Checando as agências de checagem

Fake news. Essa é a palavra do momento.

Minha primeira fake news está na minha certidão de nascimento. Consta lá que nasci às 7:20 hs de um certo dia de dezembro. Agências de checagem chegaram à conclusão de que, na verdade, pode ter sido às 7:19 ou 7:21. Ou mesmo qualquer outro horário, porque o relógio da sala de parto estava atrasando por aqueles dias.

Claro que é uma piada. Mas não tem dúvida de que a chance de eu ter nascido exatamente às 7:20 é muito baixa. Trata-se de um horário aproximado, suficiente para dizer: Marcelo Guterman nasceu no início da manhã de um certo dia de dezembro. Mas com toda probabilidade, essa informação seria classificada como fake news pelas agências de checagem.

Essa comparação me ocorreu quando li um artigo onde a agência Lupa selecionou as 8 fake news mais compartilhadas via Whatsapp. A primeira está abaixo e é bastante curiosa: mostra uma suposta Dilma Rousseff jovem na companhia de Fidel Castro. A agência conclui que se trata de fake news, porque Dilma teria, na data da foto, apenas 11 anos de idade. O fake está em que aquela moça da foto não é Dilma, apesar da engraçada semelhança física.

Ora, mas o ponto da foto não é este. Não é que Dilma, a vida inteira, tenha jurado de pés juntos que não apoiava Fidel, que achava Cuba um lixo, que deplorava a revolução cubana e, de repente, encontraram uma foto que desmentia tudo isso. Não! É pública e notória a simpatia de Dilma pelo regime cubano.

Assim, a foto serve, até de maneira jocosa, para reafirmar uma verdade: Dilma é próxima de Fidel e do regime cubano. Não, Dilma não esteve com Fidel em 1959. Isso é falso, assim como é falsa a informação de que eu nasci à 7:20. Mas sim, é verdadeira a informação de que Dilma e Fidel tem tudo a ver.

Esta foto serve para reforçar uma verdade, apesar de ser, em si, mentirosa. Ao checar exclusivamente a veracidade da foto, a agência de checagem perde (proposital ou inadvertidamente, não vou julgar) o “big picture”.

Outro ponto, o reverso da medalha: tirar uma foto ao lado de uma personalidade não é prova de apoio àquela personalidade. Ficou famosa a foto de Sérgio Moro ao lado de Aécio Neves.

Esta foto foi usada ad nauseam para “provar” que Moro favoreceria o PSDB em seus julgamentos. As agências de checagem não diriam que é fake. Afinal, a foto é verdadeira, de fato Moro foi fotografado ao lado de Aécio, dando risadas. O problema são as inferências que se fazem a partir da foto. No caso de Dilma, a foto é falsa mas a inferência é verdadeira. No caso de Moro, a foto é verdadeira, mas a inferência é falsa. As agências de checagem se limitam a julgar as fotos, mesmo porque seria subjetivo julgar as inferências. Mas são essas que importam, no final.

A foto da Dilma jovem com Fidel serve para reforçar uma verdade. Há outras, no entanto, que servem para reforçar preconceitos. Uma das fake news mostra mulheres defecando em uma igreja (não reproduzo aqui por pudor) com a legenda “Feministas invadem igreja, defecam e fazem sexo”. A foto foi classificada como fake porque foi tirada na Argentina, em um protesto contra Macri. Mas o problema não é este. O problema está em relaciona-la com “feministas”. Pode-se não concordar com a ideologia feminista no campo das ideias. Outra coisa, no entanto, é relacionar o feminismo com depravação dos costumes, coisa que ultrapassa em muito o admissível. Temos aqui um caso em que a agência de checagem novamente perde o big picture, pois afirma que a notícia é fake porque a coisa aconteceu na Argentina e não no Brasil, enquanto o busílis da questão não é se a foto é verdadeira ou falsa, mas sim se o feminismo pode ou não ser associado a este tipo de foto. Não se trata de fake ou não, mas de honestidade intelectual, coisa impossível de medir em um fact checking.

Um terceiro e último exemplo, muito parecido com minha certidão de nascimento falsa: uma determinada mensagem afirma que o os gastos do governo cresceram 4% entre os anos de 2011 e 2016 (governo Dilma), enquanto os gastos das famílias recuaram mais de 1% no mesmo período, em uma mensagem de que o governo tomou o lugar das famílias durante aqueles anos.

A agência de checagem verificou os números e sentenciou: é fake. Segundo a agência, neste período (2011-2016), o consumo do governo cresceu 3,1% enquanto o consumo das famílias cresceu 1,8%. Portanto, falso. Novamente, a agência perde o big picture ao se apegar à verdade dos números. Mesmo considerando os números reais, podemos concluir que os gastos do governo cresceram mais do que os gastos da família nesse período. Mas concedo que os números do gráfico são muito mais “chocantes” e levam a uma conclusão viesada.

Mas o ponto não é este. A agência de checagem se ateve ao período indicado no gráfico (2011-2016). No entanto, se o cálculo fosse feito até o 2o trimestre de 2016 (quando efetivamente o governo Dilma se encerrou) o resultado seria o seguinte: queda de 1,2% do consumo das famílias e crescimento de 2,5% do consumo do governo. Portanto, um resultado semelhante ao mostrado no gráfico. Ou seja, a agência de checagem, ao se limitar estritamente aos dados do gráfico, na verdade, está dizendo que o mais importante é saber se nasci exatamente às 7:20, sendo pouco relevante se nasci ou não.

Compungidos

Milhões de cubanos acompanham, compungidos, o féretro de Fidel.

O problema de todo sistema totalitário é que não dá pra saber quantos desses milhões estão compungidos sinceramente.

Construtores de utopias

“Na década de 90, aceitou algo do capitalismo mas, à diferença dos chineses, preservou o máximo de conquistas sociais. Sempre acreditou no “homem novo”, na vida sem egoísmo. Este, o seu maior mérito: não repudiou o que havia de ideais no comunismo. Sua meta estava na independência de Cuba e na justiça social; para isso incorporou o comunismo.”

Este é Renato Janine Ribeiro, hoje, no Valor Econômico. Entre ontem e hoje, li algumas análises sobre Fidel escritas por intelectuais de esquerda, para tentar entender a cabeça desse pessoal. Acho que esse trecho resume bem a coisa toda.

Eles simplesmente não ligam a miséria econômica e a ditadura feroz com a ideologia comunista. Todas as análises (e incluo aqui FHC) ressalvam o “grande ideal de Fidel”, e colocam o Estado policial e a perseguição política quase como acidentes de percurso, que não são suficientes para tisnar a Grande Obra do Homem, do Mito, do Herói.

Renato Janine e seus companheiros de ideologia não veem, ou não conseguem admitir, que a “construção do Homem Novo, solidário, sem egoísmo”, tem como instrumento necessário o estabelecimento de um Estado Totalitário. Sobre isto, recomendo a entrevista de Natan Sharansky, ontem, no Estadão. O dissidente soviético descreve com rara precisão o controle do pensamento em Estados Totalitários, único modo conhecido de implantar a Revolução do Homem Novo.

É curioso como esses intelectuais não conseguem (ou não querem) ver a contradição entre a comemoração das supostas “conquistas sociais” do regime cubano e a necessidade de “aceitar algo do capitalismo”. Ora, se as tais conquistas sociais são tudo o que o povo quer e precisa, pra que capitalismo? De onde essa necessidade de comércio e de livre iniciativa, na Sociedade do Homem Novo? Renato Janine termina seu texto perguntando se a figura de Fidel continuará inspirando aqueles que “lutam contra a miséria”! Caramba, então pra que capitalismo, se está tudo bem na ilha?

Renato Janine condena o regime chinês, “um capitalismo selvagem somado a uma ditadura, que se diz comunista mas é selvagem”. Ou seja, apesar de se dizer comunista, o regime chinês é selvagem. Aqui está, me parece, a grande desonestidade intelectual desse pessoal: se é selvagem, não é comunismo. O comunismo é virtude, e quem é contra não passa de um egoísta. A realidade das coisas é um mero detalhe para esses construtores de utopias.

A cor da ditadura

Tarso Genro: “um dos promotores da paz”

Franklin Martins: “Fidel simbolizava a ideia de que era possível lutar e vencer”

Cristovam Buarque: “Ele foi o herói da minha geração de latino-americanos, sobretudo como líder de um governo comprometido com a justiça social”.

PT: “a Revolução Cubana que conduziu junto com outros dirigentes de seu país foi uma realização do direito à autodeterminação dos povos, da busca da igualdade e justiça social”

Lula: “Será eterno seu legado de dignidade e compromisso por um mundo mais justo”

Dilma: “Fidel foi […] um visionário que acreditou na construção de uma sociedade fraterna e justa, sem fome nem exploração, numa América latina unida e forte”

Por que a ditadura militar no Brasil foi considerada criminosa e a ditadura cubana é considerada virtuosa? Aliás, a ditadura militar se auto-denominava “Revolução”, assim como a ditadura cubana e seus acólitos a chamam de Revolução Cubana. Muda a cor, o vício é o mesmo. Voltando à questão: por que a ditadura militar no Brasil foi considerada criminosa e a ditadura cubana é considerada virtuosa? Simples: porque o comunismo é um ideal que está acima da moral. Todo e qualquer meio é válido, desde que seja para a implantação da “justiça social”.

A ditadura militar no Brasil produziu, em seus primeiros 10 anos, um crescimento espetacular com inflação controlada. Ou seja, crescimento de renda real. Lembro, quando criança, em 1972, o carro de Garrastazu Médici passando em frente ao meu colégio na Av. Tiradentes, e o povo todo na calçada saldando entusiasmado. Era um governo popular. Mas, na visão da esquerda, mantinha as “estruturas” que perpetuavam a “dominação das elites” e a “subserviência ao império norte-americano”. Portanto, a ditadura militar não era ruim por ser uma ditadura, mas por não ser de esquerda. E o mais curioso é que Dilma Rousseff reproduziu muito da política econômica da ditadura militar, principalmente do governo Geisel, com seu nacionalismo tosco e seu gosto pelo endividamento.

Fidel Castro foi mais um ditadorzinho como tantos outros que infelicitaram e infelicitam a América Latina e a África. A sua aura vem do fato de que foi o único que conseguiu estatizar todos os meios de produção, e implantar de fato o comunismo, a meros 500km de Miami, desafiando a maior potência capitalista. Fez isso calando qualquer oposição, a qualquer preço, como faz qualquer ditador. Mas isso pouco importa: não se faz omelete sem quebrar os ovos, como dizia Stálin. Se é para implantar a “justiça social”, vale qualquer meio. Inclusive, recontar a história, chamando “ditadura” de “Revolução”, no melhor estilo da ditadura militar brasileira.

A diferença entre um autoritário e um democrata

Qual a diferença entre a ditadura militar brasileira e a ditadura de Fidel Castro? O número de mortos pelo regime.

Qual a diferença entre um autoritário e um democrata? O autoritário de direita ama a ditadura militar e execra Fidel, o autoritário de esquerda ama Fidel e execra a ditadura militar, o democrata execra ambos.