Confiança é o nome do jogo

Leio hoje no Valor que Rússia e China aumentaram as transações em moeda local entre si. Agora, representam 24% do total do comércio exterior entre os dois países. O restante ainda é em dólar (46%) e Euro (30%).

Alguns poderiam se perguntar, afinal, por que essa dependência do dólar? Não poderiam as nações simplesmente transacionar em suas próprias moedas entre si?

A resposta a essa pergunta vai na forma de uma outra pergunta: se você fosse um empresário brasileiro e estivesse vendendo para a Argentina, você aceitaria o pagamento em pesos argentinos? Ou exigiria dólares?

Na última vez que fui à Argentina, em 2014, troquei todos os meus dólares por pesos argentinos, para poder pagar as coisas. O comércio de lá aceitava (e ainda aceita) dólares também, mas o câmbio não era muito favorável. Bem, no final da viagem sobraram alguns pesos. Só para testar, fui ao Banco de La Nacion do aeroporto de Ezeiza para tentar trocar os pesos por dólares. Obviamente não tive sucesso. Nem o banco estatal aceitava a moeda do país.

Moeda é, acima de tudo, confiança. Aquele papel pintado só vale alguma coisa porque por trás existe um governo confiável, suportado por um sistema jurídico que funciona. Você compraria um carro usado do Putin? E do Xi Jinping? Pois é.

Ok, você também não compraria um carro usado do Trump. Mas aí entra a força das instituições. Trump vai durar mais alguns meses ou, no máximo, mais 4 anos. Todos sabem disso, todos confiam que isso acontecerá. A dívida americana é gigantesca, mas todos confiam de que receberão o seu dinheiro de volta, se assim o quiserem. Aliás, receberão em dólares, o papel pintado que vale tanto quanto a dívida.

Mesmo no caso do Euro, a confiança é menor. Trata-se de uma moeda construída há menos de 30 anos, com uma governança que depende basicamente da Alemanha. Na verdade, a confiança no Euro é a confiança na Alemanha. Os detentores do Euro confiam que, se um dia a moeda desaparecer, poderão trocá-la por marcos alemães. Mas trata-se de um arranjo mais precário do que o dólar.

Assim, vejo essas notícias com um certo ceticismo. O repórter entrevista um professor de Harvard que credita ao dólar três vantagens: inflação baixa, mercado doméstico gigantesco e mercado financeiro enorme e sofisticado. É verdade, mas isso a Europa também tem. Então, o que determina a predominância é a confiança de que a poupança em dólar é mais segura. Não vejo isso mudando em um horizonte de tempo visível.

Temos espaço para enganar, mas não por muito tempo

Lara Rezende volta a atacar.

Estamos rodando déficit primário de quase 2% do PIB há 5 anos e André Lara vê “austeridade fiscal”.

Interessante que, neste artigo, Lara Rezende faz a ligação entre austeridade fiscal e ascensão de regimes populistas. O curioso é que os países citados (Polônia, Turquia, Venezuela (!), EUA (!!)) não passaram por nada parecido com o que a Grécia fez, seja porque suas contas já estavam relativamente em ordem, seja porque, como no caso da Venezuela, o receituário adotado foi exatamente o prescrito por Lara Rezende. A Grécia, curiosamente, não é citada no grupo, pelo contrário: seu governo, de esquerda, é citado elogiosamente.

Mas o que mais me chamou a atenção foram os trechos abaixo. Foi realizado um referendo que deu como resultado (surpresa!) a rejeição da austeridade fiscal. Mas os maldosos tecnocratas não deixaram a Grécia realizar a “vontade do povo”, e o país não teve outra saída a não ser jogar a vontade do povo no lixo e obedecer os tecnocratas.

Que poder é esse que têm os tecnocratas, que conseguem passar por cima da “vontade do povo”? No caso da Grécia chama-se Euro. A conta a ser paga pelos gregos para adotar menos austeridade fiscal era sair da zona do Euro e voltar a adotar a velha moeda do país, o dracma. O resultado disso seria uma moeda desvalorizada e dívidas denominadas em Euro, que seriam, obviamente, objeto de calote. Como consequência do óbvio fechamento do mercado de capitais para o país, as únicas alternativas viáveis seriam um brutal ajuste fiscal de curto prazo para equilibrar as contas (uma vez que fazer novas dívidas não estaria entre as opções viáveis) ou rodar a maquininha de dracmas loucamente, com os efeitos inflacionários conhecidos.

Os membros do Syriza sabiam de tudo disso e ESCOLHERAM por permanecer no Euro. A permanência no Euro não foi uma imposição dos tecnocratas, mas da realidade. Obviamente, os tecnocratas fizeram o máximo para que a Grécia permanecesse na moeda única, injetando recursos e renegociando a dívida, pois a saída do Euro teria um impacto negativo também para a moeda única. Mas a porta sempre esteve aberta.

Vamos agora ao caso do Brasil. O País não está atrelado a nenhuma moeda única, não existem tecnocratas estrangeiros ditando o que temos que fazer. Então, pergunta-se Lara Rezende, o que nos impede de descartar essa “austeridade suicida”?

Eu respondo: o mesmo que fez a Grécia ficar na zona do Euro. Estar atrelado a uma moeda estável é apenas o modo de explicitar o compromisso de que todas as suas dívidas serão pagas algum dia, e de que o país não vai rodar a maquininha de papel colorido que alguns insistem em chamar de moeda.

O Brasil não está atrelado a uma moeda forte, mas os efeitos de não se adotar austeridade fiscal seriam os mesmos que a saída de uma moeda única. Com um déficit crescente, o calote da dívida entraria no radar dos investidores, que encurtariam os prazos e, no limite, deixariam de financia-la. Assim, seria necessário um ajuste fiscal ainda mais brutal para zerar o déficit primário (pois tomar novas dívidas já não seria uma opção), ou rodar a maquininha, com os efeitos inflacionários conhecidos. Exatamente os mesmo efeitos de sair de um padrão monetário estável.

Mas, digamos que Lara Rezende esteja correto em seu modelo de MMT: os agentes sabem que o governo não dá calote em sua dívida denominada em moeda local, e continuam financiando sem problemas o governo. Qual seria o efeito de déficits e dívida crescentes? Mais dinheiro vai da iniciativa privada para o governo, com sua notória incapacidade de investir bem os recursos. Repito: déficits crescentes significam transferência de recursos da iniciativa privada para o governo. Isso é bom?

Não, nós não estamos vivendo um regime de “austeridade fiscal”. Ou melhor, estamos apenas da boca para fora. Temos um déficit de quase 2% do PIB e que não está diminuindo. Estamos adotando o mesmo receituário de Macri, na Argentina: um ajuste bem, mas bem, gradual. Funciona no início, pois os agentes acreditam nas promessas. Depois de algum tempo, no entanto, percebem o engodo, e voltam a precificar um calote e/ou a inflação sobe. A Grécia não teve essa alternativa, porque os tecnocratas (leia-se Alemanha) não deixaram. Aqui, temos espaço para enganar. Mas não por muito tempo.