Como se fabrica uma fake news

Texto da página de Pedro Burgos


Um bom caso para entender como as fake news se espalham é a história de “bolsonaristas estão vaiando quando Freddie Mercury beija outro homem nas sessões de Bohemian Rhapsody.” Você já deve ter ouvido (ou compartilhado/comentado) o caso a essa altura.

Procurei bastante ontem, e o primeiro tuíte sobre o assunto já fala da história em segunda mão, a pessoa em questão não havia presenciado nada, mas “lido”. Foi publicada na hora do almoço do sábado. Teve 25 mil RTs (http://bit.ly/2AOkplc). Nas 10 mil interações do tuíte, a tônica é “na minha sessão não aconteceu isso, por sorte. O povo até chorou/aplaudiu. Mas que coisa horrível!”

O tuíte foi a única fonte da “reportagem” de duas “matérias” no dia seguinte. Logo de manhã cedo, estava no Diário do Centro do Mundo (http://bit.ly/2PKaMfH). A postagem na seção “Essencial” tinha o título “Bolsominions vaiam cenas gays do filme sobre Freddie Mercury, Bohemian Rhapsody”. Ela só tinha uma frase e uma imagem do tuíte. Não precisou mais para ter 21 mil curtidas no Facebook.

No Cinepop: “Brasileiros estão vaiando as cenas gays de ‘Bohemian Rhapsody’”. Teve 140 mil interações no Facebook. Para dar um verniz de jornalismo sobre um texto que só tem um tuíte de fonte, a coisa é colocada assim: “parece que uma parte dos espectadores brasileiros não gostaram das cenas homoafetivas exibidas no longa. E o descontentamento invadiu a Internet.”

Começaram a surgir dúvidas sobre o fato. Aí o Hypeness ontem usou um título comum a agências de “fact-checking”: “Sim, os brasileiros estão vaiando cenas gays da biografia do Queen no cinema.” 174 mil pessoas curtiram isso no Facebook. Dessa vez, o texto não traz sequer um link ou captura de imagem de um tuíte. A coisa é verdade porque é verdade, oras.

E aí chego ao cerne da questão. O texto do Hypeness passa a maior parte do tempo falando não sobre o “fato” do título, mas sobre a vida de Freddie, com coisas como “Talvez estas pessoas não saibam, mas apesar de raramente falar sobre a vida pessoal, o africano nascido em Zanzibar nunca fez questão de esconder a orientação sexual.” (na verdade ele se definia como bi).

O objetivo dessas postagens e compartilhamentos então não é denunciar um absurdo, mas demarcar a superioridade moral, o conhecimento sobre a ignorância e preconceito. Nas redes sociais, notícias são acessórios para o que os americanos chamam de “virtue signaling”. Então, quando a “notícia” é só uma muleta, ela ser verdadeira ou falsa é menos importante. Por isso que acho que fake news são mais consequência que causa. A crença em desinformação é o sintoma de uma sociedade fraturada, em que um lado acredita que o outro é capaz de coisas grotescas — seja encenar um atentado ou distribuir mamadeiras eróticas.

Veja, é perfeitamente possível que em alguma sessão pessoas tenham vaiado cenas do filme. E elas podem ser eleitoras do Bolsonaro, claro. Mas o comentário mais comum nessas notícias, mesmo de gente que acreditou nelas, foi de como nas sessões em que elas viram havia só choro de emoção — e até aplausos. Por que a exceção não confirmada é “notícia”, então? O fato de tantas pessoas escolherem um evento isolado sem qualquer comprovação para generalizar o comportamento do “inimigo” diz mais sobre essas pessoas do que elas imaginam. E a quantidade de jornalista que escreve artigo denunciando fake news e no minuto seguinte compartilha isso, olha…