O direito de criar fábulas

Lula defendeu-se ontem das críticas à sua fala abjeta sobre a Venezuela. E ficou claro que Lula, para não variar, estava, na verdade, falando de si mesmo, e não da Venezuela. Em sua defesa, Lula afirma que foi preso como consequência de mentiras embaladas em uma falsa narrativa.

O que é uma narrativa? Narrativa nada mais é do que a tentativa de encaixar os fatos em uma sequência lógica, que faça sentido. Note que, no núcleo da narrativa, é preciso que exista um fato concreto. Se não existir, a narrativa se torna fábula, uma história inventada. Por exemplo, para se defender da acusação de que ganhou um triplex reformado do empreiteiro Leo Pinheiro, Lula inventou a narrativa de que o dono da OAS fez a reforma, incluindo uma cozinha Kitchen totalmente equipada, por sua livre e espontânea vontade, só para agradar D Marisa e fisgar o comprador. Como este “fato” é mais difícil de engolir do que pequi com casca, na verdade trata-se de uma fábula.

A narrativa faz parte da luta política. Quando Lula acusa os adversários de Chavez de inventarem mentiras, na verdade está condenando a política. Toda a oposição é resumida a uma “narrativa mentirosa”, ou seja, não baseada em fatos. Fábulas. Não se enganem: Lula encara toda a oposição que recebe no Brasil da mesma forma.

Durante a campanha eleitoral do ano passado, o PT foi acusado pelos bolsonaristas sobre a intenção de fechar igrejas. Tratava-se de uma narrativa baseada em um fato: o apoio do partido e seu candidato a Daniel Ortega, que estava fechando igrejas e prendendo bispos na Nicarágua. Os petistas reagiram, dizendo que era fake news, que não havia nenhuma intenção de fazer o mesmo. Mas o fato incontornável dessa narrativa não foi contestado, qual seja, o apoio ao regime nicaraguense. Se houvesse uma mísera notinha do partido condenando Ortega, o núcleo da narrativa desapareceria. Estamos aguardando essa notinha até hoje. Aliás, o TSE proibiu a campanha de Bolsonaro de ligar Lula a Maduro e Ortega, em uma clara intervenção na legítima narrativa política.

Note que Lula não pede a Maduro que contraponha “narrativas mentirosas” com fatos. Lula fala em “combater narrativas com a sua própria narrativa”. O mundo de Lula é um mundo de “narrativas” sem base em fatos. É um mundo de fábulas. Por isso, o espanto das pessoas de bom senso, que ainda se apegam aos fatos. Lula, ao defender Maduro, está, na verdade, defendendo o seu próprio direito de criar fábulas.

A vantagem de estar morto

Hoje, mais uma reportagem sobre as péssimas condições de vida na Venezuela.

No entanto, ontem, uma pequena nota nos trouxe a informação de que Chávez ainda tem 56% de aprovação pelo povo venezuelano, muito mais do que qualquer outro líder atual. Como se explica? Fácil: Chávez está morto.

Poucos se lembram, mas no último dia 5 de março completaram-se 10 anos da morte do comandante. Chávez saiu prematuramente do mundo da luta política para o plano dos mitos. Sua morte foi anterior à debacle dos preços do petróleo, que acabou com a fonte do bem-estar para todos os venezuelanos. Sobrou uma carcaça oca de economia, que os abutres do regime disputam sofregamente.

Na mesma pesquisa, Maduro aparece com apenas 22% de aprovação. Poderíamos questionar como Maduro consegue se reeleger com tão reduzida taxa de aprovação. A resposta, além da conhecida falta de lisura nas eleições, pode ser encontrada em uma pesquisa de um ano atrás, feita pelo mesmo instituto. Naquela pesquisa, Maduro também aparecia com uma avaliação péssima, mas não significativamente pior do que a de outros políticos venezuelanos de oposição. Ou seja, a situação é tão ruim, que basta estar vivo para ser mal avaliado. Chávez leva uma grande vantagem sobre seus concorrentes: está morto.

A cerca de 3 meses de sua morte, já em estado terminal, o ditador venezuelano disse: “Chávez não é um ser humano somente. Chávez é um grande coletivo. Chávez é o coração do povo, e o povo está no coração de Chávez”. Quem não se lembra das palavras de Lula em seu discurso no dia de sua prisão, em São Bernardo, também em terceira pessoa? “Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia, misturada com as ideias de vocês”. Lula proferiu essas palavras às vésperas de sua morte política.

A vantagem de Chávez, como dissemos, é estar morto. Lula, por outro lado, ressuscitou, como afirmou a um mesmerizado Reinaldo Azevedo. Portanto, voltou ao mundo dos vivos, e isso faz toda a diferença. Chávez, assim como Lula, navegou o grande ciclo das commodities da primeira década do século, e morreu antes de ver o seu castelo de cartas ruir. Lula saiu da presidência como uma quase unanimidade. Se tivesse acompanhado seu companheiro venezuelano em sua viagem ao além, teríamos hoje um mito lulista imbatível. Mas Lula voltou do mundo dos mortos, e terá que lidar com a realidade dos recursos escassos e da falta de margem de manobra. Aquela mesma realidade que faz com que todos os políticos sejam mal avaliados. Nesse mundo, é bem mais difícil a construção de mitos. A longevidade de Lula, afinal, talvez seja uma benção para o país.