Guerra & Paz

A proposta de “paz total” do presidente da Colômbia, Gustavo Petro, levou a um aumento da violência. Quem diria…

A natureza do ser humano é beligerante. A guerra é a norma, a paz é a exceção. Isso vale nas famílias, nas instituições, entre os países. Os quase 80 anos sem guerras de grandes proporções na Europa (vamos desconsiderar a Ucrânia) é o recorde de todos os tempos.

“A guerra é horrível, muita gente inocente morre” é o tipo de platitude que não muda a natureza humana. “Sou contra qualquer tipo de guerra” é o mesmo que dizer “sou contra a lei da gravidade”. Chamberlain rules só serve para dar vantagem ao adversário, que sempre existe.

Como diz um aliado de Petro, “não existe um processo de paz no mundo que não seja acompanhado de uma política de segurança sólida”. E uma especialista acrescenta: “os acordos de cessar-fogo foram um presente tático para esses grupos. Sem nenhum Exército para pressioná-los, eles ficaram livres para se rearmar, recrutar e reabastecer”.

Claro que não consigo deixar de pensar sobre os clamores por um cessar-fogo em Gaza. Como a especialista salientou, o cessar-fogo somente servirá para que o Hamas “se rearme, recrute e reabasteça”, pois o grupo terrorista não está realmente interessado em paz. E, como lembra o aliado de Petro, Israel deveria se concentrar em desenvolver uma política de segurança sólida como condição para qualquer processo de paz. Bingo!

Sim, a guerra é horrorosa. Pior que ela, no entanto, é a ilusão de que a paz se faz com boas intenções. A respeito de Chamberlain, Churchill afirmou que, ao escolher entre a desonra e a guerra, o primeiro-ministro inglês teria os dois. A história lhe deu razão.

Muito do discurso público sobre o conflito Israel-Hamas é depressivamente simplista

Vou traduzir abaixo artigo da Economist publicado ontem. Foi escrito por David Enoch, professor de Filosofia do Direito da Universidade de Oxford e professor do departamento de filosofia e na faculdade de direito da Universidade Hebraica de Jerusalém.

O ponto de Enoch, como vocês poderão observar é que o discurso público sobre o conflito Hamas-Israel é muito simplista, e que intelectuais deveriam ser mais humildes ao analisar as suas nuances. O artigo levanta justamente essas nuances, de um intelectual que tem sérias críticas ao atual governo de Israel. Também desenvolve o conceito de “reação proporcional”. Vale muito a leitura.

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A moralidade da guerra é extremamente complicada. O mesmo ocorre, conseqüentemente, com a ética ao comentá-la.

Mas na guerra em Israel e em Gaza, algumas coisas são simples: as horríveis atrocidades cometidas pelo Hamas não podem ser justificadas, em circunstância alguma. Outro fato simples é que muitos palestinos em Gaza são totalmente inocentes, vítimas tanto de Israel como do Hamas, e estão sofrendo uma terrível calamidade. É altamente desconcertante que estes dois fatos simples precisem de ser enfatizados, mas há muitos que ficam felizes em oferecer formas pseudo-sofisticadas de negar pelo menos um deles.

Mesmo quando se trata da moralidade do esforço de guerra em si, algumas coisas são claras: Israel não tem apenas o direito de se defender, mas também o dever para com os seus cidadãos de os proteger contra as ameaças que o Hamas (e outros) representam. Igualmente claro: mesmo na prossecução de uma guerra justa, os civis não devem ser alvos. E quando os danos causados a inocentes são um resultado necessário e previsível de ataques legítimos a combatentes, para serem moralmente aceitáveis devem ser proporcionais aos danos que a operação militar pretende evitar.

Alguns dos princípios subjacentes à moralidade da guerra são, portanto, bastante simples. (A propósito, nem todos: por exemplo, não está nada claro se um Estado que utiliza a força deve ser neutro entre prejudicar os seus próprios civis e prejudicar os civis do inimigo e, se não o fizer, que prioridade deverá dar para o seu próprio povo.) Mas o que se segue disto, no que diz respeito aos conflitos da vida real, é uma questão extremamente complicada, sobre a qual a maioria de nós não tem nada parecido com o nível de informação necessário para tirar conclusões com alguma confiança.

Quais são os perigos para os seus civis que Israel está agora lutando para eliminar? Qual a probabilidade de futuros ataques – do Hamas, do Hezbollah, de outros – serem tentados? E terem sucesso? Existem medidas alternativas disponíveis para Israel que resultariam em menos danos aos inocentes? (E não, acabar com a ocupação, por mais moralmente crucial que seja, não é uma medida alternativa viável para Israel neste momento como forma de defender os seus cidadãos.) Como as táticas do Hamas, incluindo a utilização de civis palestinos como “escudos humanos”?, afeta o mórbido mas indispensável cálculo da proporcionalidade? Quanto valor deve ser dado à dissuasão, e como pode Israel restaurar um efeito de dissuasão significativo após as inacreditáveis falhas de inteligência de 7 de Outubro? O que pode Israel fazer para libertar os reféns que o Hamas (e talvez outros em Gaza) continuam a manter?

Nada pode ser dito de forma responsável sobre o que Israel deve ou não deve fazer neste momento sem respostas pelo menos parciais a estas questões complexas. Mesmo os apelos bem intencionados para um cessar-fogo imediato não escapam a este destino, pois está longe de ser óbvio que um cessar-fogo seja consistente com o dever de Israel de defender os seus cidadãos (ou mesmo apenas de libertar os seus reféns).

Os apelos a um cessar-fogo imediato são perfeitamente compreensíveis: dada a magnitude da devastação em Gaza, bem como as contínuas ameaças aos israelitas, qualquer pessoa decente pode sentir um forte desejo de que tudo simplesmente acabe. Mas tal desejo, por mais compreensível que seja, não é a base para uma política sólida. E se alguém pensa que um pedido de cessar-fogo é justificado, dadas as incertezas factuais, como forma de errar pelo lado da segurança, deve lembrar-se que, quando se trata de guerra, muitas vezes não há lado da segurança. Quaisquer erros – usar demasiada força, não usar o suficiente – serão pagos na única moeda relevante, o sangue de inocentes.

Pode-se esperar que os tomadores de decisão tenham mais informação do que o resto de nós e que atribuam o peso apropriado nas suas deliberações às restrições morais relevantes. Mas dificilmente se pode negar que em muitas das suas ações políticas durante muitos anos antes do 7 de Outubro, e em algumas das suas atuais declarações oficiais e não oficiais, Israel ganhou legitimamente a desconfiança de muitos – inclusive eu.

O que um intelectual público consciencioso deveria fazer? Deveríamos certamente ter algo a dizer sobre uma tragédia horrível que se desenrola diante dos nossos olhos? Na verdade, filósofos e outros intelectuais têm se colocado de acordo, não apenas como indivíduos, mas também em grupos. Numa dessas intervenções, 45 acadêmicos da Universidade de Oxford escreveram uma carta aberta condenando Israel e apelando aos líderes políticos britânicos para que exigissem um cessar-fogo imediato, sem sequer um gesto na direção das incertezas envolvidas. Num outro texto público, assinado majoritariamente por filósofos acadêmicos baseados na América do Norte, o jargão anticolonialista foi retirado sem modificações da estante de slogans que soam bonitos e aplicado sem qualquer sensibilidade a qualquer dos fatos aqui relevantes.

Os intelectuais devem comentar sobre assuntos públicos, e não há problema se por vezes o fizerem de uma forma que não seja tão matizada como a sua próxima publicação acadêmica. Mas quando o fazem, devem destacar as complexidades e não ocultá-las. Eles podem ser especialistas em alguns dos princípios gerais da moralidade da guerra, mas se não compreenderem o quão sensível aos fatos qualquer aplicação desse conhecimento a cenários do mundo real está sempre fadada a ser, então, afinal de contas, não conhecem o básico sobre o assunto.

Quando os intelectuais públicos fazem proclamações confiantes mas factualmente infundadas sobre tais assuntos, degradam os seus respectivos campos e, na medida em que têm um efeito no mundo real, correm o risco de participar na concretização de políticas desastrosas. Em suma, traem o seu papel como intelectuais, servindo para alimentar dúvidas legítimas sobre o quanto sabem ou se preocupam com o mundo real; na verdade, com pessoas reais.

Talvez os filósofos morais possam contribuir para o discurso público – por exemplo, ao pensar sobre como as decisões devem ser tomadas dada a tremenda incerteza envolvida, ou ao insistir na relevância de algumas considerações negligenciadas. Ou talvez devêssemos confessar que também nós estamos confusos, que não podemos ter certeza do que dizer. Dependendo das suas expectativas, isso pode ser decepcionante. Mas, ao contrário de muitas outras intervenções no discurso público de hoje, tal resposta seria pelo menos honesta. E provavelmente menos prejudicial também.

A prioridade é o Nobel da Paz

Enquanto o presidente se perde em declarações megalomaníacas sobre um seu suposto poder de coordenação para alcançar um cessar-fogo em Gaza, a realidade nua e crua é que o governo brasileiro não consegue sequer fazer o mínimo, que é retirar os nacionais da zona de conflito. São 34 compatriotas que aguardam sua vez de passar pela fronteira com o Egito, e que já foram preteridos por cidadãos dos EUA, México, Coreia do Sul, Itália, Suíça, Grécia e um sem fim de outras nacionalidades. Este é o tamanho da banana que o Hamas e os egípcios estão mandando para o ex-futuro Nobel da Paz.

Se eu sou jornalista, no próximo café da manhã com o presidente eu perguntaria se ele ligou para os “amigos do Hamas” para pedir o cessar-fogo, e quantas pessoas com asma foram salvas com isso. Quanto aos brasileiros em Gaza, a julgar pelas falas do presidente e os resultados alcançados até aqui, nunca foram uma prioridade.

Punição coletiva ou baixas de guerra?

Considero Lourival Sant’Anna um dos melhores jornalistas internacionais do país. Suas análises são sempre ponderadas e profundas, enriquecendo o entendimento dos diversos problemas da arena global. Mas mesmo Sant’Anna não escapou da tentação de igualar coisas inigualáveis.

Na ânsia de equilibrar a balança, o jornalista afirma que Israel está infringindo a lei internacional, ao impor uma “punição coletiva contra civis”. Ora, as palavras têm sentido. “Punir” significa “castigar em decorrência de um crime”. Sant’anna está afirmando que Israel estaria deliberadamente impondo um castigo aos civis da Faixa de Gaza por crimes que estes teriam cometido.

Ora, desde o início o governo israelense tem afirmado que seu único objetivo é neutralizar o Hamas. A acusação feita pelo jornalista implica supor que as autoridades israelenses estão mentindo, e que seu real objetivo é atacar a esmo a população de Gaza, com o objetivo de puni-la por seus crimes.

É só óbvio que, como em qualquer guerra, lamentavelmente há baixas civis. Mas daí a afirmar que essas baixas são propositalmente buscadas por Israel como forma de punição, vai uma distância amazônica. Se nem um jornalista ponderado como Lourival Sant’Anna consegue distinguir uma coisa da outra, então Israel está realmente a pé no front das relações públicas.

Cafonice autoexultante

Lula sempre se supera. Quando você acha que ele atingiu seu limite de asneiras, eis que jorram asneiras ainda maiores de sua torneirinha, como diria a Tia Anastácia. A última foi a sua “receita” para acabar com a guerra no Oriente Médio: “carinho, afeto, dedicação e solidariedade”.

Esse receita tem funcionado muito bem. Por exemplo, Daniel Ortega tomou e se manteve no poder na Nicarágua com muito “carinho, afeto, dedicação e solidariedade”. Chavez e Maduro são outros que, certamente, empregaram muito “carinho, afeto, dedicação e solidariedade” para se manterem no poder. Em Cuba, Fidel Castro e seus sucessores tiveram e têm muito “carinho, afeto, dedicação e solidariedade”. E isso só pra ficar aqui entre os amigos da América Latina.

Esse discursinho ficaria bem para, sei lá, a Madre Teresa de Calcutá ou o Dalai Lama. Estadistas sabem que os povos têm seus interesses e estão dispostos a lutar por eles, seja na arena diplomática, seja no campo de batalha, que é a diplomacia feita por outros meios, na expressão de Clausewitz. Em um episódio passado, o embaixador de Israel chamou o Brasil de “anão diplomático”. Acho a expressão imprecisa. Seria melhor “criança diplomática”, que pensa o mundo de maneira ingênua e simplória. Há quem diga que, se o mundo fosse governado pelas crianças, seria um mundo muito melhor. Quem diz isso é porque nunca viu crianças brigarem entre si pelos seus “direitos”. De qualquer forma, as crianças são retiradas da sala enquanto os adultos resolvem os problemas. Os adultos sabem que as crianças não têm maturidade para enfrentar os problemas do mundo. O Brasil, com essas “soluções” propostas por Lula, cada vez mais se exclui do mundo dos adultos.

O senador Ciro Nogueira, em artigo no mesmo jornal de hoje, define a diplomacia do governo brasileiro de maneira antológica, como um misto de “megalomania com uma cafonice autoexultante”. Esse discurso de Lula preenche todos os requisitos da cafonice. Nem discurso de miss supera.

As quatro opções intragáveis de Israel para o futuro de Gaza

Vou transcrever aqui uma tradução de um artigo da Economist publicado hoje, sobre as opções de Israel. É um pouco longo, mas vale a leitura de cada linha, para finalmente entender um pouco da política de Gaza/Cisjordânia e de como não há opções óbvias para Israel.

“As declarações públicas que Joe Biden fez durante a sua visita relâmpago a Israel em 18 de Outubro não sugeriram muitas dúvidas sobre a iminente invasão da Faixa de Gaza por Israel. Contudo, em privado, os conselheiros do presidente americano esperavam pressionar os líderes de Israel sobre uma questão urgente: o que deveria acontecer depois da guerra?

As autoridades israelenses dizem que estão concentradas em derrubar o Hamas do poder, em retribuição pelo massacre que cometeu no sul de Israel em 7 de Outubro. “Gaza não será mais uma ameaça para Israel”, afirma Eli Cohen, o ministro das Relações Exteriores. “Não concordaremos que o Hamas mantenha qualquer poder em Gaza.” Mesmo depois de os riscos de combate num local tão densamente povoado terem sido ilustrados por uma explosão mortal no dia 17 de Outubro no hospital Ahli Arab de Gaza, que Israel atribuiu a um foguete palestino sem direção, os objetivos de guerra declarados por Israel não mudaram.

Uma encruzilhada de quatro caminhos

Mas os planos pós-guerra de Israel permanecem incertos. Existem quatro opções principais, todas ruins. A primeira é uma ocupação prolongada de Gaza, como a que empreendeu entre 1967 e 2005. As tropas israelenses teriam de proteger o enclave e, na ausência de um governo palestino, poderiam ter também de supervisionar os serviços básicos.

Isto poderia agradar a um segmento da direita religiosa de Israel, que ainda se irrita com a retirada, em 2005, de todos os soldados e colonos israelenses de Gaza, interpretada como o abandono de uma fatia da pátria bíblica dos judeus. Mas ninguém mais quer ver Gaza reocupada, dados os pesados encargos financeiros e a probabilidade de uma interminável má reverberação na mídia e de um fluxo constante de mortes. Biden alertou em 15 de outubro que uma ocupação duradoura seria um “grande erro”. A maioria dos estrategistas israelenses concorda.

A segunda opção é travar uma guerra que decapite o Hamas e depois abandonar o território. Este é sem dúvida o pior caminho a seguir. Alguns dos líderes e apoiadores do Hamas provavelmente surgiriam para reconstituir o grupo. Mesmo que não o fizessem, alguma outra força indesejável tomaria o seu lugar. O Oriente Médio tem uma história de grupos radicais que aproveitam esses vácuos.

O melhor resultado, na perspectiva de Israel, seria o regresso da Autoridade Palestiniana (AP), que governa partes da Cisjordânia em coordenação com Israel. Mas esse caminho está repleto de obstáculos. A primeira é que Mahmoud Abbas, o presidente palestino, está relutante em fazê-lo. “Não creio que alguém possa ser tão estúpido e pensar que pode regressar a Gaza nas costas de um tanque israelense”, diz Ghassan al-Khatib, antigo ministro palestino.

Mesmo que Abbas pudesse tomar o poder dessa forma, talvez não o quisesse. Yasser Arafat, o anterior presidente da Autoridade Palestina e figura de longa data do nacionalismo palestino, gostava de Gaza; ele viveu lá durante algum tempo depois de ter sido autorizado a regressar à Palestina, em 1994. Pessoas próximas de Abbas dizem que ele, pelo contrário, vê Gaza como um lugar hostil.

É quase certo que Gaza seria hostil à polícia palestina enviada para protegê-la. A Autoridade Palestina emprega cerca de 60 mil pessoas nos seus serviços de segurança, que têm autoridade em cerca de um terço da Cisjordânia (ver mapa abaixo). Não consegue controlar nem mesmo essa área limitada: partes de Jenin e Nablus, cidades no norte da Cisjordânia, estão tão revoltadas que as forças da Autoridade Palestina não ousam patrulhá-las para não serem atacadas. O moral está baixo. Se a polícia palestina regressasse a Gaza, seria um alvo para os remanescentes do Hamas, da Jihad Islâmica e de outros militantes. O Hamas e a Autoridade Palestina travaram uma guerra civil sangrenta em Gaza depois que o Hamas venceu as eleições parlamentares em 2006. O Hamas acabou vencendo e expulsou a Autoridade Palestina do território em 2007.

A segurança também não é a única questão. Depois que o Hamas chegou ao poder, Abbas pediu aos burocratas em Gaza que parassem de trabalhar. O Hamas, por sua vez, contratou dezenas de milhares de apoiadores para ocuparem funções públicas, enquanto a Autoridade Palestina continuou a pagar aos seus trabalhadores para ficarem em casa. Manter essa burocracia significaria trabalhar com cerca de 40 mil pessoas contratadas pela sua lealdade ideológica ao Hamas; rejeitá-los seria repetir o erro do programa de “desbaathificação” dos Estados Unidos no Iraque, que lançou legiões de homens furiosos e desempregados nas ruas.

Uma quarta opção seria montar algum tipo de administração alternativa, composta por notáveis locais trabalhando em estreita colaboração com Israel e o Egipto. Israel confiou nesse tipo de acordo até a década de 1990, antes de a Autoridade Palestina começar a assumir funções civis nos territórios ocupados.

Tem-se falado em tentar recrutar Muhammad Dahlan, um antigo chefe de segurança do Paquistão que cresceu em Gaza, para assumir as rédeas depois do Hamas. Mas Dahlan passou a última década em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos. Ele se desentendeu com a AP; em 2016, um tribunal palestino condenou-o por corrupção. Também há desavença entre ele e as famílias em Gaza: ele liderou a luta contra o Hamas em 2007. “Acho que isso é uma ilusão”, diz Michael Milstein, coronel da reserva do exército israelense e analista do Centro Moshe Dayan, um think tank em Tel Aviv. “Eu nem tenho certeza se ele gostaria de voltar. Ele ficaria preocupado que as pessoas o quisessem morto.”

O caso de Dahlan aponta para um problema maior. Os palestinos estão divididos há quase duas décadas. A divisão é em grande parte culpa deles: embora os líderes do Hamas e da Autoridade Palestina se reúnam a cada dois anos para defender a reconciliação da boca para fora, nenhuma das partes quer chegar a um acordo. Mas o cisma também foi exacerbado pela política de dividir para governar de Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense, que a considerou uma ferramenta útil para frustrar o sonho palestino de um Estado independente. “Netanyahu tinha uma estratégia ruim de manter o Hamas vivo e forte”, diz Ehud Barak, antigo primeiro-ministro israelense.

Tanto o Hamas como a AP governam os seus estados como regimes autoritários de partido único. Em 2021, Nizar Banat, um crítico de Abbas, foi espancado até à morte pela polícia palestina na sua casa em Hebron. Aqueles que se opõem ao Hamas em Gaza correm o risco de tortura e execução. A maioria dos palestinos opta por manter o silêncio, evitando a política e concentrando-se nas suas lutas quotidianas.

A sondagem mais recente do Centro Palestino de Estudos Políticos e Pesquisas (PCPSR) concluiu que 65% dos habitantes de Gaza votariam em Ismail Haniyeh, o líder do Hamas, numa corrida presidencial frente a frente contra Abbas (que perderia o Cisjordânia também). O Hamas obteria 44% dos votos em Gaza numa votação parlamentar, enquanto o Fatah, a facção de Abbas, obteria apenas 28%.

Entre a cruz e a espada

À primeira vista, isto sugeriria um apoio duradouro ao Hamas. Mas essas sondagens oferecem apenas uma escolha binária entre militantes e incompetentes. Um total de 80% dos palestinos querem a demissão de Abbas. Horas depois da explosão do hospital, ocorreram protestos em cidades da Cisjordânia, onde os manifestantes gritavam: “O povo exige a queda do presidente”. Ele tem 87 anos e não tem um sucessor claro. Nenhum de seus possíveis substitutos inspira muito entusiasmo.

Numa hipotética corrida entre Haniyeh e Muhammad Shtayyeh, o insípido primeiro-ministro da Palestina, o primeiro venceria por uma margem de 45 pontos em Gaza e 21 pontos na Cisjordânia. Mais uma vez, isto é menos uma prova da popularidade de Haniyeh do que da falta de popularidade de Shtayyeh: uma sondagem realizada em 2019, após os seus primeiros 100 dias no cargo, revelou que 53% dos palestinos nem sequer sabiam que ele era o primeiro-ministro.

Perguntas abertas produzem resultados mais reveladores. Quando o PCPSR pediu aos palestinos que nomeassem o seu sucessor preferido para Abbas, a maioria disse que não sabia. A segunda resposta mais popular, tanto na Cisjordânia como em Gaza, foi Marwan Barghouti, um membro da Fatah que cumpre múltiplas penas de prisão perpétua numa prisão israelense por orquestrar ataques terroristas que vitimou civis. Várias das outras principais escolhas, como Dahlan e Khaled Meshal, antigo líder do Hamas, nem sequer vivem nos territórios palestinos.

Exilados, prisioneiros – ou ninguém: a vida política palestina está moribunda. Os palestinos culpam Israel por esta situação lamentável, argumentando que a falta de conversações de paz significativas privou a Palestina da sua razão de ser. “Acho que Abbas será o último presidente palestino”, diz Khatib. “Toda a ideia da Autoridade Palestiniana é que se trata de uma transição para um Estado palestino. Se não houver horizonte político, a AP se torna irrelevante.”

Os israelitas afirmam que a AP se auto minou através da corrupção desenfreada. Bilhões de dólares em ajuda externa foram desviados ao longo das últimas três décadas para comprar vilas luxuosas na Jordânia e para encher contas bancárias na Europa. Solicitados a nomear os principais problemas da sociedade palestina, mais pessoas citam a corrupção do seu próprio governo (25%) do que a ocupação de Israel (19%).

Há culpas em número suficiente para compartilhar. O resultado, porém, é que a Fatah é provavelmente irredimível aos olhos da maioria dos palestinos, um movimento de libertação que se tornou caucificado e decadente. Nos últimos anos, até mesmo alguns israelenses começaram a questionar-se se o Hamas poderia tornar-se um interlocutor, seguindo o mesmo caminho que o Fatah fez décadas antes, de militantes violentos a burocratas dóceis.

Não só o Hamas parecia concentrado em tentar melhorar a economia de Gaza, como alguns dos seus líderes também pareciam receptivos a uma solução de dois Estados. Isso teria sido uma mudança notável para um grupo cuja carta apelava à destruição de Israel. No ano passado, Bassem Naim, membro da liderança política do grupo em Gaza, disse a um correspondente que estava disposto a aceitar “um Estado nas fronteiras de 1967”. Ghazi Hamad, outra autoridade política, havia dito a mesma coisa um ano antes.

Tais pensamentos agora parecem ingênuos. Milstein foi um dos poucos israelenses proeminentes que alertou, muito antes do massacre, que o aparente pragmatismo do Hamas era apenas um estratagema. A sua opinião, justificada pelos últimos acontecimentos, é agora quase universal em Israel. Mesmo que o Hamas estivesse disposto a participar nas conversações de paz, um público israelense furioso e enlutado não seria um parceiro disposto: a grande maioria dos israelenses quer destruir o Hamas e não recompensá-lo.

Duas outras questões moldarão o futuro de Gaza. Uma delas é o papel que os estados árabes irão desempenhar. Em conversas privadas durante a semana passada, várias autoridades árabes apresentaram a ideia de uma força estrangeira de manutenção da paz para o enclave – mas a maioria rapidamente acrescentou que o seu país não estava ansioso por participar.

O Egito não é popular em Gaza, tanto porque se juntou a Israel no bloqueio do território, como devido à sua história anterior como governante de Gaza de 1948 a 1967. Os Emirados Árabes hesitariam em desempenhar um grande papel. “Não agimos sozinhos”, diz um diplomata dos Emirados. O mesmo provavelmente se aplica à Arábia Saudita.

Israel provavelmente vetaria qualquer papel do Qatar, um dos países com maior influência em Gaza. Durante anos, o emirado ajudou a estabilizar a economia de Gaza com a bênção de Israel, distribuindo até 30 milhões de dólares por mês em pagamentos de assistência social, salários de funcionários públicos e combustível gratuito. Mas o seu apoio ao Hamas – alguns dos líderes do grupo vivem lá – irá agora torná-lo suspeito. “Toda a estratégia de Israel durante a última década foi confiar no Qatar”, diz Milstein. “Uma das lições que deveríamos aprender com esta guerra é que não deveríamos permitir mais envolvimento do Catar.”

Embora os estados árabes não queiram proteger Gaza, podem estar dispostos a ajudar a reconstruí-la. Após a última grande guerra, em 2014, os doadores prometeram 3,5 bilhões de dólares para a reconstrução (embora, no final de 2016, tivessem desembolsado apenas 51% desse montante). A conta será ainda maior desta vez.

A outra questão é o que acontecerá com a AP. As pesquisas dizem que metade dos palestinos acham que deveria ser dissolvida. Fazer isso privaria muitos deles de rendimento (a Autoridade Palestina é o maior empregador na Cisjordânia) e provavelmente levaria a mais violência. Mas também aumentaria os custos da ocupação de Israel e, talvez, forçasse o regresso questão Palestina à agenda política de Israel, depois de duas décadas em que o assunto raramente foi discutido. “É a única carta na manga que lhe resta”, diz um antigo confidente de Abbas.

Não existe uma solução duradoura apenas para Gaza. Apesar do longo cisma, os palestinos ainda se consideram parte de um sistema político mais amplo. De qualquer forma, a faixa é demasiado pequena e desprovida de recursos naturais para prosperar por si só. A sua economia depende de Israel: tudo, desde as plantações de morangos às fábricas de móveis, depende das exportações para o seu vizinho mais rico. Independentemente de quem assuma o controlo, Gaza não será nem estável nem próspera como um pequeno Estado isolado.

A única forma de trazer tranquilidade duradoura a Gaza é através de uma resolução mais ampla do conflito israelense-palestino. Se a perspectiva de uma solução negociada se evaporar completamente, alerta Khatib, “com ela, a liderança moderada desaparecerá”. Israel pode até decapitar o Hamas. Mas é muito menos claro que algo melhor tomará o seu lugar.”

Não há boas opções

O título do artigo de hoje de William Waack é muito melhor do que o artigo em si, que justamente se perde no labirinto da falta de opções de Israel. Esse título dá um gancho para retificar uma ideia que talvez eu tenha passado no meu post anterior, em que critiquei artigo de Thomas Friedman, a respeito de uma potencial invasão de Gaza por Israel.

Alguns comentários me alertaram para o fato de que eu passava a impressão de estar defendendo a invasão de Gaza. A ideia nunca foi essa, mesmo porque não me sinto gabaritado a dar conselhos ao governo de Israel. O ponto do post era apenas criticar a fraqueza dos motivos apontados por Friedman para a não-invasão, quais sejam, a “imagem” de Israel, a “responsabilidade” de Israel diante de tudo o que acontecesse de ruim no território e a “frustração” dos planos do inimigo. Em minha opinião, nenhum desses pontos tocava na questão crucial: a segurança de Israel, que, imagino, seja a preocupação número 1 do governo israelense nesse momento. Defendia a ideia de que, qualquer fosse a decisão, deveria ter como objetivo a segurança dos cidadãos israelenses.

Termino aquele post dizendo que os cenários alternativos sempre serão objeto de debate. Uma decisão “errada” só poderia ser corretamente julgada se comparada com o resultado de suas alternativas. Mas isso é impossível de se fazer, pois as alternativas pertencem ao campo das ideias, não à realidade. Somos todos exímios profetas do passado, mas a verdade nua e crua é que as decisões são sempre tomadas em um ambiente em que “não há boas opções”, na feliz expressão usada por William Waack.

Invadir ou não invadir, essa é a questão

Normalmente gosto de ler a coluna de Thomas Friedman, do NYT. Ele escreve bem, e é sempre um prazer ler um bom texto, apesar de, na maior parte das vezes, não estar de acordo 100%. É o caso da coluna de hoje.

Friedman defende a ideia (que certamente está em debate no governo e na sociedade israelenses) de que a melhor estratégia para Israel, no momento, é evitar uma invasão terrestre à Gaza. O colunista lista basicamente três razões em defesa de sua tese: 1) Israel melhoraria sua imagem internacional, 2) uma vez instalado no território, Israel e os judeus seriam acusados de tudo de ruim que acontecesse lá e 3) a invasão cumpriria os planos dos inimigos de Israel, que ficariam “devastados” se isso não acontecesse.

Bem, vamos lá. Com relação ao primeiro ponto, basta ver as reações ao massacre daqueles que já têm má vontade com Israel. De Harvard até as redações do mundo inteiro, a opinião pública global abusou das conjunções adversativas para condenar os ataques, quando não os comemoraram efusivamente. Se nem mesmo o que aconteceu depois de 07/10 fez a opinião pública se mover, por que uma invasão de Gaza pioraria a situação? O único período em que verdadeiramente Israel contou com a boa vontade da opinião pública foi logo após abrirem-se os fornos crematórios na Europa. Isso durou alguns poucos anos, janela aproveitada para a criação do estado de Israel. Na medida em que a memória do Holocausto foi se desvanecendo, Israel e os judeus voltaram ao seu papel de sempre, o de vilões internacionais. Achar que não invadir Gaza mudará essa visão talvez seja um pouco ingênuo demais.

O segundo ponto é ainda mais risível. Israel JÁ É HOJE culpado por tudo de ruim que acontece em Gaza e, by the way, na Cisjordânia também. Em entrevista na Globo News no dia dos atentados, uma “especialista em Gaza” afirmou que Israel controla água, energia e suprimentos de Gaza e, portanto, teria o domínio da área. “Prisão a céu aberto”, “apartheid”, “genocídio”, são as palavras fofas usadas para caracterizar a ação de Israel na região. Que diferença faria uma invasão?

O terceiro ponto é mais complexo, pois envolve entrar nas motivações das partes. Friedman assume que o Hamas fez uma jogada justamente para provocar a invasão, e que ficaria frustrado se isso não acontecesse. Eu já acho que o Hamas fez o que fez com o objetivo que todo terrorista tem: chamar a atenção para a sua causa. Pouco importa o que Israel fará de agora em diante, o seu objetivo já foi alcançado. Friedman racionaliza as ações do Hamas como se o grupo representasse um país estável em busca de espaços de poder. Não. O Hamas é só um conjunto de homens-bomba, dispostos a tudo pela causa. Qualquer que seja a ação de Israel, o Hamas já é vitorioso. Basta ver as manifestações de apoio à causa palestina no mundo islâmico e na esquerda global.

Por isso, Israel deve tomar a decisão olhando suas próprias posições, de forma a maximizar a segurança do país, independentemente da opinião pública global (que sempre estará contra) e do que deixaria o Hamas ou o Irã supostamente mais “decepcionados”. O histórico de “movimentos em direção à paz” não é bom. Dá última vez que Israel decidiu fazer algo nesse sentido, ao retirar os colonos unilateralmente de Gaza e entregar a administração da área à AP, o Hamas tomou conta. Quais seriam as consequências de deixar Gaza intacta depois dos ataques de 07/10? Essa é discussão.

A História só acontece de uma forma, os caminhos alternativos, o que “poderia ser”, serão sempre objeto de debate, nunca uma certeza. A invasão de Gaza, se ocorrer, trará várias consequências nefastas e muitos debates sobre como o mundo poderia ser melhor se a invasão não tivesse ocorrido. O fato é que o cenário alternativo é sempre mais idilico, simplesmente porque não é real.

Boa sorte, presidente!

Bem, agora falta o nosso presidente, tão preocupado com a “paz”, ligar para o presidente do Egito, Abdel Farrah el-Sisi e, principalmente, para os líderes do Hamas, quem quer que sejam, e pedir a mesma coisa. Boa sorte, presidente!

Nada é tão simples a ponto de caber em uma manchete de jornal

Quem lê as reportagens nos jornais ou assiste aos telejornais, sai com a impressão de que Israel, através de seu bloqueio, é o único agente responsável pela falta de bens essenciais em Gaza.

Dá uma olhada no mapa abaixo.

Sem dúvida, a maior fronteira de Gaza é com Israel. Mas não é 100%. Gaza tem uma fronteira de 12km com o Egito, mais do que suficiente para permitir a entrada de bens essenciais. Ocorre que o Egito TAMBÉM mantém um bloqueio na fronteira com Gaza. Inclusive, está se organizando para impedir um êxodo de palestinos através dessa fronteira. Por que?

Para entender, precisamos voltar até 2014, quando o governo do Egito decidiu pelo bloqueio. O país, mais especificamente a península do Sinai (onde Gaza faz fronteira), vinha sofrendo uma série de ataques terroristas do braço egípcio do Estado Islâmico (ISIS). O ISIS, assim como seus co-irmãos Jihad Islâmica e Hamas, faz parte da Irmandade Muçulmana, que tem como objetivo a implantação de estados islâmicos regidos pela Sharia, como é o Irã. O Egito é um estado laico e, por isso, é atacado pelos extremistas.

Pois bem. O governo egípcio tinha evidências que os palestinos do Hamas colaboravam com seus co-irmãos do ISIS. Assim, para mitigar o risco, decidiu pelo bloqueio. O Egito, ao colaborar com o bloqueio de Israel, está resolvendo um problema doméstico. É Israel que vai sujar suas mãos de sangue ao acabar com o Hamas, mas ao governo do Egito também interessa o fim do grupo.

Nada é tão simples a ponto de caber em uma manchete de jornal.