Se o dados não me obedecem, danem-se os dados

Tirar conclusões de eventos isolados é bom para criar manchetes, mas não serve de nada quando se quer analisar uma realidade. Por isso, em economia, sempre trabalhamos com dados agregados, e tomamos muito cuidado com correlações espúrias e relações de causalidade.

Nesse sentido, é até compreensível que os responsáveis pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública tomem cuidado ao relacionar o aumento do número de armas em poder da população com a diminuição do número de assassinatos desde 2019, conforme podemos observar no gráfico de seu último anuário.

De fato, pode ser que haja outros fatores que levaram a essa redução, que teria ocorrido APESAR do aumento do número de armas em circulação. Ou seja, o sucesso das políticas de segurança pública foram tão retumbantes a partir de 2019, que conseguiram remar na direção certa mesmo com um forte vento contrário.

Até aqui, a boa prática no exercício da análise estatística. No entanto, começamos a desconfiar das intenções do pesquisador quando este toma carona em eventos isolados para defender a sua tese, como é o caso dessa matéria.

Imaginemos o inverso: e se o número de assassinatos tivesse se elevado ao invés de cair? O mesmo cuidado de separar correlação de causalidade teria sido tomado? O aumento de armas em circulação seria tomado como mais um fator para explicar a criminalidade, ou como O fator único?

São questões retóricas, claro. O que mostra que o que eu penso vem antes dos dados. E se os dados não ornam com o que eu penso, danem-se os dados.

Armas e homicídios: em busca de uma correlação

Com mais armas, homicídios voltam a subir no Brasil.

Esta é a correlação defendida pela manchete da reportagem do Estadão, com base nos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Na matéria, ficamos sabendo que foram registrados 186 mil novas armas no Brasil em 2020, 97% a mais do que em 2019. Então, mais armas, mais homicídios, correto?

Seria assim se fosse assim.

Primeiro, porque não se faz análise de série temporal com 2 pontos.

Segundo, porque o número de armas registradas já havia aumentado de maneira significativa em 2019. De acordo com outra reportagem, da BBC News, em 2019 o número de armas registradas havia aumentado 84% em relação aos registros de 2018. E, no ano de 2019, o número de homicídios havia diminuído. Além disso, se esta correlação fosse verdadeira, deveria valer no nível de cada unidade da federação. Plotei um gráfico simples, com base nos dados do Anuário, relacionando variação de homicídios com variação do número de armas, por unidade da federação. O resultado pode ser observado no gráfico abaixo.

A correlação é virtualmente zero. Há estados, como o Ceará, onde o número de homicídios aumentou de maneira significativa sem aumento significativo do número de armas, ao mesmo tempo em que observamos estados como Minas Gerais, onde o número de armas aumentou de maneira significativa sem aumento do número de homicídios.

Claro que há outros fatores que explicam o aumento do número de homicídios. A desestruturação da Polícia Militar no Ceará deve explicar boa parte do aumento de homicídios naquele estado, o que, por sua vez, explica 78% do aumento de homicídios no país em 2020 (aliás, esta deveria ter sido a manchete).

Por outro lado, se o número de armas fosse outro fator relevante, deveria aparecer em uma análise cross-sectional simples como a do gráfico acima. Aliás, mesmo que aparecesse alguma correlação, esta poderia ser espúria, devida a outros fatores não considerados. Mas o oposto não ocorre: haver correlação e não aparecer em uma regressão como a que foi feita acima.

Resumindo: o aumento do número de homicídios pode até ter alguma correlação com o aumento do número de armas em posse dos cidadãos. Mas não são as estatísticas do Anuário da Segurança Pública 2020 que provam a tese.