Oprimidos do mundo, uni-vos!

Há, claramente, uma dicotomia entre direita e esquerda nas reações aos ataques terroristas do Hamas. Mesmo judeus de esquerda têm relativizado o evento, demonstrando que a questão política se sobrepõe à origem étnica ou mesmo a questões humanitárias.

Isso acontece porque a esquerda divide o mundo entre “opressores” e “oprimidos”. E se você não está do lado dos oprimidos, só pode estar do lado dos opressores. A única solução para esse conflito é o fim das “estruturas de opressão”, em que os instrumentos de poder seriam retirados dos opressores e concedidos aos oprimidos. Nada seria eficaz, a não ser isso.

Raymond Aron, em seu livro O Ópio dos Intelectuais, relata como a esquerda francesa da década de 50 condenava os sociais-democratas, por estes quererem mitigar as péssimas condições de vida da classe proletária. Segundo essa esquerda, essas iniciativas desmobilizariam os oprimidos em sua tarefa de “derrubar as estruturas opressoras”, a única solução definitiva. Os proletários estariam sendo corrompidos pelas políticas de bem-estar social.

A esquerda do mundo ainda vive os tempos do “proletários de todos os países, uni-vos!”, slogan político do Manifesto Comunista. Na falta de proletários, serve qualquer oprimido. Nesse contexto, o pobre, quando assalta e mata o burguês, Maduro e Castro, quando mantém seus países com mão de ferro, ou o Hamas, quando mata israelenses, estão todos agindo para “derrubar as estruturas opressoras”, justificando, assim, todos os seus atos.

Isso que a direita jocosamente chama de “coitadismo”, e que parece uma demonstração de insensibilidade, é, na verdade, a expressão irônica desse “oprimismo”, do qual se alimenta a esquerda. É óbvio que condições sub-humanas de vida deveriam ser (e são) objeto de ações para mitiga-las o máximo possível. Mas isso, como bem notou Aron, não interessa à esquerda-raiz, que só quer saber da luta política contra os “opressores”. Os pobres e os palestinos só interessam na medida em que os aproxima desse objetivo.

Os bárbaros são os outros

Fernando Gabeira ganhou meu respeito por ser um dos raros intelectuais de esquerda que não varreu para debaixo do tapete os desmandos dos governos do PT, tanto no campo econômico quanto no penal. Em vários artigos, Gabeira não se furtou a dar nome aos bois. Por isso, sempre leio com interesse suas colunas, até para entender a cabeça da esquerda, digamos, ilustrada.

Este artigo, que coloca o furacão Milei no contexto da ascensão da “extrema direita” no mundo, é alarmista até o último fio de cabelo. Aponta, em resumo, duas ameaças existenciais para a humanidade, que seriam objetivos explícitos da tal “extrema direita”: o fim da democracia e o negacionismo das mudanças climáticas. A isso, Gabeira dá o nome de “barbárie”, nada menos.

Como antídoto, e em linha com sua leitura honesta da realidade, Gabeira recomenda uma “ampla revisão dos erros explorados pela extrema direita”. Infelizmente, o jornalista não nos ilumina com a sua sabedoria, especificando quais seriam esses “erros” que deveriam ser “revisados”, a não ser um genérico “resgatar os que foram deixados para trás pela globalização”, o que não deixa de ser uma crítica velada não à esquerda, mas ao neoliberalismo. Aliás, Gabeira sequer se deu ao trabalho de nomear o sujeito dos erros. Afinal, quem cometeu os erros que nos deixaram às portas da barbárie?

Bem, vou tentar preencher essa lacuna deixada pelo colunista, e que tornaria seu artigo muito mais útil e interessante. Por que, afinal, Trump, Bolsonaro, Le Pen, Netanyahu, Meloni, Milei obtiveram uma fatia relevante e, em alguns casos, majoritária, do eleitorado? Minha avaliação pessoal é de que há um erro de fundo das esquerdas e que dá margem a uma reação contrária e em direção oposta: o sentimento de “superioridade moral”.

O sentimento de superioridade moral perpassa todos os posicionamentos da esquerda, desde o identitarismo, passando pelo uso de máscaras durante a pandemia até a denúncia do aquecimento global e a defesa da democracia. Todos temas tratados desde um ponto de vista moral, em que os “bons” se contrapõem aos “malvados”. O próprio artigo de Gabeira transpira essa atitude, chamando de “bárbaros” todos aqueles que não comungam de seus pontos de vista.

É claro que há radicais com quem não se consegue conversar. Mas os há em ambos os lados do espectro político, e não me consta que Gabeira tenha chamado de “barbárie”, por exemplo, a proposta de Constituição que foi engendrada pelos esquerdistas radicais no Chile. De alguma maneira, aquilo não se constituía em uma “ameaça existencial”, era só, no máximo, uma piada de mau gosto.

Para piorar a situação, à pose insuportável de superioridade moral junta-se a hipocrisia: fica realmente difícil engolir que Lula, para quem a democracia seria relativa, seja o condutor da luta pela democracia no Brasil. E essas hipocrisias abundam em todos os campos: aliados de causas identitárias que vivem só do discurso, combatentes do aquecimento global que não dão a mínima para como os mais pobres vão bancar a tal transição energética, e assim por diante. Sendo escolhas morais, dispensam qualquer discussão adicional, basta posicionar-se no campo dos “bons”.

Gabeira é inteligente e lúcido. Espero ainda ler um artigo seu apontando os erros que levaram à ascenção da “extrema direita”. A começar com um mea culpa, que é chamar minorias relevantes da população (e, em alguns casos, maiorias) de bárbaros. Não existe apenas uma forma moralmente superior de resolver os problemas do mundo. Quando a esquerda civilizada entender isso, conseguirá isolar os poucos realmente radicais da direita.

Nenhuma novidade

Gabriel Boric, nessa reportagem do Estadão, foi classificado como um político de “centro-esquerda”. Quem te viu e quem te vê! Quando foi eleito, Boric representava o radicalismo da esquerda que havia enchido as ruas em protestos contra Piñera e forçado a convocação de uma Constituinte. Passado o tempo, com uma derrota fragorosa no referendo da nova Constituição e outra na eleição da nova Constituinte, Boric tornou-se a Bachelet de calças. Seu discurso sobre Maduro, hoje, tem mais a ver com a busca de apoio interno em seu país do que propriamente uma posição de convicção. De qualquer modo, demonstra porque o Chile está várias casinhas à frente do Brasil quando se trata de instituições democráticas.

O discurso de Lula, condenado por Boric, é o discurso padrão da esquerda latino-americana, aquele consagrado no As Veias Abertas da América Latina, ou na sua versão sarcástica O Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano. Não tem absolutamente nenhuma novidade. A novidade é Boric, e seu posicionamento civilizado, mesmo que seja somente para agradar a opinião pública de seu país.

O caminho de volta do politicamente correto

Três textos publicados no Estadão de ontem e hoje estão intimamente relacionados, e demonstram como os americanos já estão voltando pelo caminho que nós aqui ainda estamos percorrendo.

O primeiro é do colunista Fareed Zakaria, publicado ontem, conclamando os democratas a prestarem mais atenção a pautas que realmente fazem a diferença na vida das pessoas e a deixarem de lado os “pronomes neutros”, a imigração ilegal, a demonização da polícia e outras pautas que interessam a minorias minúsculas e irritam uma parcela significativa da população que, de outra forma, estaria disposta a votar nos democratas.

O segundo texto é da Economist, traduzido hoje no Estadão, defendendo exatamente a mesma ideia.

O terceiro texto é de Luiz Sérgio Henriques, acusando a “extrema-direita” brasileira de atacar “valores seculares da modernidade”. Sob esse rótulo, sabemos que se abrigam exatamente as mesmas ideias que Zakaria e a Economist estão agora conclamando os liberais americanos a colocarem em segundo plano para terem alguma chance eleitoral.

Aqui no Brasil, a sorte de nossa esquerda é ter um Lula, e não um Biden, liderando a agenda. Lula pode ser tudo, menos politicamente correto. Isso que Zakaria e a Economist estão defendendo, Lula sabe de velho. Se fosse depender de intelectuais como Luís Sérgio Henriques, Bolsonaro não teria com que se preocupar, venceria todas as eleições com os pés nas costas.

As palavras têm sentido

Dois candidatos de partidos não tradicionais farão o 2o turno no Chile. À direita dos liberais de Piñera temos Jose Antonio Kast, à esquerda dos socialistas de Bachelet temos Gabriel Boric.

Apesar de os dois serem classificados como “radicais” logo no início da reportagem, por algum misterioso motivo o candidato à direita é classificado, na manchete, como “ultradireita”, enquanto o candidato à esquerda é classificado simplesmente como “esquerda”. Por algum misterioso motivo, não foi chamado de “extrema-esquerda”, muito menos de “ultraesquerda”.

Não sei o que significa exatamente “ultradireita”, mas desconfio que esteja ainda mais à direita do que “extrema-direita”. Qual seria a próxima gradação? Mega-blaster direita?

Para justificar a nomenclatura “esquerda” para o candidato da esquerda, em determinado momento a reportagem diz que Bachelet é de “centro-esquerda”. Piñera não seria, então, de “centro-direita” para justificar uma simples classificação de “direita” para o candidato da direita?

Enfim, sempre fico confuso com essas nomenclaturas do espectro ideológico-politico. Mas uma coisa me parece clara: as palavras têm sentido e não são escolhidas aleatoriamente.

A esquerda não está rachada

“A esquerda está rachada”.

Não, meus amigos. A esquerda não está rachada. A esquerda está bem unida em torno de Lula. Até o PSOL, que sempre tem candidato à presidência, deve abrir mão de candidatura própria para apoiar o ex-presidiário.

Ciro, com o apoio inestimável do mago das eleições João Santana, sabe que a única via possível para chegar ao 2o turno é a via do anti-petismo. Até o momento, esse lugar era ocupado soberanamente por Bolsonaro. O pessoal precisa pegar senha para entrar na fila para bater em Bolsonaro. Mas, para bater em Lula, tratado como um estadista por todos os candidatos da “terceira via”, Bolsonaro estava sozinho. Estava.

A bem da verdade, esse posicionamento já vinha sendo construído desde o “Lula está preso, babaca!” de Cid Gomes na eleição de 2018. Foi reforçado pela “fuga para Paris” de Ciro no 2o turno e, desde então, vem num crescendo. Mas o que antes parecia ser uma vingança pessoal, agora toma ares de estratégia eleitoral.

Ciro não está batendo em Lula para tomar os votos dos petistas. Estes estão fechados com Lula. Ciro está batendo em Lula para tomar o voto dos anti-petistas, que hoje estão com Bolsonaro em um eventual 2o turno. Existe uma massa de eleitores arrependidos de Bolsonaro, mas que não deixaram de ser antipetistas. É essa massa que está sendo desprezada por todos os outros candidatos e que Ciro quer conquistar.

Last but not least, bastou Lula abrir a boca pra tropeçar na língua, chamando todos os que pegaram Covid de lesados do cérebro. Ciro teve a virtude de tirar Lula da toca, e seus pontos fracos começam a aparecer. Os outros candidatos da “terceira via” vão esperar quanto tempo para fazer o mesmo?

Ligue os pontos

Três notícias hoje no jornal:

1. PT e PSOL se pintam para a guerra contra a proposta do prefeito de São Paulo de reforma da previdência dos servidores municipais. Hoje o déficit do sistema é de R$ 6 bilhões por ano.

2. Membros do MTST ocupam a B3 em protesto contra a fome.

3. A prefeitura diminui de 1000 para 750 as marmitas diárias distribuídas no programa Rede Cozinha Cidadã.

Ligue os pontos.

Guinada à esquerda

Como assim, “presidente dá guinada à esquerda”??? O sujeito é o Guilherme Boulos deles, está fazendo exatamente aquilo que disse que iria fazer, e o mundo político e econômico peruano está espantado com a “guinada à esquerda” de Pedro Castillo?

Temos sempre a ilusão de que um radical vai caminhar para o centro, de modo a manter a governabilidade. O mercado costuma dar pouca importância à retórica dos candidatos porque, pensa, na hora do vamos ver, o candidato eleito precisará caminhar para o centro para não ficar isolado e colocar o seu governo em risco.

Ocorre que a retórica, se não é simplesmente promessa populista de campanha, define o candidato. Ao que parece, Pedro Castillo, neófito do poder, foi com muita sede ao pote. Deveria aprender com Lula, que conseguiu enganar o mercado durante alguns anos, até ter segurança para implementar a sua verdadeira agenda. A troca de Pallocci por Mantega marca esse momento, que atingiu o seu ápice com Dilma.

Quando Lula diz que vai acabar com o teto de gastos, ou desenvolve ideias de economia do manual da Unicamp, o mercado ouve essas palavras com o filtro do “no final, ele vai caminhar para o centro”. Compreensível, dado que Lula já fez isso no primeiro mandato. Só esquecem os 10 anos de terror que se seguiram àqueles três primeiros anos do “Lula centrista”.

É possível sim que, Lula eleito, não cometa o erro primário do seu congênere peruano. Muito mais experiente, ele sabe que, para cozinhar o sapo, é preciso aumentar o fogo lentamente, caso contrário, o sapo pula da panela. E ele sabe como ninguém cozinhar o sapo do mercado financeiro.

Esquerda radical

Esquerda radical.

A palavra “radical” nos remete a algo que “não se mistura”, que “não cede a compromissos” com outras forças políticas, algo que se mantém “puro”. A palavra “radical” vem do latim “radix”, raiz. Ser radical significa, portanto, ter raizes, respeitar e ser fiel às próprias origens e convicções.

Diferente da palavra “extrema”.

“Extrema esquerda” soa a alguém que usa quaisquer métodos para impor suas ideias. É também radical, mas vai além: chega a ser criminoso. No mínimo, sugere a ideia de intolerância. O termo “extrema esquerda” normalmente é associado a grupos terroristas, à margem da lei.

Note: na imprensa, partidos na ponta esquerda do espectro político são chamados de “radicais”, enquanto na ponta direita são chamados de “extrema”. Por que será?