Denúncia!

Descobri recentemente um dos melhores quadros de humor do YouTube brasileiro, o programa Falha de Cobertura, em que os “comentaristas” Craque Daniel e Cerginho da Pereira Nunes expõem, de forma escrachada, o ridículo desses programas de debate esportivo. Em um dos seus muitos quadros, o comentarista semi-analfabeto Cerginho grita de repente DENÚNCIA!, para, em seguida, expor, com um ar sério afetado, alguma obviedade. Por exemplo: “a bola é redonda e isso está sabotando o bom futebol dos nossos craques!!!”

Lembrei-me desse quadro ao ler a reportagem de hoje sobre “queima de árvores nobres”, que mereceu destaque na capa do Estadão. A matéria tem ar de denúncia, como se algo de muito grave estivesse em curso.

Daí você vai ler a matéria e descobre que:

– não se trata de árvores, mas de toras. Aliás, a foto é de toras, desmentindo o título da reportagem

– as árvores foram derrubadas com a permissão do Ibama para a construção do reservatório de Belo Monte

– foi tentada a doação, mas o custo do frete inviabiliza o transporte para muitos potenciais beneficiários

– a tabela fornecida pela empresa, e reproduzida na reportagem, indica pouco mais de mil metros cúbicos de madeira nobre ou protegida por lei destinada a ser transformada em carvão. No entanto, a matéria coloca como “vítima” da sanha carvológica da empresa o número total de 3,5 mil metros cúbicos. Aliás, a tabela recebe como título a sugestiva palavra QUEIMADA. O que tem a ver a prática da queimada com o uso de madeira em fornos, fica a cargo do jornalista explicar.

Fiquei procurando na matéria o que foi feito de errado ou o que poderia ser feito de diferente agora, mas saí de mãos abanando.

A cereja no bolo da “denúncia” é a frase final da matéria, que nos informa que a usina foi construída em uma região onde há desmate ilegal. No que o leitor minimamente alfabetizado se pergunta: o que tem a ver o c com as calças?

Cerginho da Pereira Nunes faz o papel de um “jornalista” com claros limites cognitivos. Seus quadros de denúncia são escritos, com sucesso, para nos fazer rir. Ele é engraçado por não se levar a sério. A reportagem de denúncia do Estadão, por outro lado, nos faz chorar, pois o jornalista e o veículo se levam a sério ao fazer uma denúncia que cairia melhor em um programa como o Falha de Cobertura.

A importância do disclaimer de conflito de interesses

Faz parte do trabalho no mercado financeiro a leitura de muitos relatórios. Uma regra básica de qualquer relatório é o “esclarecimento de conflito de interesses”, ou seja, se o autor do relatório tem algum interesse particular na empresa que está analisando. Esse interesse pode ser a detenção de ações da empresa analisada no relatório ou um parente que trabalhe naquela empresa ou, o que é mais comum, se a casa de análise onde o analista trabalha tem algum contrato firmado com a empresa analisada. Neste último caso, inclusive, é prática comum a casa de análise deixar de produzir relatórios sobre aquela empresa específica.

Todos esses cuidados têm uma razão óbvia: como confiar na análise de alguém “conflitado”, como se diz? Podem ser até análises isentas, mas sempre restará a dúvida sobre a sua lisura, dado o conflito de interesses presente.

Esse ponto me veio à mente quando me deparei com artigo no Estadão de hoje do advogado Sérgio Eduardo Mendonça de Alvarenga.

Antes de ler qualquer artigo, a primeira coisa que faço é checar as credenciais de quem escreveu. Não se trata de fazer críticas ad hominem, gosto de ler contra-argumentos que desafiem minhas convicções, independentemente de quem escreve. Mas as credenciais fornecem dois elementos importantes para enquadrar o artigo: 1) o grau de conhecimento e especialização do autor do artigo e 2) seus potenciais conflitos de interesse.

Ao se qualificar tão somente como “advogado”, o Dr. Sérgio Alvarenga qualifica-se como alguém 1) especialista e 2) isento. Fui então ler o artigo, para daí tentar extrair algo que pudesse me fazer mudar de ideia a respeito das duas recém estapafúrdias decisões do STF: a mudança de foro e a suspeição de Moro. O que li foram afirmações a priori, interpretações particulares do direito, colocadas como verdades absolutas. E o que é pior, longe do alcance dos “leigos”, que não estariam aptos a entender as filigranas da ciência jurídica. Como se sob a capa do palavrório técnico dos operadores do direito não se escondesse uma realidade plenamente inteligível para quem é alfabetizado.

Depois de ler o artigo, fui atrás de saber quem era o “advogado”, autor do repto anti-Moro. Sérgio Alvarenga é genro e sócio de Mariz de Oliveira, do escritório de mesmo nome, que extrai seu sustento explorando competentemente as chicanas de nosso sistema judicial, com seus infinitos recursos à disposição de quem pode pagar caras bancas de advocacia. Além disso, foi (não sei se ainda é), advogado de Roberto Teixeira da Costa, compadre de Lula e seu “assessor” no rolo do sítio de Atibaia.

Advogar para Lula, para Teixeira da Costa ou para qualquer outro endinheirado não é crime, pelo contrário. Trata-se de uma profissão como outra qualquer. Afinal, todos têm direito ao devido processo legal com a ajuda de um advogado. O que não dá é escrever um artigo no jornal sem fazer o disclaimer de seus eventuais conflitos de interesse no caso, levando o leitor a achar que está diante de uma opinião isenta.

O escândalo das nulidades

O Estadão publica hoje editorial em que se dedica a analisar porque o STJ anula tantas operações policiais, recebendo a carinhosa alcunha de “cemitério de operações”. Segundo o editorialista, o problema não estaria no STJ, mas nas forças policiais, promotores e juízes, que insistiriam em produzir provas ineptas para os processos.

Dois dos três exemplos apresentados envolvem o recebimento de “denúncia anônima” como base para quebras de sigilo e produção de provas e isso não seria lícito.

Imagine que você descobre que um bando mantém uma pessoa em cárcere privado na casa vizinha da sua. Segundo o STJ você não pode denunciar anonimamente o bando. Não. Você precisa arriscar a sua vida com gente perigosa, que na primeira oportunidade vai querer se vingar. Se a polícia invade a casa com mandato judicial, aquele bando não pode ser condenado, porque, afinal, a denúncia foi anônima. Faz sentido?

Eu, por óbvio, não temo denúncia anônima. Se alguém fizer uma denúncia anônima contra mim e meus sigilos forem quebrados, a justiça não encontrará nada, pois sempre atuo dentro da lei. Somente bandidos se aproveitam desse tipo de chicana.

Anular todo um processo porque a origem foi uma denúncia anônima, ignorando as provas produzidas, é o paraíso daqueles que almejam uma justiça pura, imaculada. E o paraíso da bandidagem também.

Vacina em tempo recorde

Esta é uma chamada de capa no Estadão do dia 02 de fevereiro deste ano. Sim, 24 dias antes de termos o primeiro caso de Covid-19 no Brasil.

Trata-se de uma matéria de uma página inteira, descrevendo a rapidez com que os laboratórios começaram a trabalhar na vacina, aproveitando tecnologia já desenvolvida para as epidemias da SARS em 2003 e da MERS, em 2012. A reportagem conta que, horas depois de a China ter disponibilizado o sequenciamento do vírus, no dia 10 de janeiro, a Moderna já havia começado a trabalhar no desenvolvimento, comparando o SARS-COV-2 com os vírus anteriores já conhecidos.

Assim como um dia já foi impossível viajar de São Paulo para Nova York em pouco mais de 9 horas, também já foi impossível o desenvolvimento de uma vacina em menos de um ano. A tecnologia avança, e coisas que eram impossíveis passaram a ser possíveis.

Esta matéria mostra que a expectativa de ter uma vacina em um ano era realista, dadas as informações já acumuladas e a montanha de dinheiro investida na pesquisa por vários laboratórios no mundo inteiro.

Como toda tecnologia nova, tem os seus riscos, sem dúvida. Cabe a cada um decidir se vai tomá-los. Mas não cabe duvidar da engenhosidade humana, capaz de fazer coisas incríveis quando premida pela necessidade. Sim, desenvolvemos uma vacina em menos de um ano. Os testes em fase 3, com milhares de voluntários, indicam segurança e eficácia. É um feito extraordinário, que merece celebração. A celebração do gênio humano.

O canário na mina

O ministro Paulo Guedes veio a público no meio da semana para comemorar os dados do CAGED. Afinal, foram criados 250 mil novos empregos com carteira assinada, no melhor mês de agosto desde 2010.

Não vou aqui entrar no mérito técnico da coisa, mas qualquer pessoa de bom senso deve entender que não faz sentido comparar esse mês de agosto com meses de agosto de outros anos, dado o profundo impacto da pandemia na série de dados. Em termos técnicos, a pandemia mudou a sazonalidade. Mas, para um governo que busca desesperadamente boas notícias, um passarinho cantando de manhã já é motivo de comemoração. Qualquer governo faria isso.

Mas não é sobre o emprego que quero falar aqui. Meu tema de hoje também é técnico, mas é muito importante e também envolve um recorde: pela primeira vez desde maio de 2002, as LFTs tiveram rentabilidade negativa em setembro.

Vou tentar explicar da melhor maneira que posso. As Letras Financeiras do Tesouro (LFTs) – rebatizadas de Tesouro Selic no Tesouro Direto – são títulos da dívida pública cuja rentabilidade está atrelada à taxa Selic. São considerados os títulos mais seguros do país, pois não têm risco de crédito (o governo não quebra) e não tem risco de taxa de juros, pois sua rentabilidade é atrelada à taxa Selic.

(Só um adendo técnico sobre este último ponto: um título prefixado tem risco de taxa de juros, pois se a taxa de juros sobe, o detentor desse título perde dinheiro, dado que prefixou a sua taxa de juros e agora as taxas de juros estão mais altas. Isso é o que chamamos de “risco de taxa de juros”. As LFTs não têm esse risco, pois, por serem títulos pós-fixados, quando as taxas de juros sobem, o valor do título acompanha, pois é indexado à taxa SELIC).

Por que, então, sendo tão seguros, esses títulos perderam dinheiro em setembro? Simples: os investidores começaram a pedir um prêmio adicional para comprar esses títulos. Assim, além da taxa Selic, os investidores exigiram uma remuneração adicional de, digamos, 0,25% ao ano. Parece que não é nada, mas desde 2002 os investidores não pediam uma remuneração adicional tão alta. Nem nos tempos da Dilma.

Vamos lembrar 2002. Era ano da eleição, e ficava cada vez mais claro que Lula dessa vez iria levar. O receio do mercado era um calote da dívida pública, a se levar a sério o discurso do PT na época. Por isso, os investidores começaram a pedir remuneração adicional para comprar títulos públicos.

Voltando a 2020. O trecho final do editorial do Estadão (abaixo) deixa claro os motivos deste novo recorde, que não será comemorado por Paulo Guedes. O governo está fazendo piquenique na beira do vulcão, ameaçando com políticas populistas um tênue, muito tênue, equilíbrio fiscal. A rentabilidade negativa do Tesouro Selic é o canário na mina. Espero sinceramente que o governo entenda esses sinais.

Falta oposição

Destaco editorial do Estadão e duas notícias no mesmo jornal na página seguinte.

No editorial, o jornal pede candidamente que a oposição “se apresente”. Selecionei apenas o primeiro e o último parágrafos, que resumem a ideia. A angústia do editorialista é que, por mais que Bolsonaro não preencha o figurino do líder de que a nação precisa, não surge uma alternativa viável na oposição.

O diagnóstico do editorial está correto: é preciso um líder que “dialogue de verdade com a população”. Pois é. Para haver algum diálogo, é necessário que o interlocutor esteja disposto a ouvir. Não parece ser o caso da oposição a Bolsonaro.

Articular uma mensagem minimamente inteligível supõe não brigar com a realidade. Aqueles que poderiam ser a tal “oposição que se apresenta” fazem vista grossa para articulações no Congresso para burlar a Constituição (no caso da reeleição para as presidências das casas) e para a cada vez mais próxima suspeição de Moro no condenação de Lula.

Peguei esses dois casos particulares porque são notícia hoje, mas poderia fazer uma capivara muito mais longa com fatos que se acumulam e que justificam a eleição de Bolsonaro. Podemos dizer que as “instituições brasileiras” se esforçam para se auto dinamitarem. Bolsonaro é apenas o cara que dá risada quando tudo explode.

Concordo com o editorial do Estadão: a oposição precisa encontrar um discurso. Desde que esse discurso não colida com a realidade.

Manchete incendiária

O Estadão estampa em sua manchete principal de hoje o aumento da carga tributária dos profissionais liberais embutida nos projetos de reforma tributária.

Haveria uma manchete alternativa: “Reforma tributária igualará imposto de profissionais liberais e assalariados”. Igualmente verdadeira, esta manchete trabalha a favor da reforma. A primeira trabalha contra.

Em sua página editorial, o Estadão tem sido firme defensor da reforma tributária. Vai ser mais difícil, no entanto, se a redação continuar com esse tipo de manchete incendiária.

A natureza da atividade bancária

Editorial do Estadão destaca a lentidão do governo e Congresso em responder às necessidades econômicas dos mais atingidos pela quarentena. E aproveita para dar uma estocada nos bancos, que não estariam fazendo nada para mitigar o problema. Provavelmente querem dizer que os bancos deveriam colocar a mão no bolso, engordado por anos de lucros bilionários, para agora ajudar os mais necessitados.

Bem, esse discurso é de quem não conhece a natureza da atividade bancária.

É preciso ter em mente duas características dos bancos: 1) são intermediários entre quem tem dinheiro e quem precisa de dinheiro e 2) trabalham alavancados, o que significa que têm uma parcela de capital próprio, mas o grosso de seus empréstimos é feito com dinheiro dos outros. Essa alavancagem é limitada pelo Banco Central, ou seja, os bancos não podem emprestar quanto dinheiro quiserem, mas apenas um certo número de vezes o seu capital próprio.

Pois bem. É líquido e certo que, no ambiente recessivo que estamos entrando, o calote vai aumentar. Se os bancos não se protegerem aumentando a taxa de juros dos empréstimos, esses calotes começarão a comer o seu capital próprio, limitando a sua capacidade de fazer novos empréstimos, pois o limite de alavancagem não permite. Isso só pioraria a situação.

Uma outra forma de baixar os juros seria os investidores (a outra ponta dos empréstimos) abrirem mão de seus rendimentos e até de parte do seu principal. Não vi nenhuma cobrança do editorialista a esse respeito, mesmo porque é sempre mais fácil pedir sacrifícios dos outros.

Alguns poderão insistir que os bancos geram lucros bilionários, e precisam dar a sua contribuição. Pode ser. Só é preciso calibrar bem essa contribuição. Se você acha que a desaceleração da economia está forte, experimente acrescentar uma crise bancária. O que estamos vivendo parecerá um passeio no parque.