Demonizar serve para fazer política, não para resolver problemas

Relatório preliminar do ONS responsabiliza as usinas eólicas e solares do Nordeste pelo apagão de agosto. A coisa é mais ou menos a seguinte.

Por algum motivo, a linha de transmissão Quixadá-Fortaleza caiu, mais ou menos como um disjuntor cai quando há alguma sobrecarga em uma residência. Coloco o mapa abaixo para dar uma ideia do tamanho da linha (165 km) em relação ao Brasil. Obviamente, não pode ter sido a única explicação para que um terço do país, de norte a sul, ficasse sem energia. E não foi.

Em casos como esses (que são mais ou menos comuns), há um sistema de backup, com a entrada em ação de geradoras dos arredores para compensar aquela linha que caiu. Ocorre que, nos modelos do ONS, as usinas eolicas e solares poderiam gerar muito mais do que efetivamente geraram naquele momento. Aparentemente, houve uma bela diferença entre o que os geradores informaram ao ONS e aquilo que efetivamente entregaram na hora do vamos ver. O relatório propõe uma série de mudanças para que isso não ocorra novamente, principalmente no que se refere à real capacidade dessas usinas.

Não se trata de demonizar as usinas eólicas e solares, que são muito úteis em uma matriz elétrica diversificada, mas apenas dimensionar corretamente a sua capacidade de entrega de energia. Demonizar é prática de quem quer usar qualquer assunto para ganhos políticos, como fez o governo Lula, ao atribuir o apagão à privatização da Eletrobrás. Trata-se de problema técnico que afeta milhões de brasileiros, e que deve ser tratado de maneira técnica.

Um estranho conceito de democracia

Maria Cristina Fernandes é a pena do PT no Valor Econômico. Hoje, por exemplo, defende a injunção que o governo Lula fez junto ao STF para ganhar os votos que perdeu no Conselho da Eletrobrás durante o processo de privatização.

Para quem não se recorda, a capitalização da Eletrobrás no ano passado só foi possível porque se limitou a 10% o poder de voto de qualquer acionista no Conselho. Como o governo ainda tem 40% das ações, o governo Lula pretende recuperar o poder de voto proporcional a esses 40%. Na prática, isso significa uma reestatização da empresa.

A operação só foi possível porque houve essa limitação. Se não houvesse, a empresa não estaria hoje capitalizada e pronta para investir. Se essa tentativa do governo prosperar, isso significará uma quebra de contrato, pois os investidores somente toparam capitalizar uma empresa que não tivesse a influência do governo, ainda mais de um governo do PT. Em linguagem popular, baterão a carteira dos investidores: o governo retomará uma empresa capitalizada, que não estaria capitalizada se os investidores soubessem de antemão que seriam sócios minoritários do governo.

Mas, pior do que a mão grande, são as justificativas desfiladas pela jornalista. Em primeiro lugar, afirma que, se houver problemas, a empresa vai pedir penico para o governo. Digamos que seja verdade, o que está longe de ser provável. E daí? Se for o caso, o governo determinará as condições para qualquer ajuda. Inclusive, reestatizar, se for o caso. Agora, vamos reestatizar hoje porque, no futuro, a empresa pode pedir ajuda ao governo. Tenha santa paciência.

Depois, a jornalista faz um paralelo estapafúrdio entre a Eletrobrás e o caso Americanas. O STF estaria sendo chamado a evitar que aconteça algo semelhante com a Eletrobrás. Oi? O que tem a ver o c com as calças? Quer dizer que a Eletrobrás, nas mãos do governo (do PT!) não vai ter nenhuma fraude? Faça-me o favor.

Mas é o terceiro ponto que mais nos interessa aqui, nesses tempos estranhos. A jornalista afirma que a privatização da Eletrobrás se deu “no período em que mais se afrontou a democracia, e não ficou imune a isso”. Ou seja, Maria Cristina Fernandes parece estar sugerindo que decisões do Congresso durante o governo Bolsonaro carecem de legitimidade, pois foram feitas durante um período, digamos, de déficit democrático. Nesse sentido, podemos revisar todas as leis aprovadas durante o governo Bolsonaro, pois não vivíamos em uma democracia legítima. Esse é o tipo de entendimento sobre democracia que nossos democratas defendem. Faz sentido, dentro do contexto. Afinal, democracia só existe de verdade quando minhas ideias prevalecem.

Precificando o risco PT

O ministro das Minas e Energia do governo Lula, Alexandre Silveira, voltou a questionar, ontem, a privatização da Eletrobrás. Seguindo o mantra do chefe, afirmou ser “injusto” que o governo detenha 40% do capital da empresa, mas que só possa indicar um de seus nove conselheiros.

O processo de privatização contou com lei própria, e teve o aval do TCU e do STF. Trata-se, portanto, de ato jurídico perfeito. Como tal, gerou efeitos que não podem ser revertidos sem o pagamento de indenização. Por exemplo, os investidores que compraram ações da Eletrobrás no leilão de privatização somente o fizeram porque o governo teria direito a apenas um conselheiro. Compraram ações de uma empresa privada, não de uma empresa de capital misto. Fosse esse o caso, o preço seria bem diferente. Portanto, qualquer mudança nesse status ensejaria ações de ressarcimento, dado que se comprou gato por lebre.

Haveria outra maneira de consertar a “injustiça”: vender as ações em poder da União, de forma a harmonizar o poder de voto com a participação no capital. A preços de hoje, o governo colocaria no bolso algo como R$ 30 bilhões pela sua participação. Aliás, esse era o objetivo de manter a participação de 40%: o governo se beneficiaria da esperada valorização da empresa como entidade privada, e poderia vender esse lote por um valor muito maior. A ingenuidade de quem modelou a venda não permitiu levar em consideração que essa participação de 40% seria usada por um governo do PT como desculpa para tentar reestatizar a empresa. Alguma dúvida de que, entre colocar R$ 30 bilhões no bolso ou usar a empresa para seus “interesses estratégicos”, um governo do PT optaria pela segunda alternativa?

O governo Lula tem batido na tecla dos investimentos em infraestrutura, muitos dos quais dependem de parceria com a iniciativa privada, através de PPPs. Qual será a segurança que os investidores terão em participar de uma parceria com todo jeito de caracú? O que será capaz de fazer, no futuro, o governo do PT para reparar “injustiças” nessas parcerias? Claro que os participantes dessas parcerias cobrarão um preço proporcional ao risco PT.

O ataque à privatização da Eletrobrás tem a mesma natureza do ataque à independência do BC. O PT não se conforma em não ter os meios de poder que agências governamentais e empresas estatais lhe dão para implementar suas políticas. É preciso dominar tudo, sem amarras, para “fazer o bem”. Mesmo que isso signifique atropelar regras mínimas de governança. Afinal, são detalhes que só atrapalham, diante do grandioso futuro que nos espera.

Suco de PT

Tem um trecho da entrevista do Haddad que eu gostaria de comentar à parte, pois é o indicativo de muitas coisas. Trata-se de seu comentário a respeito da privatização da Eletrobras.

A jornalista Miriam Leitão pergunta se os “jabutis” que foram colocados no projeto de privatização da empresa seriam revistos. Haddad não responde à pergunta. Afirma apenas que “foi um erro” privatizar com os jabutis. Isso é óbvio. Claro que teria sido melhor privatizar sem os jabutis. Mas não é isso o que ele pensa. A continuação da resposta deixa claro que, para o futuro ministro da Fazenda, teria sido melhor não privatizar de forma alguma. Aliás, essa resposta vale por um tratado de como foi e de como será um novo governo do PT.

Haddad começa dizendo que a Eletrobras ”foi vendida por R$ 30 bilhões”. Está errado. Quem pagou R$ 26,6 bilhões (não R$ 30 bilhões) para o Tesouro foi a própria Eletrobras, em um processo chamado de “descotização”. Rapidamente: em 2013, a Eletrobras foi obrigada, pelo então governo Dilma, a aderir aos termos da MP 579, que determinava cotas de fornecimento de energia a preços mais baixos do que aqueles praticados no mercado livre. Foi dessa maneira que Dilma “conseguiu” reduzir os preços da energia elétrica naquele ano. O que a Eletrobras fez agora foi pagar uma outorga para a União, de modo a readquirir o direito de vender a energia de suas usinas sem estar submetida a cotas. Digamos que esse valor tenha sido o “custo PT” para que a empresa pudesse ser privatizada. Portanto, não há que se falar em “preço de venda” neste caso. A venda se deu por uma oferta adicional de ações no mercado, não acompanhada pela União, de modo que esta deixou de ser majoritária. A União não vendeu uma mísera ação, continua sendo dona do mesmo número de ações que tinha antes da privatização. Mesmo assim, recebeu R$ 26,6 bilhões da outorga paga pela empresa. Que Haddad, o futuro ministro da Fazenda, faça esse tipo de confusão é, no mínimo, preocupante.

Em segundo lugar, Haddad afirma que o governo usou esse dinheiro para “comprar votos”. De quem? Dos mais pobres? Quer dizer que, quando o governo do PT faz programa social é por boniteza, e quando outro governo faz é por safadeza?

Por fim, a cereja que vale pelo bolo todo: “dói na alma” do futuro ministro ver uma empresa construída “por muitas gerações” ser vendida. Ele diz que “sabe o trabalho” que isso deu.

Sabe o quê, Haddad? Sabe o quê???

Haddad, você certamente sabe que o governo do PT pegou a Eletrobras com um patrimônio líquido de R$ 67 bi e valor de mercado de R$ 13 bi, e devolveu, em 2015, com um patrimônio líquido de R$ 42 bi e valor de mercado de R$ 9 bi. O prejuízo acumulado da empresa construída “por muitas gerações” nos 13 anos de governo do PT foi de R$ 13 bilhões, um bilhão para cada ano desse desgoverno. Isso sim, dói na alma. Será que foi a esse “trabalho” que Haddad se referia? Esse papinho mole de “trabalho de gerações para construir a empresa” vai bem para dirigente de grêmio estudantil. Na boca do futuro ministro da Fazenda, nos faz rir. De nervoso.

Temos aí, em apenas dois parágrafos, um suco de PT: 1) desconhecimento técnico, 2) mistificação e demonização dos adversários e 3) amor platônico por estatais quebradas pelos governos do PT. Sim, esse é o “mais tucano dos petistas”. Imagine o resto.

PS: hoje a empresa tem patrimônio líquido de R$ 111 bilhões e valor de mercado de R$ 98 bilhões. Ou seja, patrimônio líquido quase 3 vezes maior e valor de mercado mais de 10 vezes maior do que tinha quando o PT deixou o governo.

Balanço da economia no governo Bolsonaro

Chegando ao fim dos 4 anos de governo Bolsonaro, farei uma retrospectiva de seu governo do ponto de vista de políticas econômicas. Dividirei os eventos em positivos e negativos, de acordo com minha exclusiva e particular avaliação.

Eventos positivos:

– Reforma da Previdência: talvez a maior realização deste governo, a reforma da Previdência havia sido já “amaciada” durante o governo Temer, que não conseguiu levar adiante por conta do episódio Joesley. O governo Bolsonaro teve o mérito de retomar a discussão e conseguir aprovar uma reforma com o dobro da economia prevista na reforma de Temer. Teve a parceria de Rodrigo Maia no Congresso, o que não diminui o seu mérito, pelo contrário. A reforma aprovada está longe de ser suficiente, precisaremos discutir outra reforma em breve, mas o mérito dessa reforma foi ter aprovado o limite de aposentadoria por idade, agora é só aumentar a idade. O ponto negativo foi retirar categorias, como a dos militares, da reforma. Não era necessário para a aprovação, foi uma idiosincrasia do presidente.

– Aprovação de marcos regulatórios: reformas microeconômicas são tão importantes quanto as macro. O marco do saneamento, das ferrovias, a nova regulamentação do câmbio, a lei da liberdade econômica, são todas mudanças legislativas que permitirão, ao longo do tempo, um ganho enorme de eficiência dos investimentos.

– Autonomia do Banco Central: vivemos o ineditismo de um presidente eleito que não tem disponível o cargo de presidente do BC para nomear. Este é um avanço significativo para a segurança do arcabouço monetário brasileiro. A discussão sobre a autonomia já vinha amadurecendo, mas o governo Bolsonaro teve o mérito de aprová-la.

– Privatização da Eletrobrás: única privatização do governo Bolsonaro, mas uma privatização que vale por muitas. Veio às custas de vários jabutis que pesarão na contade luz do brasileiro nos próximos anos. Mas, apesar de tudo, melhor privatizada do que estatal. Privatizada, a Eletrobras poderá levantar o capital necessário para um plano de investimentos que permita aumentar a segurança energética do país.

Eventos negativos:

– Não encaminhamento das reformas tributária e administrativa. A tributária foi reduzida por Paulo Guedes a uma proposta de substituição dos impostos sobre a folha de pagamentos por algo como uma CPMF disfarçada, jogando fora anos de discussões em torno da PEC 45, que cria um IVA único. A administrativa passou longe de qualquer discussão séria.

– Ruído na relação com a Petrobras. Apesar de não ter havido interferência real nos preços, a troca constante de comando na estatal certamente não foi positiva para a empresa.

– Redução do ICMS sobre combustíveis e outras utilities. Os efeitos de curto prazo foram positivos (redução dos preços dos combustíveis), mas os efeitos de médio prazo serão negativos, pois os Estados precisam desses impostos para equilibrarem suas contas. A conta vai chegar mais à frente.

– Desmoralização da regra do teto de gastos. Para mim, a pior herança deste governo. Em outubro de 2020, Paulo Guedes chamou Rogério Marinho, então ministro do Desenvolvimento Regional, de “fura-teto”. Era a fase ortodoxa de Guedes. Um ano depois, Guedes protagonizou o que viria a ser conhecido como “waiver day”, em que jogou a toalha diante da mudança de critério para calcular o teto de gastos para o ano seguinte, 2022. O pior da pandemia já havia passado há muito, e ficou claro que o furo no teto ocorreu para turbinar os gastos em ano eleitoral. Com isso, legitimou-se qualquer desculpa para gastos adicionais, o que abriu caminho para a PEC da gastança proposta pelo governo eleito.

Considerando prós e contras, o balanço final do governo Bolsonaro na área econômica é, na minha opinião, regular. Podemos ver o reflexo disso nos preços dos ativos. Por exemplo, a bolsa denominada em dólar reflete tanto o movimento da bolsa quanto da moeda. A seguir, temos uma tabela com as rentabilidades em dólar dos principais índices de bolsa no mundo, no período que vai de 28/12/2018 a 28/10/2022 (véspera da eleição), da pior para a melhor:

  • Hong Kong: -42,6%
  • Seul: -12,0%
  • Londres: -4,9%
  • Ibovespa: -2,5%
  • Tóquio: +2,2%
  • Frankfurt: +8,4%
  • Shangai: +9,2%
  • Sidnei: +10,3%
  • México: +19,5%
  • Istambul: +24,6%
  • Bombaim: +40,1%

Podemos notar que a bolsa brasileira não foi a pior do mundo no período, mas ficou longe de ficar entre as melhores. Foi uma bolsa… regular.

Claro, o próximo governo, ao que tudo vem indicando, não promete ser melhor, muito pelo contrário. Mas, para quem esperava o “primeiro governo verdadeiramente liberal desde o descobrimento do Brasil”, acho que ficaram devendo.

A economia brasileira na era PT. Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

O setor elétrico era a “especialidade” da presidente Dilma Rousseff. Tendo sido secretária de energia no Rio Grande do Sul e ministra das Minas e Energia no começo do governo Lula, essa era, definitivamente, a sua praia. E, como veremos neste episódio, a presidente tinha ideias muito firmes, convictas e erradas sobre como reduzir as tarifas de energia elétrica.

O setor elétrico é muito complexo. Entender exatamente como são formadas as tarifas de energia elétrica é coisa para profissionais. Por isso, aqui vou procurar simplificar bastante a explicação, de modo que a maioria dos leitores possa entender o que aconteceu. Peço antecipadamente desculpas para aqueles que entendem do setor, caso encontrem alguma simplificação excessiva. Saibam que foi para o bem do entendimento da maior parte dos leitores. O que vai a seguir foi em grande parte baseado na tese de doutorado de Diogo Mac Cord de Faria, Regulação Econômica da Geração Hidrelétrica, de 2016, junto à Escola Politécnica da USP, além de notícias do jornal Valor Econômico. Logo no primeiro ano do governo Lula, em dezembro de 2003, uma Medida Provisória inspirada pela ministra Dilma Rousseff mostrou a que veio o governo do PT no setor. Segundo reportagem de 12/12/2003, a MP (que depois seria transformada na Lei 10.848/2004) trazia uma série de alterações no funcionamento do setor, que fortalecia o papel das estatais em relação à iniciativa privada.

Mas foi durante o governo Dilma que a intervenção estatal no bom funcionamento do setor se mostrou em todo o seu esplendor. É o que veremos a seguir.

O uso da Eletrobrás como indutor de preços mais baixos nos leilões de energia elétrica

Além de todos os usos, digamos, menos ortodoxos que as estatais propiciam, o PT gosta de estatais, entre outras coisas, porque permite ao governo operacionalizar políticas econômicas de seu interesse sem custos aparentes, pois estes são, em um primeiro momento, absorvidos no balanço das empresas. Com a Eletrobrás não foi diferente: a empresa foi extensivamente utilizada em várias frentes, de modo a viabilizar a política definida pelo seu acionista majoritário.

Um primeiro exemplo foram os leilões de linhas de transmissão. Para que os linhões sejam construídos, é preciso realizar leilões, em que as empresas oferecem lances que possam remunerar os seus investimentos. Ocorre que, por fatores que não vamos explorar aqui, os critérios determinados pela ANEEL tornavam esses leilões, em geral, pouco atrativos para empresas do setor privado. Ao invés de ajustar os critérios, o governo decidiu utilizar a Eletrobrás para viabilizar esses leilões, obviamente, com prejuízo para a empresa.

Entre 2008 e 2012, apenas 5% dos leilões não tiveram lances, dando a impressão de grande sucesso do modelo. A partir de 2013, no entanto, grande parte das subsidiárias da Eletrobrás foi impedida de participar dos leilões por conta de atrasos nas entregas dos empreendimentos decorrentes dos leilões vencidos anteriormente. A partir daquele ano, quase 50% dos leilões passaram em branco, ou seja, não houve lances de nenhuma empresa. Em outras palavras, sem a Eletrobrás para sustentar os leilões, estes passaram a fracassar com muito mais frequência.

Um outro exemplo foi o leilão para a construção da Usina de Belo Monte, realizado em abril de 2010. O governo estabeleceu um preço teto bem abaixo da viabilidade econômica, e usou a Eletrobrás para garantir o “sucesso” do leilão. Reportagem do Valor Econômico no dia seguinte ao leilão mostra como o lance vencedor do leilão foi construído dentro do próprio governo, sendo que os parceiros privados do consórcio vencedor não ficaram exatamente felizes com o resultado.

Mas, de longe, a principal barbeiragem do governo Dilma Rousseff no setor elétrico foi a Medida Provisória 579.

A Medida Provisória 579

Antes de abordarmos a MP 579, vamos ver como a tarifa de energia elétrica é formada. Grosso modo, a tarifa é formada por impostos, encargos e remuneração das empresas prestadoras do serviço. No gráfico abaixo, reproduzido no Estadão no dia da publicação da MP 579, podemos observar que, em média, os impostos e encargos representavam, na época, 50% do custo, sendo os outros 50% a remuneração das empresas prestadoras do serviço (geradora, transmissora e distribuidora). Os impostos são, principalmente, o ICMS, enquanto os encargos são todos os penduricalhos que foram sendo agregados ao longo do tempo, e que servem para pagar alguma política pública. Aqui temos o programa Luz Para Todos, a energia de Roraima (que não está interligada ao sistema) e os subsídios aos painéis solares, entre outros.

A MP 579 eliminou alguns desses encargos, passando-os para o Tesouro e, indiretamente, reduziu o ICMS, pois este é cobrado sobre o valor da tarifa, e se o valor da tarifa é menor, o imposto também será menor. A redução das tarifas com a eliminação desses encargos da conta de luz seria da ordem de 7%. Muito pouco. O governo queria uma redução da ordem de 20%. Para isso, o grande pulo do gato foi mexer na remuneração das empresas. Acompanhe.

Assim como todo investimento em infraestrutura, o setor elétrico tem como característica um grande investimento inicial (seja em hidroelétricas, seja em linhas de transmissão), que depois será pago através da cobrança de tarifas, em um mercado sem concorrentes. Por isso, para entrar neste mercado, é preciso que a empresa interessada vença uma concorrência para prover o serviço, na qual a tarifa e os reajustes são combinados em contrato. Essa tarifa e a regra dos reajustes devem pagar o investimento inicial para construir a infraestrutura e as despesas da operação em si ao longo dos anos (salários, manutenção etc). No jargão do mercado, o investimento inicial é chamado de CAPEX (Capital Expenditure), enquanto as despesas de operação são chamadas de OPEX (Operational Expenditure). Para tornar o texto mais simples, vamos usar estes dois termos daqui em diante.

Uma grande parte das empresas de geração e transmissão de energia operavam com base em contratos de 20 anos assinados entre os anos de 1995 e 1997, ainda no primeiro governo FHC. Portanto, haveria uma grande necessidade de renovação desses contratos entre os anos de 2015 e 2017, em que provavelmente novos leilões seriam realizados. Qual foi a ideia genial de Dilma Rousseff? Antecipar a renovação desses contratos para 2012 por mais 30 anos. Para isso, essas empresas deveriam ser indenizadas pelo CAPEX realizado no passado e que ainda não havia sido coberto pelas tarifas cobradas no período. Foi aí que se deu o grande “pulo do gato”.

O governo tirou da cartola uma metodologia de cálculo dessas indenizações que prejudicaria fortemente as empresas do setor. No dia seguinte ao anúncio das medidas, as ações do setor protagonizaram um banho de sangue na Bovespa.

Claro, sempre podemos considerar que os contratos foram malfeitos no passado, e que as empresas estão recebendo mais do que deveriam. O problema é que contratos são contratos, e devem ser cumpridos. O governo Dilma Rousseff tentou diminuir a remuneração devida às geradoras e transmissoras através de um cálculo malandro do CAPEX, usando subterfúgios contábeis que não vem ao caso aqui explicitar e que podem ser consultados em detalhe no trabalho de Diogo Mac Cord de Faria citado acima. Aliás, se pudéssemos caracterizar o governo Dilma com uma expressão, essa seria “o governo das malandragens contábeis”.

Não à toa, a única empresa não pertencente ao governo federal que aderiu ao “plano” foi a Transmissora Paulista, que até hoje, 10 anos depois, está aguardando na fila para receber a sua indenização. Coube à Eletrobrás carregar o piano da MP 579 nas costas, o que fez com que a empresa perdesse totalmente a sua capacidade de investimento nos anos seguintes. A Eletrobrás fez o papel da Petrobrás na tarefa de reduzir preços administrados, às custas de sua saúde financeira. Talvez este seja um dos motivos pelos quais o PT declare tanto amor a essas empresas.

E não foi por falta de aviso. O maior investidor privado da estatal à época, o fundo norueguês Skagen, usou termos duríssimos para se referir ao que o governo havia feito, em uma carta ao embaixador brasileiro na Noruega.

A própria Eletrobrás, em documento interno, descreve o cenário de pesadelo que seria (e acabou sendo) a aceitação das condições da MP 579. Vale a pena ler um trecho.

O resultado foi uma queda expressiva das cotações da empresa. No gráfico a seguir, podemos observar a evolução dos preços da Eletrobrás, da CESP e da Cemig, as três em relação ao Ibovespa.

Observe a diferença de comportamento entre a Eletrobrás e as concessionárias de SP e MG, que não aceitaram os termos da MP 579 e não renovaram as suas concessões, mesmo ao preço do custo político de não “ajudar” a derrubar os preços da energia elétrica.

No final, a vitória foi de Pirro. Assim como a Petrobrás, a Eletrobrás foi quebrada para que se conseguisse uma redução dos preços da energia elétrica que não se sustentou no tempo. É o que podemos acompanhar no gráfico a seguir:

Observe como houve uma redução de quase 20% nas tarifas de energia elétrica em 2013, conforme prometido pelo governo. No entanto, este ganho já foi quase todo perdido no ano seguinte, e 2015 foi marcado por um tarifaço para compensar uma série de encargos que estavam corroendo o Tesouro. Foi como se o governo cobrasse uma conta atrasada, que havia deixado de cobrar para fazer populismo. No final de 2015 a conta já estava 50% mais alta do que no final de 2012, antes da MP 579. No final de 2021, a conta de luz estava 2,2 vezes mais cara do que no final de 2012. Descontando-se o IPCA do período, a energia elétrica está 30% mais cara do que antes da MP 579.

O problema dos altos preços da energia elétrica é muito complexo e não há canetada que dê jeito. Aliás, como vimos, canetadas somente agravam o problema, ao postergá-lo para o futuro. Porque a conta sempre chega. Sempre.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A improvável privatização da Eletrobras

No início do governo Bolsonaro, estive em Brasília com investidores japoneses para uma série de visitas aos gabinetes do poder. A melhor reunião de todas, aquela que mais impressionou positivamente os visitantes, foi com Gustavo Montezano, atual presidente do BNDES e então número 2 da secretaria de desestatização, que estava sob o comando de Salim Mattar.

Os planos da secretaria eram realmente empolgantes, e não à toa soaram como música aos ouvidos dos investidores estrangeiros. Mas lembro de que havia uma ressalva: não estava nos planos a venda das chamadas joias da coroa, Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Eletrobras. Estas seriam privatizações muito difíceis, que envolveriam um esforço político que não valeria a pena, dado que havia um mar de oportunidades em outros lugares da administração pública.

É incrivelmente irônico que a única privatização desse governo seja exatamente de uma das joias da coroa. Foi como se um jogador de sinuca cantasse uma caçapa e enfiasse a bola em outra na posição oposta. Um lance de sorte, mas que merece comemoração de qualquer modo.

Claro que uma parte do trabalho, a exemplo da reforma da Previdência, já havia sido feito no governo Temer. Mas há grande mérito em terminar uma empreitada iniciada por outro governo. Os louros pertencem aos dois governos.

O governo Bolsonaro, assim, coloca, em grande estilo, o seu pino no tabuleiro das privatizações, algo que jamais ocorreria em um governo do PT. Aliás, já houve ameaça, por parte de parlamentares do partido, de volta atrás na privatização da Eletrobras, caso o PT chegue ao poder novamente. Durmam tranquilos os brasileiros. O PT teve tempo de sobra (mais de 13 anos) para “voltar atrás” em várias privatizações que condenou veementemente. Não aconteceu nenhuma vez. Por que será?

Eletrobras ou não Eletrobras, eis a questão

As pessoas físicas poderão comprar ações da Eletrobras com o seu FGTS. Vale a pena?

O primeiro raciocínio é que qualquer coisa maior que TR + 3% é melhor que o FGTS. E qualquer investimento rende mais que TR + 3%. Portanto, valeria a pena comprar ações da Eletrobras com o FGTS.

No entanto, ainda está fresca na memória de muitos a catastrófica capitalização da Petrobras em 2010. Na ocasião, os detentores de saldo no FGTS também puderam participar. E ninguém que tenha participado guarda boas lembranças desse investimento.

Voltando um pouco no tempo, no ano 2000 o governo também abriu a possibilidade de comprar ações da Petrobras com o FGTS. Naquela época, o valor de mercado da empresa era por volta de R$ 50 bilhões. Dez anos depois, por ocasião da megacapitalização do PT, a empresa valia R$ 400 bilhões. O capital havia se multiplicado por 8, refletindo a descoberta do pré-sal, além de políticas macroeconômicas que levaram o país e a empresa ao grau de investimento. Olhando pelo retrovisor, muitos projetaram para o futuro o mesmo que havia acontecido no passado. Além disso, o risco era baixo, pois “qualquer coisa rende mais que o FGTS no longo prazo”.

O que se viu nos anos seguintes foi um circo de horrores, que levou o valor de mercado da Petrobras a encolher até R$ 85 bilhões no início de 2016, véspera do impeachment. Ou seja, para quem entrou em 2000, o investimento rendeu em linha com o FGTS. Já quem entrou em 2010 viu evaporar 80% do seu investimento em pouco mais de 5 anos. Nem criptomoeda perde tanto em suas maiores crises.

Voltemos à questão da Eletrobras. A diferença, neste caso, é que a Eletrobras vai ser privatizada, ao passo que a Petrobras continuou sob o controle do Estado. Espera-se que a gestão privada não arruine a empresa como foi o caso da Petro.

Mas tem um detalhe importante nessa história. O setor elétrico é um dos mais regulados da economia. As empresas dependem do cumprimento de contratos de longo prazo com o governo. Ainda está fresca na memória os prejuízos causados às empresas do setor pela MP 579, de 2013, em que o governo Dilma arbitrou preços fora da realidade para a renovação de concessões, com o objetivo de reduzir as tarifas de energia. Ok, na época somente a Eletrobras topou os termos do governo, levando a empresa a prejuízos bilionários. Com uma Eletrobras privatizada, o governo teria que pensar em outros truques.

E é aí que mora o perigo. O governo do PT sempre se mostrou muito criativo na hora de tungar investidores. Qual seria o coelho que um novo governo do PT tiraria da cartola para “baixar os preços das tarifas de energia”? O deputado do PT Jean Paul Prates, cotado para ser o ministro das Minas e Energia de um eventual governo do PT, já afirmou que essa privatização da Eletrobras seria revertida em um governo Lula. Claro, trata-se de mais uma afirmação incendiária que não vai acontecer, assim como tantas outras saídas da boca do próprio candidato.

Esse é o problema da desconfiança. Se os investidores, inclusive os detentores do FGTS, tivessem absoluta certeza de que não seriam vítimas de manobras ”espertas” do governo de plantão, estariam dispostos a pagar muito mais pelas ações da Eletrobras, e o governo arrecadaria muito mais com a venda. No entanto, como cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça, os investidores descontam no preço o risco de novas intervenções.

Em plantas de fábricas, é comum encontrarmos uma placa com os dizeres “estamos trabalhando há X dias sem acidentes”. Precisamos de décadas sem “acidentes de percurso” para que nossos ativos deixem de ser descontados pelo chamado “risco Brasil”, que é o risco de políticas econômicas que destroem valor. Infelizmente, o governo do PT zerou a contagem da placa, enquanto o governo Bolsonaro, com suas constantes investidas contra a diretoria da Petrobras, está se esforçando por zerar novamente.

Os planos estão na mesa

Jean Paul Prates deve ser o ministro das Minas e Energia em um futuro governo do PT. Para que ninguém reclame de que não foi avisado, ele deixa muito claras suas ideias. Que, de resto, são as velhas ideias do PT.

Segundo Jean Paul, a existência de estatais é imprescindível para sanar “falhas de mercado”. Por exemplo, não fosse a Petrobras, o Brasil não teria explorado petróleo em águas profundas. Ele “esquece”, obviamente, que os EUA tornaram-se o maior produtor de petróleo do mundo explorando o xisto sem que fosse necessária a presença de qualquer estatal. Também convenientemente esquece que nossa produção de petróleo está estagnada em cerca de 2 milhões de barris/dia faz anos. No início da década passada, com o pré-sal, a empresa previa uma produção de 4 milhões de barris/dia até 2020. Jean Paul cita também o gasoduto Bolívia-Brasil como uma obra que somente uma estatal poderia fazer. Sério?

Em 2013, uma outra “especialista” em setor elétrico resolveu mitigar “falhas de mercado” para baixar o preço da eletricidade. Não vou aqui entrar em detalhes técnicos, mas a MP 579, baixada pelo governo Dilma Rousseff, impôs perdas bilionárias às empresas do setor. Quer dizer, como se tratava de uma adesão voluntária, e as empresas privadas e estaduais não aderiram ao novo modelo proposto pela gênia da lâmpada do setor elétrico, a MP impôs perdas a apenas uma empresa, adivinha qual. Dica: termina com “bras”.

Resumo da ópera: a Eletrobras carregou sozinha o piano da redução das tarifas, e essa dívida bilionária está tendo que ser saudada através… do aumento do preço das tarifas. Realmente, estatais são muito úteis para fazer esse tipo de barbeiragem.

O que me deixa mais espantado é que o jornalista simplesmente “esquece” de perguntar ao ilustre deputado sobre este período. Parece que estamos diante de uma página em branco, que aceita qualquer desenho. É como se o governo Dilma, que foi um desastre para o setor elétrico, simplesmente não tivesse existido, e o PT tivesse carta branca para cometer os mesmos erros. Como disse o senador Prates, “o PT está comunicando desde já suas ideias”, para que ninguém se sinta enganado. Continua acreditando no “Lula pragmático” quem quer.

Vitória de Pirro

Este artigo resume de maneira bastante didática todos os prejuízos ao consumidor embutidos na MP que privatiza a Eletrobras.

A privatização da Eletrobras é um objetivo desejável, sem dúvida. Mas a MP que foi editada e aprovada na Câmara traz consigo um preço muito alto para atender esse objetivo.

É mais ou menos como uma pessoa que sofre de obesidade e a quem se lhe oferece um remédio que até resolve o problema, mas causa muitos outros, como ataque cardíaco, disfunção renal e paralisia dos membros inferiores. Pesadas todas as circunstâncias e efeitos colaterais, é melhor continuar convivendo com a obesidade.

É mais ou menos essa a conclusão que têm chegado todos os especialistas que analisam a MP, muitos dos quais amplamente favoráveis à privatização. Seria realmente muito triste que a primeira grande privatização do governo Bolsonaro viesse com esse preço. Uma vitória de Pirro.