Raras vezes um artigo meu recebeu tantas críticas quanto o de ontem, a respeito do parcelado sem juros. As críticas podem ser agrupadas em três tipos de argumentos: 1) lobby dos bancos, 2) liberdade dos agentes econômicos e 3) estratégia comercial legítima. Como demonstração de apreço pelo contraditório, vou procurar, mui respeitosamente, argumentar contra cada uma dessas tres objeções.
O primeiro argumento diz que cobrar juros nas compras parceladas só interessa aos bancos e, portanto, deve ser algo ruim. Antes de descartar liminarmente esse “argumento” conspiracional, afirmo que é justo o oposto: ao permitir a compra à vista com desconto, o banco é sacado para fora do esquema, com ganhos para vendedores e compradores. Demonstro isso mais à frente.
O segundo argumento é filosófico: a liberdade deve prevalecer nas relações comerciais. Portanto, qualquer arranjo livremente aceito entre as partes deve ser respeitado. Alguns amigos, inclusive, acharam estranho que eu, supostamente defensor de princípios liberais, compactuasse com ideias de regulação e limites impostos pelo Estado na livre relação entre os agentes econômicos. Essa objeção é séria e merece uma resposta mais elaborada.
Em primeiro lugar, e de maneira mais genérica, liberalismo não é anarquismo. Uma economia liberal não vive sem regras e regulações. Inclusive, a segurança jurídica, essencial para o crescimento econômico, supõe a existência de regras. Sendo assim, ser contra qualquer regulação não é ser liberal, é ser anarquista, o que é outra coisa.
Em nosso caso específico, a liberdade somente pode ser plenamente exercida se todos os agentes econômicos estiverem plenamente informados sobre os termos da troca que está sendo realizada. Caso contrário, não há verdadeira liberdade, apenas um seu arremedo. Se eu sou informado de que há uma cama elástica me esperando se eu pular pela janela, quando na verdade não há nada, minha decisão de pular não foi livre, pois não fui devidamente informado das consequências.
Pode-se argumentar que a tarefa de buscar informações é, no caso, do comprador. Caberia a mim olhar pela janela e verificar se há mesmo uma cama elástica me esperando caso eu pule. Nesse sentido, caberia ao comprador simplesmente saber que há juros embutidos no parcelado sem juros, assim como cabe ao comprador verificar os preços da concorrência, não cabendo ao vendedor informá-los. É um bom ponto, a menos de um problema: os preços da concorrência são acessíveis, ao passo que os juros são inacessíveis. Eles estão lá, embutidos no preço, e não há como saber o seu montante. E pior: a propaganda AFIRMA que não há juros. Trata-se de propaganda enganosa, que envenena qualquer relação comercial livre. Um dos objetivos principais da regulação econômica é justamente eliminar essas assimetrias informacionais, tópico que exploraremos a seguir.
O terceiro argumento é mais prático e estipula o seguinte: o comerciante escolhe obter menos margem ao vender à prazo pelo preço à vista, tendo como contrapartida um maior volume de vendas. Em outras palavras, o vendedor sacrifica a sua margem unitária para vender mais e, supostamente, obter lucros maiores na operação como um todo, somente possível porque o parcelado sem juros permitiu vender um volume maior. Sendo assim, a prática não teria nada de imoral, seria apenas mais um arranjo comercial entre as partes envolvidas.
Este argumento é bem elaborado, e confesso que levei algum tempo para entender o seu problema. Vejamos um exemplo numérico. Um comerciante compra uma mercadoria por 70 e vende por 100. Sua margem, portanto, é de 30. No entanto, para aumentar o volume de vendas, o comerciante aceita parcelar a compra em 10 vezes sem juros. Neste caso, ao custo de 70 da mercadoria junta-se o custo financeiro dessa operação, pois o comerciante precisa do dinheiro à vista. Ao antecipar esse recebível, o comerciante obtém 95 ao invés dos 100, sendo 5 o custo financeiro. Sua margem, portanto, passa a ser de 25, e não mais de 30. Tudo muito bem até aqui: o comerciante recebeu 95, a instituição financeira recebeu 5 e o consumidor pagou o equivalente a 97 (as 10 parcelas de 10 trazidas a valor presente pela taxa de juros de um investimento qualquer). A diferença de 2 entre aquilo que o consumidor pagou (97) e o comerciante recebeu (95) é a margem da instituição financeira, o chamado spread bancário.
A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: por que o comerciante simplesmente não coloca o preço da mercadoria em 96? Nesse preço, comerciante e consumidor estariam dividindo entre si o spread bancário: a margem do comerciante seria 1 a mais (25 para 26) e o preço para o consumidor seria 1 a menos (97 para 96). Por que simplesmente não eliminar a instituição financeira da jogada, em um jogo ganha-ganha? A resposta é simples: o jogo seria percebido como ganha-ganha somente se houvesse simetria de informações. Ocorre que a matemática acima é totalmente opaca para o consumidor. E é aí que entra a sacanagem: a imensa maioria entra nessa com a ilusão de que se trata de uma escolha sem custo algum. Aqui, voltamos à argumentação anterior: somente pode existir real negociação entre as partes quando ambas conhecem todos os termos do negócio. Parcelar sem juros pode ser uma boa estratégia mercadológica para o comerciante, pois aumenta as suas vendas. Mas não o é para o consumidor, que é induzido a comprar uma mentira.
Nesse sentido, o mercado construído pelo parcelado sem juros é um exemplo adaptado do que o economista e prêmio Nobel George Akerlof chamou de “lemon market”, um mercado em que o vendedor tem mais informações sobre o produto que está vendendo do que o comprador. O típico exemplo é o mercado de carros usados. Adaptando o conceito ao nosso caso, a mercadoria vendida a prazo “sem juros” é mais cara do que o consumidor é levado a acreditar. O vendedor sabe disso, mas não o consumidor. Para resolver essa assimetria, Akerlof sugere, entre outras coisas, aperfeiçoar o sistema informacional, de modo a diminuir a assimetria de informações entre vendedores e compradores. Cobrar juros ao parcelar uma compra é uma maneira de fazê-lo.