A responsabilidade da vítima

Na minha infância, havia um programa de televisão na Globo chamado A Grande Família. Era um seriado divertido sobre uma família meio tresloucada.

Em um dos episódios, um personagem (não me lembro qual) aparece todo ferido em casa. Havia sido atropelado. A história vai se desenrolando, até que se descobre que fora o tal personagem que havia causado o acidente para receber o seguro. A vítima era o criminoso e o criminoso era a vítima. Um plot twist, como diríamos hoje.

Esse episódio me veio à lembrança quando li e ouvi toda essa discussão a respeito do estupro em festas regadas a álcool. Estamos falando do grau de responsabilidade da vítima no crime da qual, supostamente, é vítima.

Para começo de conversa, e para estabelecer uma premissa sobre a qual todos vamos concordar, não existe crime se não existe intenção. Tanto é assim que, se uma pessoa é dopada e perde a consciência, não pode ser imputada por crime. E existe a figura da inimputabilidade, em que o indivíduo, seja por ser criança, seja por ser doente mental, não tem noção do que seja um crime. Intenção de cometer o crime, portanto, é um elemento essencial para a responsabilização do criminoso.

Mas, como em tudo o que envolve seres humanos, há muitos tons de cinza nessa “intenção”. Por exemplo, um motorista bêbado que atropela e mata uma pessoa. Obviamente, o motorista não tinha a intenção de matar aquela pessoa, mas se colocou em risco de fazê-lo ao dirigir bêbado. Temos aí a figura do crime culposo, em que não há a intenção de matar, mas houve um acidente que causou a morte. O fato de o motorista ter bebido agrava a circunstância, pois ele se colocou em risco de cometer um crime. Mas é menos grave do que um crime doloso, premeditado.

Vejamos o outro lado, o que nos aproximará do ponto que nos interessa. Uma pessoa atravessa uma grande avenida fora da faixa de pedestre, ao lado de uma passarela, é atropelada e morre. O motorista estava sóbrio, não estava usando o celular, tentou desviar, mas não conseguiu.

O motorista deve ser condenado? Entendo que não. Nesse caso, a vítima colocou-se em risco de morte, o motorista não conseguiu evitar o desfecho, por mais que tentasse. Neste caso, estar em plena posse de suas faculdades mentais ajuda o suposto criminoso a se safar da pena. Se estivesse bêbado, isso seria um agravante, não um atenuante.

Tendo lançado os alicerces do nosso edifício, vamos agora construir o entendimento da responsabilidade da vítima no seu próprio estupro.

Vamos começar com o caso clássico de estupro, em que não há dúvida de que houve o crime e de quem é o culpado (ainda que, como veremos mais à frente, até essa certeza pode restar abalada, a depender das premissas adotadas). A moça está voltando para casa por uma viela escura e erma, quando é surpreendida por um tarado, que a estupra ali sob a mira de uma arma. Não há dúvida, neste caso, de quem é a vítima e de quem é o criminoso.

O segundo caso é o que nos interessa. A garota vai vestida com uma minissaia a uma festa, toma drinks além da conta e “fica” com vários rapazes ao longo da festa. No final, mantém relações sexuais com um ou mais dos rapazes. No dia seguinte, alega que foi abusada, pois o sexo não foi consentido.

Vamos explorar a questão da intenção, que é o coração do crime. Consigo ver três alternativas:

1) Existe a intenção de manter relação mesmo sem o consentimento da vítima. O rapaz aproveita-se do fato de que a vítima não está em plena posse de suas faculdades para dar curso ao crime.

2) O rapaz, sob altas doses de álcool e de testosterona, não tem condições de pensar em consentimento, preservativo ou coisas do tipo. Age como um animal no cio e, como tal, é inimputável.

3) Do ponto de vista do rapaz, a vítima deu o seu consentimento implícito ao ir a uma festa de minissaia, ter bebido todas e ter ficado com todos.

Note que, nos três casos, NÃO HÁ consentimento explícito por parte da moça. Estamos aqui, logo de início, descartando a hipótese de que houve consentimento e de que a moça esteja mentindo a esse respeito. Ou seja, não estamos focando em algo semelhante ao que ocorreu no episódio da Grande Família, descrito no início, em que a vítima é o criminoso e vice-versa. Se restar provado, de alguma forma, que a moça está mentindo, de que houve o consentimento, a moça será processada por calúnia. Mas não é este o caso que nos interessa explorar aqui.

Pois bem. Na primeira alternativa, parece não haver dúvida de que ocorreu o crime, agravado pelo fato de a vítima não ter condições de se defender. Este caso parece pacífico. Vamos explorar as outras duas alternativas.

Não sou jurista, mas a segunda alternativa, a inimputabilidade por seguir os instintos, não me parece que se sustente. Se assim fosse, todos poderíamos nos escorar nessa desculpa. O tarado que espreita a moça no beco escuro também poderia alegar que não tinha domínio de suas faculdades mentais, tal o grau de testosterona no seu organismo. Seria quase como o caso do atropelamento do pedestre que atravessa fora da faixa. A moça colocou-se em situação de risco ao andar sozinha em uma viela escura e erma, e o rapaz estava passando por lá com sua alta dose de testosterona e não teve como desviar, acabou estuprando a moça. Parece-me óbvio que essa hipótese não se sustenta.

Não estou aqui negando o papel dos instintos animais que habitam a alma humana. Muitas vezes fazemos coisas por impulso, levados por nossas emoções, e nos arrependemos depois. Mas entendo que a culpabilidade continua existindo, pois somos também racionais, e devemos saber controlar nossas emoções. Se não conseguimos, devemos ser afastados do convívio social. No caso da festa, o fato de o rapaz ter tomado todas ou, inclusive, estar drogado, agrava a culpabilidade, pois colocou-se conscientemente em risco de cometer crime. É o caso do motorista bêbado.

Vamos à terceira alternativa. Esta é, de longe, a mais controversa, aquela que mais envolve julgamentos morais a respeito do comportamento da mulher. Seria o fato de vestir minissaia, beber e ficar com rapazes um sinal implícito de consentimento para a consumação do ato sexual? Note que não estou falando de colocar-se em situação de risco. O sujeito que atravessa fora da faixa também não está consentindo no próprio atropelamento, apesar de estar se colocando em situação de risco. A moça que anda sozinha em uma viela escura também está colocando-se em situação de risco, e nem por isso alguém pensa que está, com isso, consentindo em ter relação sexual com o tarado. Não se trata, portanto, de analisar o comportamento de risco, ainda que o risco esteja presente. A terceira alternativa trata da moralidade da escolha da mulher.

Em nossa sociedade, a mulher é vista como corresponsável pelo seu próprio abuso, pois estaria consentindo implicitamente ao se vestir e se comportar de maneira considerada imprópria. A dança do acasalamento humano é extremamente complexa, como tudo o que envolve seres humanos. Esse entrelaçamento de razão e emoção, entre anjo e animal, dá margem a um caleidoscópio de interpretações.

Não é à toa que praticamente todas as religiões estabeleçam o casamento como o ambiente adequado para a relação sexual. Não há consentimento mais explícito do que o pacto nupcial. Neste pacto, a mulher dá o seu consentimento público, não há dúvida em relação a isso. (Ainda que, hoje em dia, mesmo esse consentimento público precisaria ser renovado a cada relação sexual, caso contrário teríamos a figura do “estupro marital”. Sim, a coisa é complexa. Sigamos). No momento em que, em nossa sociedade, a relação sexual passou a ser aceita fora do ambiente nupcial, o consentimento da mulher passou a ser mais difícil de identificar.

Vamos voltar ao caso em foco. A moça afirma que não deu o seu consentimento. A sociedade diz que a forma de se vestir e de se comportar implicam em um consentimento, ainda que não explícito. Como resolver esse impasse?

Não tem solução. Cada um vai ter o seu ponto de vista de acordo com a sua visão de mundo. Eu, particularmente, acho que o consentimento deve ser explícito, ainda que reconheça a dificuldade de se identificar isso em uma festa regada a muito álcool e drogas. A vida real é sempre mais complexa que as teorias. Mas, se a moça diz que não quis, a sua palavra deve ter mais peso do que as circunstâncias. É isso o que eu penso.

É comum dizermos para nossas filhas que tomem cuidado em festas, como se a transa fosse uma via de mão única. Na verdade, os rapazes também fariam bem em se cuidar e evitar transar com moças com alto teor etílico, caso queiram evitar dor de cabeça para as suas vidas. Pois a intenção e o consentimento são conceitos muito fluidos nessas circunstâncias.

A relativização do estupro

Rodrigo Constantino foi demitido de quase todos os veículos de comunicação onde trabalhava.

Acho que todos viram a fala de Constantino que deu motivo para estas medidas drásticas. Ele basicamente diz que colocaria sua filha de castigo caso ela saísse para uma festa, ficasse bêbada e fosse abusada na festa. E não denunciaria o abusador.

A filha do comentarista fez um vídeo tocante defendendo o pai, afirmando que ele, como qualquer pessoa decente, não é, nem poderia ser, a favor do estupro.

Pois bem. Vamos começar por essa última parte. Parece óbvio que ninguém, em sã consciência, seja a favor do estupro. Nem bandido é a favor. Dizem que estuprador, na cadeia, precisa ficar separado dos demais presos. Caso contrário corre o risco de ser devidamente cancelado do mundo dos vivos. No mínimo, vai sentir na própria pele o que é ser abusado.

Estamos falando, neste caso, do estupro a seco, aquele que ocorre nos caminhos ermos das cidades e dos campos. A moça sozinha, voltando para casa, é surpreendida pelo tarado, que força uma relação sexual obviamente não consentida. Este parece ser o caso em que não há dúvida de que não houve consentimento.

Constantino, no entanto, está se referindo a uma outra circunstância: a menina se embebedou, “ficou” com meninos durante a festa e, portanto, teria como que “consentido implicitamente” na relação sexual. Ou até explicitamente, mas não se lembra, dado o teor alcoólico.

Seria o primeiro caso “preto no branco”, enquanto o segundo caso entraria em uma espécie de “zona cinzenta”, onde a culpabilidade seria, digamos assim, fluida? Creio que não.

Vamos combinar que abuso é abuso, independentemente da quantidade de álcool no sangue. Aliás, não sou jurista, mas parece-me que abusar de uma pessoa bêbada é até mais grave do que se estivesse sóbria, pelo simples fato de a pessoa abusada não ter o devido discernimento para dizer sim ou não.

É óbvio que, quando temos filhos, damos os conselhos de sempre: não ande sozinho por aquela rua, não leve celular no bloquinho de carnaval, não beba na festa, etc. Isso é uma coisa, são os cuidados básicos de segurança que toda pessoa deve observar. Outra coisa completamente diferente é dizer que a falta desses cuidados justifica o ato de quem se aproveita para roubar, matar ou estuprar, a ponto de, inclusive, poupar o bandido de ser denunciado! Se minha filha chegasse em casa dizendo que havia sido abusada, as circunstâncias pouco importam. A única coisa que importa é a palavra dela, que indica não consentimento. E se não houve consentimento, é estupro. Ponto, sem vírgula

.O que está implícito na fala do Constantino, e que justifica o repúdio e a sua demissão de vários veículos de comunicação, é justamente a ligação entre “ficar” e embebedar-se em uma festa com o consentimento de uma relação sexual. E, como bem notou uma amiga, esta ligação só existe para mulheres. Homem pode se embebedar à vontade que a ninguém ocorre que ele esteja a fim de ser estuprado.

Enfim, Rodrigo Constantino se notabilizou por ser uma voz do conservadorismo brasileiro. Voz meio estridente, mas ok. Neste caso, no entanto, o que poderia ser, com um pouco de boa vontade, um libelo pela disciplina dos filhos (um valor caro ao conservadorismo) se tornou uma relativização do estupro. Triste papel.