Brasil e Argentina: um paralelo

A inflação no Brasil, este ano, deve fechar próxima de 5%. Os juros, apesar de estarem caindo, ainda estão muito altos. O Banco Central ainda mantém uma política monetária bastante apertada, pois ainda estamos distantes da meta de inflação, que é de 3% para o ano que vem. No entanto, do outro lado das Cataratas do Iguaçu, a inflação na Argentina está hoje em 140%, e só Deus sabe quanto vai fechar no ano.

Por que essa diferença gigantesca? O que o Brasil fez de certo, que lhe permite conviver com uma inflação civilizada? Ou, por outra, o que a Argentina fez de errado, para estar às portas de uma hiperinflação?

Como Brasil e Argentina acabaram com a hiperinflação

Investigar a história é sempre um exercício discricionário, no sentido da escolha que se faz do ponto de partida da narrativa. Neste artigo, decidi estabelecer o ponto de partida da comparação no início da década de 90, quando ambos os países resolveram o problema da hiperinflação que assolou a ambos na década de 80. Comecemos pelo Gráfico 1, que mostra justamente essa transição.

Não se deixe enganar pela escala! Mesmo em anos em que as barras estão pequenas, a inflação era muito alta para os nossos padrões atuais. Por exemplo, em 1986 (ano do Plano Cruzado no Brasil), a inflação brasileira foi de 80%, enquanto na Argentina foi de 82%. Observe que a Argentina resolve o seu problema inflacionário já a partir de 1991, com o Plano Cavallo (nome do ministro da economia de Carlos Menem) enquanto, no Brasil, este problema só é definitivamente endereçado em 1994, com o Plano Real. Vamos mostrar o mesmo gráfico a seguir, mas iniciando em 1995, quando ambos os países já tinham as suas inflações estabilizadas (Gráfico 2).

Observe que há duas fontes para a confecção deste gráfico, o FMI e um site chamado Trading Economics. Isso ocorre porque a base de dados do FMI não possui informações sobre a inflação da Argentina de 1997 para trás, e também para os anos de 2015 e 2016. O FMI somente coloca em sua base de dados informações que possuam um mínimo de confiabilidade. Aparentemente, não foi o caso da inflação argentina antes de 1997 e nos anos de 2015 e 2016. O site Trading Economics tem esses números, com exceção de 2016. Neste ano, nem com muito boa vontade.

A política cambial dos dois países

Voltemos para a análise. Note como, até o ano 2001, a inflação brasileira foi substancialmente superior à Argentina. Isso aconteceu porque o Plano Cavallo adotou uma dolarização disfarçada, chamada de “Currency Board”. Este mecanismo garantia a total conversibilidade entre o peso e o dólar, tornando a moeda norte-americana, na prática, a moeda de referência da economia argentina. No Brasil, também adotamos uma dolarização disfarçada, mas muito menos rígida: as “bandas cambiais”, em que o Banco Central comprava ou vendia dólares sempre que a moeda brasileira se afastava de um patamar pré-determinado. Esse mecanismo um pouco mais flexível gerou, como contrapartida, uma inflação muito mais alta do que a do nosso vizinho. No Gráfico 3, vemos os câmbios brasileiro e argentino no período que vai de 1995 a 1998, antes que ambos os governos desvalorizassem suas moedas. Podemos observar que o peso permanece em 1,00, enquanto o real se desvaloriza de 0,85 até 1,20.

No gráfico 4, temos a extensão do gráfico 3 até a desvalorização das duas moedas. Observe como a desvalorização do real, de 1,20 para cerca de 1,80, foi fichinha se comparada à desvalorização do peso, que foi de 1,00 até 3,80 em questão de meses. Isso aconteceu porque a economia argentina acumulou tensões durante muito mais tempo do que a brasileira, em um sistema muito mais rígido. Quando explodiu, a potência da explosão foi muito maior.

É dessa época o famoso “corralito”, um esquema de sequestro de dólares que pegou os argentinos de calças curtas, equivalente ao calote do Plano Collor.

A Odisseia dos Tontos é um filme com Ricardo Darín que tem como pano de fundo o corralito. Muito bom para quem quiser entender o ambiente da Argentina na época.

Temos, então, já de cara, uma diferença fundamental entre Brasil e Argentina: o governo brasileiro decidiu por um sistema cambial mais flexível, mesmo durante o período do “câmbio administrado”, que durou apenas 4 anos. O Currency Board argentino durou nada menos do que 11 anos, do início de 1991 até o final de 2001, acumulando todo tipo de distorção. Sua saída foi caótica, com o presidente De La Rua tendo que sair de helicóptero do telhado da Casa Rosada e nada menos do que 4 presidentes se sucedendo em pouco menos de duas semanas.

A coisa começa a se estabilizar somente a partir de 2003, com a chegada ao poder de Néstor Kirchner e o início do superciclo das commodities, que irá beneficiar o Brasil, a Argentina e todos os outros exportadores de commodities. No gráfico 5, temos o real e o dólar nesse período, que vai de 2003 a 2011.

Note, no entanto, uma coisa estranha: enquanto o real se valoriza de maneira impressionante nesse período, passando de 3,50 para 1,50 entre 2003 e 2008, o peso pouco se move, permanecendo no patamar de 3,00 durante todo esse período. Ora, era de se esperar um comportamento semelhante, dado que os termos de troca eram favoráveis aos dois países, assim como a todos os outros exportadores de commodities. O peso chileno, por exemplo, saiu de 600 para 450 por dólar nesse período.

Por que isso aconteceu? O câmbio serve como um termômetro da saúde de um país. Se o peso não seguiu a tendência dos países exportadores de commodities, é porque algo errado havia. Se observarmos o que aconteceu após a Grande Crise Financeira (GCF) de 2008, ainda no gráfico 5, essa dicotomia fica ainda mais clara: enquanto o real se recupera da grande desvalorização do final de 2008, o peso começa uma escalada de desvalorização que irá somente piorar dali para frente. Podemos estabelecer este evento (a GCF) como o ponto inicial da deterioração da moeda argentina que dura até hoje, apesar de que, como vimos, a distorção está presente desde o abandono do Currency Board.

No gráfico 6, podemos observar o comportamento do ágio entre o câmbio oficial e a cotação do principal câmbio paralelo, o “blue” (infelizmente, só consegui dados a partir de 2008).

Note como o ágio é praticamente zero até 2011, o que indica que o câmbio oficial flutuava livremente. A partir de 2012, algo começa a acontecer, e o governo da então presidente Cristina Kirchner, que havia assumido no final de 2007, começa a controlar o câmbio. Com isso, o ágio explode, variando em torno de 60% a partir de 2013 até a vitória de Maurício Macri, que assume o governo em 2016. O novo governo libera o câmbio, que flutua livremente, fazendo com que o ágio voltasse para zero. Este quadro permanece assim até que Macri perde as eleições, e o novo governo de Alberto Fernández decide tabelar novamente o câmbio, fazendo com que o ágio explodisse novamente. É nesse ponto que estamos hoje.

Para o brasileiro, passou a ser estranho falar de “câmbio paralelo”. A última vez que o Estadão publicou a cotação do câmbio paralelo foi em abril de 2001, ou seja, há mais de 20 anos, e cerca de dois anos após o governo deixar o câmbio flutuar. Na Argentina, onde o câmbio é administrado pelo governo, o mercado paralelo é o que fornece a real cotação do peso.

Última publicação do “dólar paralelo” no Estadão, em abril/2001

As reservas internacionais

O acompanhamento das reservas internacionais fornece uma outra perspectiva do problema externo argentino. Em 2006, a exemplo do Brasil, a Argentina também “se livrou” do FMI. Portanto, vamos acompanhar a evolução das reservas argentinas desde então, no gráfico 7, com e sem os aportes do FMI.

Observe como, a partir de 2011, as reservas, que se encontravam por volta de US$ 50 bi, começam a recuar, até atingir US$ 25 bi em 2014. A partir de meados de 2016, o governo Macri, aproveitando uma onda de boa vontade do mercado internacional de capitais com o seu governo, adota a estratégia de emitir dívida para reforçar as reservas internacionais. Entre abril/16 e maio/18, o governo argentino emitiu US$ 66 bilhões em dívida externa, enquanto as reservas cresceram US$ 20 bilhões nesse período. Só nesta distorção já podemos perceber que havia algo de podre no reino de Buenos Aires. Esse “algo de podre” forçou o governo Macri, em junho/18, a fechar o maior acordo da história do FMI, um stand-by de US$ 56 bilhões. A partir de então, o governo argentino foi sacando desse acordo. Entre junho/18 e agosto/23, a Argentina sacou US$ 50 bilhões deste acordo. Descontando este montante, as reservas argentinas estão negativas em US$ 25 bilhões.

A comparação direta com a trajetória das reservas brasileiras fica prejudicada por conta da diferença de tamanho entre as duas economias. Assim, optei por mostrar a razão entre reservas e o total de importações mais pagamento de serviços de cada país (dados mensais), dado que as reservas servem justamente como uma reserva de emergência para este tipo de gasto. O resultado está no gráfico 8.

Observe como, a partir de 2009, esta relação se deteriora na Argentina, saindo do intervalo de 10-15 meses de importações (como a brasileira), para algo como 5 meses. Com o aumento das reservas feito por Macri, essa relação foi para o intervalo de 15-20 meses (como era a brasileira na época), mas deteriorou-se a partir de então. Note que, mesmo com o aporte do FMI, as reservas argentinas hoje conseguem pagar algo como 5 meses de importações, ao passo que as reservas brasileiras pagam algo como 10-15 meses.

O problema fiscal

Até agora, somente verificamos os sintomas da doença argentina, a inflação e o câmbio. Para entender, contudo, a doença, é preciso abrir o paciente. Ou seja, verificar a sua situação fiscal. É o que fazemos no gráfico 9, a seguir:

Note, em primeiro lugar, que não há estatísticas brasileiras dos resultados das contas públicas na base do FMI antes de 2001. Ocorre que, de fato, estatísticas fiscais do setor público brasileiro consolidado só começam a ser compiladas a partir de 2001. Antes disso, temos estatísticas do governo federal e banco central, em conjunto, a partir de 1991, e separadamente somente a partir de 1999. Temos também estatísticas dos governos subnacionais a partir de 1991, mas sem consolidação com o governo federal. Ou seja, antes de 2001, as contas públicas brasileiras eram bastante opacas, e sabemos que, para qualquer ação de saneamento, antes é necessário ter uma noção da situação real.

Vejamos a situação da Argentina. Durante os anos do Currency Board, a Argentina tinha uma situação fiscal relativamente equilibrada, com baixos superávits e déficits fiscais. Portanto, a saída atabalhoada da paridade cambial, em 2001, deve-se mais aos desequilíbrios externos do que à situação fiscal doméstica. A partir de 2003, assim como o Brasil, a Argentina produziu superávits primários bastante expressivos, aproveitando-se do crescimento econômico trazido pelo superciclo das commodities. O quadro começa a mudar a partir da GCF de 2008. A partir daí, a Argentina começa a produzir déficits fiscais em série e cada vez maiores. Note a diferença para o Brasil, que também tem problemas fiscais, mas somente a partir de 2014 e em escala muito menor. A Argentina não produz superávit primário simplesmente desde 2009, o que nos leva à conclusão de que os problemas atuais se devem não a desequilíbrios externos, mas ao desequilíbrio doméstico. Com o Banco Central argentino tendo que financiar esses gastos, não é à toa que a inflação saiu do controle.

Por que, afinal, o Brasil se diferenciou da Argentina

Até aqui, fizemos um diagnóstico da situação, mas não entramos na discussão sobre os motivos que levaram o Brasil a seguir uma trajetória diferente da Argentina. Como tudo em economia, não há respostas definitivas. Listo, a seguir, algumas hipóteses.

  1. Câmbio controlado: o Brasil teve um período relativamente curto de câmbio controlado, menos de 4 anos, entre 1995 e 1998, ao passo que a Argentina segurou o Currency Board por mais de 10 anos, entre 1991 e 2001. Além disso, o controle brasileiro era mais flexível, permitindo desvalorizações da moeda ao longo do tempo. Assim, a economia brasileira acumulou bem menos tensões do que a argentina nesse período. E o pior: com exceção do breve período do governo Macri, o câmbio argentino nunca deixou de ser controlado pelo governo, ao contrário do câmbio brasileiro, que flutua livremente desde 1999.
  2. Banco Central autônomo: o Banco Central brasileiro sempre contou com mais autonomia que seu homônimo argentino, mesmo antes da aprovação da sua independência formal, em 2021. O nosso Banco Central não pode financiar o governo, comprando dívida pública, em um processo que chamamos de “monetização da dívida”. Na Argentina, até hoje o BC dá uma mãozinha para o Tesouro, comprando títulos emitidos pelo governo. Além disso, o sistema de metas de inflação só funciona quando o mercado acredita que o BC é autônomo, o que não é o caso na Argentina.
  3. Problema fiscal: como vimos no gráfico 9, o problema fiscal argentino é bem maior que o brasileiro, por incrível que pareça. Além disso, dada a opacidade dos dados do governo argentino, não duvido que esses números não sejam ainda piores, escondidos em rubricas que escapam da contabilidade oficial. Aqui, por ruim que seja, temos uma regra que limita os gastos do governo (o novo “arcabouço fiscal”). Na Argentina, não existe algo semelhante.

Note como as três hipóteses acima formam o nosso “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários), a estrutura em torno do qual se mantém a nossa estabilidade macroeconômica.

Hoje os argentinos escolhem o político que vai pegar essa batata quente. Sergio Massa e Patrícia Bullrich são mais do mesmo do que foi feito nos últimos anos pelos peronistas e por Maurício Macri. Javier Milei, por outro lado, é um salto no escuro. Sua plataforma de enxugamento da máquina do Estado vai na direção correta, ainda que seja preciso entender qual será o real apoio político que terá para tirá-la do papel. Por outro lado, a ideia de dolarizar a economia e aposentar o Banco Central vai na mesma direção do Currency Board, que tantas distorções causou na economia argentina na década de 90 e teve um fim desastroso. Faria bem o candidato, se eleito, se dedicar a fazer o feijão com arroz bem feito, o que já é difícil, e deixar as pirotecnias de lado. O Plano Real, que colocou o Brasil nos eixos, não foi um show de pirotecnia, mas antes, foi a construção de todo um arcabouço fiscal e monetário que permitiu ter alguma estabilidade macroeconômica.

Que nossos hermanos possam tirar alguma lição dessa experiência. E que nossos governantes tenham a sabedoria de preservar o que deu certo.

Quem poderia imaginar…

Rapaz… quem poderia imaginar que se endividar até as tampas para jogar dinheiro de helicóptero diminuiria a pobreza só por um tempo, e tudo voltaria a ser como antes por causa da inflação? Por essa ninguém esperava…

Quer dizer, tudo voltaria a ser como antes, não. A pobreza continua a mesma, mas a dívida pública, quanta diferença! (essa é para os mais seniores, que se lembram da propaganda do xampu Colorama).

E a matéria do NYT tem um tom de alarme, como se assistência do governo tivesse o condão de mudar o patamar de pobreza de maneira definitiva. Talvez se o governo continuasse se endividando eternamente para manter a assistência no mesmo nível… bem, talvez Biden pudesse dar uma olhada para certo país na América do Sul, em que programas assistenciais existem há décadas, sem conseguirem mover o ponteiro da pobreza.

Talvez um dia se convençam de que a única forma de diminuir a pobreza é com o enriquecimento (crescimento) do país. Dinheiro do governo só serve como paliativo temporário. Enquanto o governo dá com uma mão, retira com a outra, via impostos e inflação. Trata-se de um jogo soma zero, em que o cidadão perde e os políticos populistas ganham.

Macroeconomia vintage

Imagine você entrando em um carro de fabricação 1973. Ar-condicionado? Não. Direção hidráulica? Tampouco. Freio ABS? Vai sonhando.

Bem, foi essa a sensação que tive ao ler reportagem de hoje no Valor, em que os políticos de vários países europeus estão culpando os lucros das empresas pela inflação. Em 1971, Richard Nixon estabeleceu congelamento de preços nos EUA com base na mesma premissa. 15 anos depois, a Sunab fechava supermercados aqui, demonizando o lucro dos empresários. E não é que, 50 anos após Nixon, voltamos na história? É a macroeconomia vintage.

A matéria afirma que FMI e OCDE respaldam esse diagnóstico dos políticos, pois concluíram que uma parte relevante do aumento de preços foi parar na linha de lucros das empresas. Os políticos, matreiramente, confundem causa com consequência: não é que o lucro causa inflação, mas é justo o oposto: o excesso de demanda é que permite aumentar os lucros.

Digamos que, por hipótese, as empresas cortassem os preços e diminuíssem suas margens. O que ocorreria? Simples: haveria um excesso de demanda não atendida, provocando escassez de produtos. As empresas poderiam eventualmente produzir mais para atender a esse excesso de demanda, mas trata-se de uma decisão que 1) leva tempo e 2) pode não ser ótima economicamente para as empresas, dados os lotes econômicos e os custos fixos. De qualquer forma, como em todo congelamento de preços, haveria escassez, como explico em detalhe no meu livro Descomplicando o Economês.

Além disso, se as empresas baixassem seus preços, haveria uma diminuição dos preços, não necessariamente uma redução da inflação. Há aqui uma confusão entre inflação e nível de preços, que também explico no meu livro. Depois do degrau para baixo, o processo inflacionário permaneceria intacto, pois a demanda permaneceria lá.

A ciência monetária avançou muito nos últimos 50 anos, e sabemos que inflação se combate com política monetária, calibrando o custo do dinheiro. A inflação que estamos vivendo ainda é fruto dos gigantescos estímulos fiscais da pandemia, além de uma política monetária frouxa, principalmente na Europa. Culpar os empresários é fácil. Difícil é fazer a lição de casa.

Água no chopp

Sem querer jogar água no chopp de ninguém, mas estou vendo por aí muita gente comemorando o IPCA de março (0,71%) citando o acumulado de 12 meses, de 4,76%, como um sinal de que a inflação, finalmente, está na meta (3,25% +/- 1,5%). Nada mais enganoso. O que estamos vendo é o que chamamos, em estatística, de “efeito base”.

Explico: a inflação de 12 meses está caindo porque o IPCA de março de 2022 foi bem acima do normal, 1,62%, em função do início da guerra na Ucrânia e o consequente aumento dos preços dos combustíveis. Então, substituímos uma inflação de 1,62% por outra de 0,71% e… voi lá! temos uma inflação de 12 meses recuando de maneira significativa. O mesmo efeito deve ocorrer, em menor escala, em abril, pois o IPCA de abril de 2022 foi ainda muito alto (1,06%). Como se prevê um IPCA de 0,6% em abril, o acumulado de 12 meses deve cair mais uns 0,45%, para 4,3%. Depois disso, haverá mais dois meses de ganhos marginais, podendo a inflação de 12 meses ficar até abaixo de 4%.

Mas então, a partir de julho, o efeito base começar a trabalhar contra. Em julho do ano passado, o governo Bolsonaro cortou o imposto sobre combustíveis, levando a três meses seguidos (julho, agosto e setembro) de deflação. A não ser que o governo Lula tire um coelho semelhante da cartola, teremos a substituição de deflação por inflação nesses 3 meses, levando o acumulado de 12 meses para a vizinhança dos 6% novamente. Essa é a previsão do Focus para 2023, vale dizer.

O IPCA de março foi melhor do que o esperado (a expectativa do mercado era 0,78%, veio 0,71%), o que é bom. Mas estamos ainda longe, muito longe, da meta. O acumulado de 12 meses não serve como guia nessas horas, pelas distorções explicadas acima. Claro que, provavelmente, haverá ainda mais pressão do governo sobre o BC quando a inflação de 12 meses rondar 4%. Caberá ao presidente do BC explicar o que é efeito base. Boa sorte.

Jornalismo miojo

Em tempos bicudos para a imprensa tradicional, jornalista, em média, ganha mal. Talvez por isso tenha surgido a pauta do preço do miojo. Afinal, jornalista também precisa comer, e trata-se de uma forma barata de manter a alimentação em dia. Pelo menos, tratava-se. Segundo a matéria, até o miojo está pela hora da morte.

A pauta até que é interessante, mas o resultado final não para minimamente em pé, e o leitor fica sem saber o que está, de fato, acontecendo.

Para começar, ficamos sabendo que o miojo saiu de R$ 0,90 para “quase” R$ 3,00 nas gôndolas. Isso dá um aumento de mais de 200%, e não os 25% apontados pelo IBGE. Nenhum esforço dos jornalistas para compatibilizar as duas informações.

Mas o pior é a busca pelas causas do aumento. Claro, vamos ouvir o pessoal da indústria. E o que a indústria diz? Basicamente que o dólar e o preço do trigo pós guerra na Ucrânia são os culpados. Bem, as duas informações não passam pelo filtro de uma checagem mínima. O dólar valia R$ 5,13 no final de fevereiro de 2022 e, no final de fevereiro de 2023 (período de 12 meses considerado pela reportagem), valia R$ 5,20. Uma quase estabilidade. Portanto, a variação do miojo nada tem a ver com o dólar.

E o trigo? Bata dar uma googlada (wheat price), e veremos que o preço do trigo caiu mais de 30% nos últimos 12 meses. De fato, houve um pico após o início da guerra, mas o preço vem recuando desde meados do ano passado (gráfico abaixo). Portanto, o problema não parece ser também o preço do trigo.

A farinha de trigo, de fato, subiu 28% nos últimos 12 meses segundo o IBGE. Nenhum dos dois motivos acima, de fácil checagem, parece explicar essa elevação de preços. O que teria que fazer o repórter? Confrontaria as suas fontes com essas informações para entender melhor o que está acontecendo. Mas, nos tempos atuais, reportagens parecem-se cada vez mais com miojo: um “me engana que eu gosto” de preparo rápido e barato. Uma pena.

O verdadeiro lastro da moeda

Em seu artigo de hoje, Bolivar Lamounier parece encantado com a ideia de que o endividamento do governo e a estabilidade da moeda dependem não de variáveis macroeconômicas, como a relação dívida/PIB, mas da “confiança” no Estado organizado, tese proposta por André Lara Resende. Como cientista político, Lamounier viu o debate encaminhar-se para a sua zona de conforto, ao invés de ter que explorar assuntos áridos, como política monetária ou fiscal. Para que tudo se resolva, basta que exista um “Estado organizado” que goze da confiança de seus cidadãos.

Há aqui uma confusão dos diabos.

É claro que a existência de um Estado minimamente organizado é condição necessária para que tenhamos uma moeda fiduciária de curso forçado. Todos, no Brasil, são obrigados, por lei, a aceitarem o real como moeda de troca. O Estado brasileiro tem o monopólio da força no território nacional, de modo a legislar e impor o curso forçado da moeda.

No entanto, se a existência de um Estado organizado é condição necessária para a existência da moeda, está longe de ser condição suficiente para a estabilidade de seu poder de compra. O fato de ser “fiduciária” e, portanto, não contar com o ouro como lastro, não significa que a moeda não tenha lastro algum, ou que o lastro seja a pura confiança no Estado. Sim, o Estado pode forçar o uso da moeda (até certo ponto, como veremos no caso da Argentina), mas não tem o poder de determinar o VALOR da moeda. O lastro da moeda fiduciária é a PRODUÇÃO do país.

A moeda será estável se a base monetária crescer junto com o PIB. O montante de numerário não deve aumentar em relação ao conjunto dos produtos e serviços produzidos no país. Se o montante de moeda aumentar mais rapidamente, teremos mais moeda perseguindo menos produtos e serviços, causando inflação.

Quando o governo se endivida, está captando moeda do setor privado para os seus próprios gastos. O setor privado poupa, o governo gasta, em um jogo que pode ter resultado positivo, neutro ou negativo, a depender da natureza dos gastos do governo. O setor privado confia que, lá na frente, o Estado terá condições de arrecadar impostos para pagar a sua dívida, captando moeda do setor privado para pagar a sua dívida com o setor privado. Os problemas começam quando a relação dívida/PIB tem trajetória crescente. Isso significa que o governo está gastando a uma taxa acima do ritmo de produção de bens e serviços do país e, portanto, está precisando se endividar acima do crescimento do PIB.

Esse processo tem um limite. Em algum momento, por mais que o Estado seja organizado, a sociedade simplesmente não topa pagar mais impostos para financiar os gastos crescentes do governo. No limite, os cidadãos, inclusive, deixam de usar a moeda de curso forçado. É o caso, por exemplo, da Argentina. Difícil defender que nosso vizinho tenha um Estado menos organizado que o brasileiro. A Argentina é uma democracia com uma sociedade esclarecida e politizada. O poder coercitivo do Estado argentino é o mesmo do brasileiro e, no entanto, os argentinos há muito abandonaram a moeda fiduciária patrocinada pelo Estado. Ocorre que um Estado organizado capaz de recolher impostos é condição necessária, mas não suficiente, para a estabilidade da moeda. Em algum momento, os cidadãos deixam de pagar impostos na mesma velocidade de aumento da dívida, a relação dívida/ PIB sai do controle, e a única saída é a monetização da dívida. Em português, rodar a maquininha de impressão de dinheiro. A ideia de que basta um Estado organizado, capaz de arrecadar impostos, para que não exista limite para o seu endividamento, é tosca, ainda mais em países periféricos, como Brasil e Argentina, em que seus cidadãos têm à mão moedas mais estáveis, como o dólar.

No Brasil estamos exatamente em meio a esse debate. O tal do arcabouço fiscal traduz justamente a discussão sobre se queremos, como sociedade, mais impostos para financiar mais gastos do governo, de modo que a relação dívida/PIB não cresça. Se a sociedade não quiser, restará ao governo cortar gastos ou aumentar a relação dívida/PIB, até que, em determinado momento, a sociedade passe a duvidar da capacidade de o governo pagar a sua dívida sem rodar a maquininha.

Para desgosto de Lara Resende e Bolivar Lamounier, a estabilidade da moeda, por definição, passa pela discussão sobre o nível da relação dívida/ PIB, por mais fiduciária que seja a moeda. Afinal, a ”fidúcia” não dispensa um lastro, que é a realidade do PIB do país. Que o digam los hermanos.

Comparando alhos com alhos

Apenas um breve comentário a respeito de algumas comparações que vejo recorrentemente por aí, entre a taxa de juros real praticada no Brasil e em outros países. O objetivo dessas comparações é sempre mostrar que o Brasil tem, disparado, a maior taxa de juros real do mundo, e isso estaria, obviamente, errado.

Em primeiro lugar, vejamos se a taxa de juros praticada pelo Roberto Campos Neto é uma excepcionalidade ou é a regra. Para tanto, vamos tomar três países da América Latina mais ou menos comparáveis com o Brasil (Chile, Colômbia e México) e vamos construir um gráfico comparando a taxa de juros básica de cada economia comparada com a inflação dos últimos 12 meses. Essa não é a medida ideal, pois o importante é saber a taxa de juros comparada com a expectativa de inflação futura. Mas, como as comparações que vejo por aí consideram a inflação passada, vamos usar a mesma régua. O resultado está no gráfico 1.

Observe como, com raras exceções (o período Tombini e o final de 2020 e início de 2021), a taxa de juros real brasileira sempre foi bem superior às de seus pares na América Latina. Essa é a regra, não a exceção, o que inclui grande parte do período PT no governo. Ou seja, a taxa de juros muito alta não parece ser uma maldade especial de RCN, mas algo mais estrutural da economia brasileira.

O gráfico 2 explicita um dos motivos pelos quais precisamos pagar taxas reais mais altas: a nossa dívida é consistentemente mais alta do que a de nossos pares.

Mais especificamente, 50 a 60 pontos percentuais mais alta do que no Chile, e cerca de 30 pontos percentuais mais alta do que no México e Colômbia. Não à toa, a dívida doméstica desses países ainda é grau de investimento, enquanto nós perdemos o selo de bom pagador.

Então, quando alguém tentar comparar o Brasil com outros países, lembre-se que cada país tem suas característica próprias, e a comparação deve levar em consideração essas características.

A inflação é só um detalhe

Há exato um ano, escrevi um post intitulado A Argentina, o FMI e o sonho do financiador perpétuo. Naquele post, comento um artigo de autoria de Joseph Stiglitz no Valor Econômico, em que o Prêmio Nobel saúda o recém-assinado acordo entre a Argentina e o FMI como sendo um “divisor de águas”. Segundo Stiglitz, ao não estabelecer metas muito exigentes para los hermanos, o FMI estaria, finalmente, deixando espaço para o crescimento de países em dificuldades, o que, no final, permitiria cumprir o acordo com muito menos sofrimento.

Naquele artigo, Stiglitz faz uma única menção ao risco inflacionário, afirmando que “pode ser um problema” para economias de mercado. E só. Bem, há um ano, quando Stiglitz escreveu o artigo, a inflação da Argentina estava em 50% ao ano. Hoje está em 100%.

Mas quem está preocupado com a inflação, se o que realmente importa é fomentar o crescimento? E como a Argentina está se saindo nesse quesito? Segundo o último report da OCDE, de novembro do ano passado, a Argentina deve crescer 0,5% em 2023 e 1,8% em 2024. Não parece algo lá muito brilhante.

O Prêmio Nobel também afirmou que as altas taxas de juros estão “exacerbando” a inflação. O presidente da Turquia achava a mesma coisa, e reduziu as taxas de juros na marra em meados de 2019. Na época, a inflação rodava a 10% ao ano. Hoje está em 55%. Not a good experience.

Joseph Stiglitz foi o convidado de honra de um seminário patrocinado pelo BNDES de Aloísio Mercadante e pela FIESP. Não parece terem sido convidados economistas do mainstream. O objetivo era, claro, produzir manchetes como a que abre este post, de modo a aumentar a pressão sobre o BC.

Sinceramente, acho mais que o BC tinha que baixar a Selic para uns 6 ou 7%. Quem sabe Lula esteja certo, e devamos deixar de lado esses ultrapassados livros de economia? Se a inflação subir, paciência. Afinal, tenho como me proteger. E sempre haverá um inimigo externo em quem colocar a culpa.

A tale of two countries

A inflação na Argentina no mês de fevereiro foi de 6,6%. Não haveria nada demais nessa informação, a não ser por um pequeno detalhe: a inflação nos últimos 12 meses dos nossos hermanos acaba de ultrapassar a barreira dos 100%. Mais precisamente, 102,5%.

A última vez que a inflação na Argentina ficou acima de 100% foi em 1991. Em março daquele ano, o presidente Menem, junto com seu ministro da Fazenda, Domingo Cavallo, lançou um plano de estabilização que vinculava o peso ao dólar na proporção de 1 para 1. Era a chamada “lei da conversibilidade”, que durou 10 anos, e foi abandonada em meio ao caos. A partir dos anos 2000, a inflação anual argentina raras vezes ficou abaixo de dois dígitos e, a partir de 2014, sempre acima de 20% ao ano. Mas acima de 100% é a primeira vez desde 1991.

As histórias monetárias de Brasil e Argentina são muito semelhantes até 1991 (na Argentina) e 1994 (no Brasil): hiperinflação na década de 80 e início dos 90, e plano de estabilização que vinculava, de alguma maneira, a moeda nacional ao dólar. Na Argentina, essa vinculação foi explícita, em um modelo de currency board; no Brasil foi implícita, com o BC intervindo no mercado de câmbio dentro de certos parâmetros. A partir de 1999 (no Brasil) e 2001 (na Argentina), ocorre o abandono do “padrão-dólar” por absoluta falta de reservas para manter a paridade, e daí cada país segue o seu caminho: o Brasil com seu tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) e a Argentina com um sistema que poderíamos chamar de “administração de preços”, com intervenções cada vez mais profundas no sistema de preços da economia.

Mesmo com todos os seus evidentes problemas, o Brasil conseguiu manter a inflação sob controle, com apenas 3 anos de inflação em 2 dígitos desde 1999 (sendo um deles por conta da saída da pandemia). A Argentina, por sua vez, tem uma inflação descontrolada e está pendurada em um pacote gigantesco com o FMI, sem o qual não poderia estar importando nada.

O Brasil sofreu muito com a hiperinflação, e a sociedade brasileira criou uma espécie de memória ancestral em relação aos males da inflação. Por isso, todos os governantes sempre foram muito ciosos a respeito do controle do dragão. Pelo menos até hoje.

Lula não parece muito preocupado com a inflação. Ele quer aumentar a meta e trabalha para que o BC reduza as taxas de juros. Seu objetivo, acima de qualquer outro, é manter o crescimento econômico. “Um pouco mais de inflação” não parece ser um problema, desde que permita maior crescimento econômico, em uma dicotomia falsa no longo prazo.

Na Copa de 1982, lembro de uma faixa da torcida brasileira na Espanha, que dizia mais ou menos o seguinte: “Nossa seleção é que nem a nossa inflação: 100%”. Naquele ano, a inflação brasileira havia atingido pela primeira vez os 3 dígitos. A Argentina tem hoje uma seleção e uma inflação 100%. A diferença é que eles ganharam a Copa do Mundo, o que serve para distrair um pouco. Aqui, a Copa do Mundo não vai ajudar o governo se a inflação sair do controle.

A inflação do chuchu

Haddad afirma que os juros estão em um nível “fora de propósito”.

Lara Resende diz que os juros estão “errados”.

Como nenhum dos dois se dispôs a dizer quais seriam os juros “certos” ou “razoáveis”, nem compartilharam o seu modelo de determinação dos juros, a coisa soa mais a achismo. E achismo por achismo, também tenho meu palpite.

Também acho que os juros estão errados. A julgar pelos resultados dos últimos dois anos e pelo que se encaminha nesse ano de 2023, os juros deveriam ser ainda mais altos. Se o BC se encaminha para o terceiro ano de não cumprimento de meta, é porque praticou juros abaixo do que deveria. No sistema de metas de inflação, é a inflação que determina se os juros estão “certos” ou “errados”. O resto é só achismo de botequim.

Há uma concordância implícita com essa premissa quando se discute a meta de inflação. Mexer na meta só faz sentido se se acredita que o nível das taxas de juros é função da meta. Ou, mais tecnicamente, do desvio da inflação em relação à meta. Sintomaticamente, Lara Resende pouco menciona a meta em suas entrevistas e artigos. Prefere fazer uma espécie de “taxonomia da inflação”: tratar-se-ia de “inflação de oferta”, não “de demanda” e, portanto, infensa à taxa de juros. Assim, segundo o economista, o BC deveria, neste caso, assistir ao processo inflacionário passivamente, pois não haveria nada a fazer. Nos lembra os bons tempos de Mário Henrique Simonsen e sua “inflação do chuchu”, época em que o governo combatia a inflação “de oferta” na base de controle de preços da Sunab.

Voltando à racionalidade do sistema de metas (sistema este, bom lembrar, que manteve a inflação baixa em boa parte dos últimos mais de 20 anos), um aumento da meta poderia até levar a um alívio da política monetária, mas só na primeira rodada do jogo. O diabo é que trata-se de um jogo com infinitas rodadas. Já na segunda, voltaríamos exatamente ao mesmo problema, só que com uma inflação mais alta. Explicando: o que determina a taxa de juros real neutra da economia é a própria economia, não o Banco Central. Assim, se a inflação está acima da meta (qualquer que ela seja), o BC precisa praticar taxas de juros reais acima da taxa neutra – assim funciona o sistema de metas. Com a meta mudada para cima, a taxa de juros nominal também precisa subir. Se, em um primeiro momento, o aumento da meta faz com que as expectativas fiquem abaixo da nova meta, em um segundo momento todas as expectativas migram para a nova meta, e as velhas mazelas brasileiras voltam a empurrar as expectativas para cima da meta. Voltamos ao ponto inicial do jogo, mas com uma inflação mais alta.

O raciocínio acima é complexo, e é difícil de explicar em uma mesa de bar. Mais fácil colocar a culpa da inflação no chuchu da vez.