheguem aos hospitais.

A Economist trás um gráfico interessante esta semana, mostrando a demanda por oxigênio hospitalar ao redor do mundo. Obviamente, os países mais populosos e com mais casos de Covid têm as maiores necessidades, pois a medida está em valores absolutos. De qualquer modo, mostra a dramaticidade da coisa.

Não sou médico, mas dizem que podemos sobreviver 5 semanas sem comida, 5 dias sem água, mas não mais que 5 minutos sem oxigênio. Como diria o Galvão Bueno, o jogo vai ficando dramáááático!

A vida não tem preço, mas sempre custa alguma coisa para ser mantida. E, se custa alguma coisa, não se engane, alguém sempre vai pagar, seja o regime comunista, socialista ou capitalista. Resta saber quem. No final, se ninguém pagar, é a vida que será sacrificada.