É sempre mais fácil buscar um culpado

Reportagem sobre a inadimplência dos 60+. A matéria inicia afirmando que “inflação, juros altos e crescimento econômico fraco” têm obrigado os mais velhos a se endividarem para ajudar os mais jovens. Daí, para ilustrar, a repórter pega o exemplo de um idoso que se endividou porque resolveu construir um imóvel!

Mas, tirando a inadequação do exemplo pretendido, a história está longe de ser incomum: o cidadão toma uma decisão de gasto sem o devido planejamento, e depois culpa “a inflação, os juros altos e o crescimento fraco” pelas suas desventuras. Isso vale para os idosos e para os jovens que os idosos ajudam.

O curioso é que, em determinado ponto da reportagem, o idoso cita o 13o do INSS como a “tábua de salvação” para dar um alívio nas suas dívidas, mas não menciona a possibilidade de vender o terreno que a esposa herdou. Isso é muito comum, as pessoas resistem a se desfazer de patrimônio, enquanto se afundam nos juros do cartão de crédito. Não percebem que adiar a solução do problema só faz piorá-lo. Ficam à espera do “13o salvador”, e não tomam a decisão difícil, mas que resolverá o problema de maneira definitiva.

A inadimplência só muito raramente tem origem em um “acidente de percurso”. E, menos ainda, das condições macroeconômicas do país. Essas condições somente trazem à tona mais rapidamente uma situação, em si, insustentável. Ou é normal a pessoa pegar R$ 50 mil de empréstimos tendo renda de R$ 3 mil? Claro que não é sustentável, independentemente das condições macroeconômicas. Mas é mais fácil culpar a inflação e os juros altos.

Asas de Ícaro

Causa-me arrepios esse tipo de notícia.

As famílias estão endividadas por causa de uma inflação que pegou muitos desprevenidos. Conceder crédito para resolver o problema não resolve nada se as pessoas não revirem os seus gastos. Usar o dinheiro do empréstimo para “abrir um negócio” é pior ainda. É promessa de mais problemas à frente.

Todo mundo se acha um empreendedor. Coachs e livros de auto-ajuda nos convencem que basta ter uma “mente milionária” para ter sucesso. Mas o triste fato da natureza humana é que poucos de nossa espécie estão talhados para a tarefa de tocar um empreendimento para frente.

O indiano Muhammad Yunus ganhou o Nobel da Paz em 2006 com a sua ideia de microcrédito para mulheres indianas tocarem seus empreendimentos. Apesar de muito celebrado, o fato é que o banco criado por Yunus (e seus muitos clones no Sudeste Asiático) não sobrevivem sem pesados subsídios estatais. Mais recentemente, uma onda de suicídios no Sri Lanka chamou a atenção para o problema da inadimplência dos tomadores de microempréstimos.

Enfim, trata-se, no final do dia, de atividade arriscada, que, na maioria das vezes, dará ruim.

A lógica do capitalismo é a mesma da fecundação: são milhões de espermatozoides que tentam, mas somente um tem sucesso. Para que o capitalismo funcione, é preciso que muitos tenham a pretensão de ser o escolhido pelo destino para formar uma empresa viável. A batalha pelo financiamento é a primeira etapa desse processo, um filtro inicial que impede uma parcela de espermatozoides inviáveis de morrerem tentando empreender.

O reality show Shark Tank é uma caricatura de uma realidade muito concreta: o empreendedor precisa convencer potenciais financiadores de que sua ideia tem viabilidade comercial, e que ele, o empreendedor, tem capacidade gerencial para tocar a empresa. Passar neste teste inicial não é garantia de nada, mas já é um começo.

Agora, imagine que esse dinheiro para o empreendimento estivesse disponível tão facilmente quanto um consignado com lastro no Auxílio Brasil. Quantos “empreendedores” não estariam, na verdade, contratando a sua própria desgraça, ao financiar ideias que passaram pelo crivo apenas de sua própria imaginação. As “asas” do crédito consignado para empreender normalmente se transformam em asas de Ícaro.

Explicando os riscos do consórcio

Reportagem chama a atenção para o crescimento do consórcio como forma de financiamento, na medida em que as taxas de juros aumentam. Muitos entram nessa porque é ”mais barato que um financiamento” ou porque “têm dificuldade de poupar se não tiver um boleto pra pagar”.

Com relação ao primeiro ponto, é bom ter em mente que o consórcio também é um tipo de financiamento. Mas, ao contrário do financiamento bancário, em que o banco empresta o dinheiro, no consórcio quem empresta o dinheiro é o consorciado. É incrível, inacreditável mesmo, que, em uma extensa matéria sobre o assunto, não se toque neste ponto, que é fundamental. O consorciado assume o risco de crédito de pessoas para as quais os próprios bancos não quiseram emprestar, tais como “endividados e inadimplentes”. Existe um fundo de reserva para pagar pela inadimplência (e que sai do bolso do consorciado), mas nada garante que será suficiente. Muitos entram em um consórcio de um grande banco achando que, por ter um grande banco por trás, não há esse risco. Pois há sim: se a inadimplência aumentar, é o consorciado que deverá pagar no lugar daqueles que não pagaram.

O consorciado só se livra parcialmente desse risco quando obtém o bem, seja por lance, seja por sorteio. Neste ponto, ele passa de financiador a financiado. Para estes que recebem o bem antes, pelo menos se livram do risco de não receber o bem. Para os que vão receber o bem no final, o consórcio serve como uma “poupança forçada”. A diferença para uma “poupança normal”, é que você paga juros para poupar ao invés de receber os juros, e corre o risco de crédito dos outros consorciados ao invés de correr o risco de crédito do banco onde você faz a poupança. A indisciplina, de fato, custa muito caro.

Não me entendam mal. Acho que cada produto financeiro tem o seu público, e será adequado para as necessidades específicas de cada indivíduo. Meu único ponto é que os produtos financeiros devem ser adequadamente explicados, para que cada um tome a decisão que melhor lhe convier, da maneira mais bem informada possível. E não me parece que os riscos do consórcio estão adequadamente explicados.

Carnezinho gostoso

“Carnezinho gostoso”.

Assim definiu a presidente do conselho da Magazine Luiza, Luiza Trajano, o instrumento de crédito que sobrou para aqueles que já não têm limite no cartão, ou mesmo que não têm sequer condições de ter um cartão de crédito.

Luiza Trajano embrulha o seu “carnezinho gostoso” com apelos ao consumismo (“você, que quer dar um computador novo para o seu filho, ou uma TV nova para assistir a Copa”, só faltou dizer “não passa vontade não”) e dá o laço final com um “vá até a loja, por favor”, o que passa a mensagem de um certo desespero.

Com a inflação comendo renda por um lado, e os juros altos tornando o crédito muito caro do outro, já estamos vendo a inadimplência da pessoa física aumentar. Nesse contexto, por que a Magazine Luiza resolveu oferecer “crédito pré-aprovado” para todo mundo, quando deveria justamente estar fazendo o oposto, ou seja, sendo mais criteriosa na concessão de crédito?

Tenho uma hipótese: com o governo do PT a ser eleito neste ano, o BNDES voltará a financiar o “Brasil Grande”, o que inclui dar funding a juros camaradas para empresários amigos. Não custa lembrar que o perfil de Luiza Trajano na lista das pessoas mais influentes do mundo da Time foi escrito por ninguém menos que Luís Inácio Lula da Silva.

O “carnezinho gostoso” vai ser pago por todos nós.

Um desserviço da imprensa

Além de servir como slogan para acompanha do Ciro, pra que mais serve essa manchete de capa do Estadão?

No quesito “desinformação”, é 10. O Brasil tem 3 vezes a população da Itália, e qualquer fenômeno no Brasil será o equivalente a vários países menos populosos. A China deve ter uns dois Brasis de inadimplentes. O que isso significa? Rigorosamente nada.

Depois, esses números não batem uns com os outros. O país tem aproximadamente 55 milhões de famílias. Digamos, para simplificar e estressar o argumento, que todas sejam classificadas como pobres. Segundo a matéria, 26,7% dessas famílias estavam inadimplentes, o que significaria aproximadamente 15 milhões de famílias. Para que 63 milhões estivessem com contas atrasadas, seria necessário que cada uma dessas famílias tivesse, em média, 4 membros, e todos estivessem inadimplentes, incluindo crianças.

Há, obviamente, um problema conceitual aqui, que não permite conciliar essas informações. Mas o Estadão prefere a manchete bombástica do que o jornalismo esclarecedor. Muito triste isso.