Nasce empresa lá?

Meu pai era fã de Zé Vasconcelos, um humorista precursor do gênero stand up comedy no Brasil. Tínhamos em casa alguns LPs de seus shows e, por incrível que pareça, ríamos sempre das mesmas piadas. É uma das doces lembranças de minha infância.

Em uma dessas piadas, Zé Vasconcelos faz referência jocosa ao Acre, perguntando, incrédulo, “mas, nasce gente lá?” Tratava-se de uma auto-piada, dado que ele mesmo havia nascido em Rio Branco.

Bem, essa foi a minha primeira reação ao ler a reportagem sobre a confeitaria de Rondônia que ganhou o mundo após ter um de seus posts no Instagram sendo compartilhado por ninguém menos que Britney Spears. Pensei sem pensar, “mas, nasce empresa lá?”

Depois pensei, desta vez raciocinando, “o que seria dessa empresa se não fosse o Instagram?”

O Facebook comprou o Instagram em 2012, quando a rede social tinha acumulado meros 30 milhões de downloads (hoje tem 1,4 bilhão). Na época era um negócio pequeno para o Facebook, que já tinha, naquela altura, 800 milhões de usuários. No entanto, Zuckerberg ”viu” o potencial da rede de compartilhamento de fotografias. Assim como “viu” o que o negócio de redes sociais representaria para o capitalismo do século XXI.

Muito acusam o Facebook de práticas monopolistas, das quais a aquisição do Instagram seria uma prova incontestável. A questão, no entanto, não é saber onde estaria o Facebook sem o Instagram hoje. A questão é saber onde estaria o Instagram sem o Facebook. Uma miríade de produtos nascem e morrem na internet todos os dias. Não basta ter um “bom produto”, é preciso “ver” como aquele produto muda o mundo ao seu redor. Mark Zuckerberg, assim como Bill Gates, Steven Jobs e alguns poucos outros, é desses raros empresários que veem mais longe. Não há o contrafactual, mas sou capaz de apostar que o Instagram, hoje, seria irrelevante fora das asas de Zuckerberg, porque um bom produto é apenas uma parte de uma estratégia empresarial de sucesso.

Hoje, o Instagram permite que uma empresa de Rondônia ganhe o mundo. O Instagram da Flakes (nome da confeitaria) já contava com mais de 600 mil seguidores antes do evento Britney Spears. Além disso, vende cursos on-line de confeitaria, e tem 40 mil alunos de 33 países. Esse é o capitalismo do século XXI, sem fronteiras. Zuckerberg “viu” esse “outro mundo possível”, e foi o responsável por tê-lo trazido à luz. Ao fornecer ferramentas que nivelam o acesso aos consumidores, fez mais pela distribuição da riqueza no mundo do que uma miríade de programas governamentais.

Facebook, a empresa que todos amam odiar

Temos acompanhado nos últimos dias mais uma onda de críticas ao Facebook e a seu fundador e CEO, Mark Zuckerberg. Desta vez, o pivô da indignação foi o testemunho de uma ex-funcionária da empresa, Frances Haugen, diante do Senado americano. Segundo a delatora (assim a tem chamado a imprensa em geral), o Facebook teria escondido resultados de pesquisas internas que teriam apontado a “toxicidade” de seus algoritmos, ao promover “discursos de ódio, intolerância e desinformação”. Tudo isso em nome do lucro acima de tudo. Além disso, outra pesquisa interna teria evidenciado o efeito deletério em adolescentes, especialmente meninas, de outro produto da empresa, o Instagram. E, como sempre, a alta direção não teria feito nada para mitigar os danos, sempre de olho no lucro.

O Facebook já foi acusado de muitas coisas. A primeira onda de críticas se referiu ao uso de dados dos usuários e à quebra de sua privacidade. Em seguida, o foco foi deslocado para outros dois problemas, expostos no depoimento de Frances Haugen: a falta de moderação do conteúdo e os algoritmos que visam aumentar o engajamento. Esta trinca (uso de dados dos usuários, algoritmos de engajamento e conteúdos impróprios) penso que resume todas as críticas à empresa. Vejamos cada uma delas.

Sou um usuário do Facebook e não pago nada por isso. Assim como os telespectadores de canais da TV aberta, os usuários do aplicativo “pagam” pelo seu uso através da exposição à propaganda. A diferença do Facebook para a TV aberta é a eficiência no direcionamento da propaganda: a empresa de Zuckerberg consegue, a partir dos dados de seus usuários, dirigir os anúncios de maneira mais focada. A TV aberta também segmenta os seus diversos públicos, como bem sabe qualquer agência de publicidade. Mas o acesso aos dados dos seus usuários é mais limitado. A diferença não é conceitual, mas de intensidade. De qualquer forma, alguns simplesmente não se conformam com o fato de que as pessoas estejam dispostas voluntariamente a expor seus dados pessoais em troca do uso da plataforma. Caso contrário, o Facebook e seus irmãos menores não teriam mais de 3 bilhões de usuários. A empresa poderia lançar uma versão “premium”, em que o usuário pagasse para não ter propaganda em sua tela. Desconfio de que poucos estariam dispostos a pagar por isso.

Os algoritmos de engajamento talvez sejam a acusação mais tenebrosa feita contra o Facebook e todas as outras empresas de tecnologia que vivem de tráfego em seus aplicativos. “Algoritmos” remetem ao conceito de manipulação, algo por trás das cortinas que nos leva a fazer coisas que não faríamos se não fôssemos levados a tal. Seríamos, assim, meras marionetes dos algoritmos. O que dizer? Em primeiro lugar, toda empresa, do mundo virtual ou real, procura engajar seus clientes. As vitrines das lojas nos convidam a entrar, distribuidores de panfletos convidam para lançamentos imobiliários, supermercados fazem promoções. Engajar, portanto, não é um crime em si. A diferença do Facebook e seus congêneres seria a “falta de transparência”. Ninguém sabe realmente como funcionam os tais algoritmos, o que aparece ou deixa de aparecer na linha do tempo do aplicativo. A pergunta é: o que mudaria se os algoritmos fossem públicos? Haveria uma “agência reguladora” de algoritmos? Quais seriam os critérios de um bom algoritmo? Não parece ser um problema fácil de resolver, se é que existe um problema aqui.

Este problema “do que fazer” nos leva à terceira crítica: a moderação de conteúdos. Em 30/03/2019, Mark Zuckerberg publicou artigo no Washington Post afirmando que “eu não pediria que as empresas fizessem esse julgamento (sobre conteúdos impróprios) sozinhas. Acredito que precisamos de um papel mais ativo dos governos e reguladores (neste campo)”. Zuckerberg, espertamente, jogou o abacaxi de censurar conteúdos no colo dos reguladores. Obviamente, depois de mais de dois anos, nada aconteceu. Os políticos continuam patrocinando sessões bombásticas no Congresso, mas o problema tóxico de eliminar conteúdos impróprios continua sendo do Facebook, uma empresa privada, não custa lembrar. É óbvio que postagens que contenham crimes tipificados, como estelionato e incitação à violência física, são inaceitáveis. O problema começa quando se desce para definições do que seja “discurso de ódio” e “intolerância”, ou, pior ainda, o que seriam posições políticas aceitáveis. O curioso é que há muitos que reclamam do excesso, e não da falta, de intervenção do Facebook nos conteúdos postados, desconfiando até que Zuckerberg teria uma agenda oculta. Censura é sempre um assunto muito delicado.

O frisson que mais uma vez tomou conta do debate público passa ao largo da vida real. Nesta, as ações do Facebook estão próximas de sua máxima histórica, indicando que, para os investidores, esses debates não devem influenciar o futuro da empresa. A julgar pela reação dos usuários à instabilidade que tirou do ar a trinca de aplicativos de Mark Zuckerberg por algumas horas na semana passada, os investidores provavelmente estão corretos.

O clique é soberano

Há alguns dias, ficamos sabendo que o Departamento de Justiça dos EUA estaria preparando uma ação antitruste contra o Google, que seria forçado a vender o seu navegador Chrome. Lembrei-me de outra aplicação famosa da lei antitruste.

Em 1984, a então gigante e quase monopolista AT&T foi obrigada a se desmembrar em 7 companhias regionais, as chamadas “Baby Bells”, em homenagem ao fundador da AT&T, Alexander Graham Bell, o inventor do telefone.

Esta lembrança só reforça a minha percepção de que esta lei foi feita para uma economia que está, aos poucos, perdendo relevância. Dividir a AT&T fazia todo sentido: afinal, oferecer infraestrutura telefônica envolvia investimentos massivos em capital e localização geográfica, fazendo com que a barreira de entrada fosse não só gigantesca, mas, em alguns casos, impossível de ultrapassar. Basta lembrar que a AT&T também controlava a Western Electric, a maior fabricante de equipamentos de telefonia do país. Então, não havia por onde entrar, dado que a companhia era, ao mesmo tempo, a maior vendedora e a maior compradora de infraestrutura de telecomunicações. Vale lembrar que as 7 companhias são hoje 3. A lógica econômica acaba falando mais alto.

O que temos no caso do Google? Um software. Não há barreiras físicas. O mercado está aberto para qualquer empresa que queira encarar os investimentos necessários para fazer um bom motor de buscas ou um bom navegador. Quem manda é o clique do usuário.

O interessante é que o Google desenvolveu o Chrome do zero e conquistou o mercado do então dominante Explorer, da Microsoft. Quando o Chrome foi criado, em 2008, a Microsoft estava sob supervisão antitruste desde 1998 por parte do governo norte-americano, pois o Windows trazia como navegador-padrão o Explorer. Esta ação antitruste acusava a gigante do software de monopolizar a indústria de navegadores, prejudicando concorrentes menores, notadamente o Netscape. Como se o usuário não pudesse trocar o seu navegador com um clique, como atualmente o faz para mudar do Edge (o novo navegador da Microsoft) para o Chrome. Aliás, até hoje o Windows traz o navegador da Microsoft como default, mas é o Google que está sendo acusado de monopolista. A ação antitruste contra a Microsoft terminou em 2013, pois perdeu o sentido.

Essa discussão toda chama-me a atenção para outro ponto que tem causado o furor dos defensores da concorrência com base nos parâmetros do século XX: a compra, pelo Facebook, do Instagram e do WhatsApp. Seria uma forma nada sutil de acabar com a concorrência em nichos nascentes. Interessante que o Google construiu o Chrome do zero, mas é acusado da mesma forma, o que me leva a concluir que dá na mesma comprar concorrentes ou desenvolver soluções do zero.

Alguns dirão que comprar concorrentes elimina uma concorrência futura indesejável. Quem disse? Quem pode afirmar que aquelas empresas nascentes seriam concorrentes de peso se o Facebook resolvesse desenvolver suas próprias soluções internas? Quem disse que as decisões empresariais de Instagram e WhatsApp lhes garantiriam o sucesso que têm hoje, e não a lata do lixo da história reservada a milhares de empresas que tentaram ser o “próximo Facebook”? Sinceramente, acho mais provável que Instagram e WhatsApp sejam o que são hoje justamente porque foram comprados pelo Facebook.

Enfim, tudo isso me parece uma discussão paleozoica, em um mundo onde o usuário tem total domínio e liberdade sobre o serviço que quer usar ou deixar de usar. Ações antitruste são inócuas em um mundo onde o clique é soberano.